Sessão Comemorativa do Dia 24 de Junho - Dia Um de Portugal

Guimarães
24 de Junho de 1997


Quero agradecer, Senhor Presidente, o convite que a Câmara Municipal me endereçou para tomar parte nas celebrações do dia de Guimarães, necessária e justamente sobre a égide de D. Afonso Henriques. Não escondo o grato prazer que sempre me causa o regresso a uma cidade que, assinalada por raízes da nossa grande pátria, preenche igualmente alguns trechos do meu pequeno mundo
Acredito que será recebida com benevolência, minhas Senhoras e meus Senhores, esta breve nota sentimental, que não devendo sobrevalorizar também não seria justo reprimir. Aqui me deparo com fragmentos de um passado que me honra. Os homens, como as sociedades, encontram como se sabe nessa experiência da herança, do legado transmitido e aceite, os fundamentos de uma identidade feita de partilha e de continuidade, feita de sentimento de pertença e de desejo de acrescentar.
Tenho acompanhado o esforço e a determinação dos vimaranenses em enfrentar a reconversão e modernização do aparelho produtivo, tanto agrícola como industrial, e em qualificar as suas estruturas urbanas. É de registar a forma como Guimarães tem procurado constituir nas últimas décadas um sector terciário dinâmico, e fixar, através do ensino superior - universitário e politécnico - um conjunto de valências estratégicas no sistema de formação de quadros.
Em anterior visita ao concelho, integrada numas Jornadas dedicadas ao tema da Inovação e Competitividade nas Empresas, pude mesmo observar directamente, em unidades produtivas e de ensino de Guimarães, alguns projectos e realizações exemplares.
É um feixe de caminhos que certamente será aprofundado, onde se combinam capacidades endógenas com atracção de recursos exteriores, permitindo a Guimarães desenvolver complementaridades num espaço económico alargado.
Na reformulação dos termos do debate acerca das vias do desenvolvimento regional - a que tenho, como é conhecido, dedicado particular atenção - a experiência vivida neste território tem merecido a análise e reflexão dos especialistas. O principal destaque é atribuído à forma como Guimarães vem explorando as sinergias propiciadas pela sua integração numa área cuja vitalidade económica, social e cultural sempre foi notável.
São mais exigentes hoje os desafios do desenvolvimento regional a que as cidades como Guimarães são chamadas a responder. Mas também são mais estimulantes os contextos globais em que se podem movimentar as aglomerações urbanas deste tipo.
Refiro-me a aglomerações urbanas dotadas de uma certa densidade e especialização, pouco hierarquizadas, funcionando em rede. Podem ambicionar uma projecção que não se confine exclusivamente à fronteira nacional, e creio que esse caminho da internacionalização também estará nos horizontes de Guimarães.
Decisivo, absolutamente decisivo, para que se possa prosseguir com segurança nesse sentido, é atribuir uma nova prioridade, tanto no plano técnico como no plano político, à coordenação das instâncias de intervenção no território.
É esse o nosso déficit. Temos políticas de desenvolvimento regional, temos estratégias, equipamentos e recursos, mas deparamo-nos com uma teia por vezes inextricável de lógicas administrativas operando isoladamente. Articulá-las entre si é, sem dúvida, uma das grandes tarefas nacionais: aproximar os serviços dos utilizadores, fazer fluír a informação entre público e o privado, harmonizar os níveis local, regional e nacional da Administração Pública, reforçar o plano interdepartamental da Administração do Estado e estabelecer o relacionamento efectivo entre esta e a Administração autárquica.
Resolver o problema da ausência de instâncias de coordenação adequadas é remover poderosos obstáculos ao desenvolvimento regional. A competitividade dos nossos centros urbanos receberá novos impulsos com a solução desse problema. Das soluções de coordenação que formos capazes de criar depende a eficácia de factores cruciais como a difusão da informação e da tecnologia, a capacidade de inovação e de adaptação à mudança.
A qualificação das estruturas urbanas tem sido em Guimarães compatibilizada com a preservação do seu excepcional património histórico. Quero associar-me ao reconhecimento desse mérito, que necessariamente recai em primeiro lugar nos seus órgãos autárquicos. Aproveito ainda a ocasião - porque o não fiz na altura - para felicitar a cidade pelo prémio recentemente atribuído ao seu centro histórico pela Real Fundação de Toledo.
Dispomos de um generalizado consenso sobre a necessidade de integrar harmonicamente as zonas históricas das cidades no processo de crescimento urbano, e de garantir o respectivo lugar no equilíbrio das funções urbanas. Um sem número de problemas concretos espera no entanto quem tem a responsabilidade de planear e decidir a intervenção. Conheço de experiência própria muitos desses problemas - dos regulamentares aos financeiros, dos técnicos aos políticos - e considero-me por isso em boa posição para pôr em destaque o trabalho realizado em Guimarães.
Importa também que se diga que a preservação e a valorização patrimonial não constitui apenas um serviço prestado aos vimaranenses.
Guimarães não poderia enjeitar, como não enjeitou, uma percepção aberta dos seus monumentos, eles que a vários títulos documentam diversos passos da nossa história colectiva, os que se projectaram, (como lembrou o Senhor Presidente da Câmara, na construção da nossa autonomia política), alguns bem mais modernos e outros que remontam aos tempos das comunidades castrejas e da romanização.
Alexandre Herculano, pioneiro nas questões de defesa do património sob responsabilidade autárquica (ele que como sabem também foi Presidente da Câmara e precisamente da de Belém ...), escreveu com inteira oportunidade que “nenhum monumento histórico pertence propriamente ao município em cujo âmbito jaze, mas à nação toda”, advertindo que “a história que transforma o monumento em documento” não é apenas “a história de uma vila ou cidade, mas sim a de um povo inteiro”.
Questão diversa, que não me parece avisado sobrepor à do significado dos factos e vestígios históricos de uma cidade ou de uma região, é a dos símbolos e datas. A esse respeito não gostaria que subsistissem dúvidas. Não posso concordar com uma tentativa de revisão desses símbolos, por melhores que aparentem ser os argumentos intelectuais invocados. Não vejo qualquer oportunidade no facto, tanto mais que o carácter simbólico dessas referências nacionais resulta precisamente de uma sedimentação histórica. A estabilidade dos símbolos deve ser respeitada, porquanto é dessa estabilidade que eles retiram a sua expressão.
A preservação da memória é uma tarefa especializada. Em Guimarães devemos lembrar os homens que com paciência e rigor, têm estudado e tornado conhecido a história e o património da cidade e da região.
Só defendemos capazmente aquilo que conhecemos. Guimarães pode orgulhar-se de contar, ao lado das suas pedras notáveis, outras não menos ilustres pedras vivas - a quem coube precisamente desenterrar e limpar as primeiras, fazê-las falar, comunicar connosco. O Senhor Presidente da Câmara lembrou figuras mais recentes, e eu gostaria de recordar pioneiros, como Martins Sarmento, Alberto Sampaio, Alfredo Pimenta, entre tantos outros.
Homens de cultura que acumularam erudição e difundiram o saber, mas que também ajudaram a formar uma opinião mais esclarecida sobre o património.
Trata-se de um valor inestimável. A opinião pública é submetida a pressões contraditórias a respeito destes temas do património: aos efeitos identitários do passado são contrapostos muitas vezes a absolutização dos valores do presente e a recusa da diversidade cultural exemplificada pela história.
Guimarães mostra como o património pode ser encarado como uma oportunidade. Uma oportunidade que se cumpre no respeito pelo passado. Mas um respeito criador, não um respeito “paralisante, reaccionário”, como diz o historiador Jacques Le Goff, pois o património “é qualquer coisa que vive, que evolui”.
Ora foi exactamente por essa capacidade criadora, testemunhada aqui em Guimarães, que iniciei a minha intervenção. Com um apelo a esse empenhamento dos vimaranenses quero também encerrá-la.