Acto Solene de Inauguração da Feira do Livro de Frankfurt

Alemanha
14 de Outubro de 1997


Nesta cidade que é a pátria de Goethe, todos os anos se marca encontro por causa e em nome do livro. Ao virmos ao encontro dos livros, é, afinal, ao encontro de nós próprios que vamos, pois o livro identifica-nos como condição, como história, como civilização.
O destino do livro não se dissocia do destino humano. Tudo o que ao livro respeita, respeita ao mais profundo do homem como ser capaz de dar sentido ao Mundo e de criar mundos rivais do Mundo. Como disse Eça de Queiroz, “só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo”.
Temos a consciência de que tudo mudou nos últimos anos e de que a sociedade de informação em que vivemos tem outros paradigmas, outros conceitos, outros saberes, outros ritmos. Temos também a consciência de que o livro, que tem estado no centro da nossa cultura e é o seu símbolo mais duradouro, está a sofrer uma profunda transformação do seu estatuto. Sabemos que estamos no limiar de novos tempos, de novos espaços e ciberespaços da aventura humana.
Mas também sabemos que, dos papiros aos CD roms, o livro tem sido o lugar da nossa indagação fundamental e foi nele que sempre se deu a aliança ou o confronto entre os homens e o tempo em que vivem. A obra de Fernando Pessoa é disso, no nosso século, um grandioso testemunho.
Estamos aqui para inaugurar oficialmente a Feira do Livro de Frankfurt, o maior acontecimento mundial da indústria editorial, uma espécie de olimpíadas do livro. Portugal é o país--tema deste ano de 1997. Honra-nos muito a escolha e gostaríamos que aceitassem a nossa gratidão, não como uma fórmula de cortesia, mas como um sentimento que retribui o interesse, a atenção e a amizade que nos dedicam.
Ich begrüsse unsere Gastgeber, den Herrn Bundespräsident Dr. Roman Herzog, dem ich unsere Bewunderung und Hochatung aussprechen möchete die Oberbürgermeisterin von Frankfurt, Frau Pedtr Roth und den Vorsteher des Börsenvereins des Deutschen Buchhandels, Dr.Gerhard Kurtze.
Heute und hier erneuert Portugal nochamals seine altn, fruchtbaren Beziehungen zu Deutschand.
Como é sabido, já se assinalam presenças de cruzados alemães na conquista de Lisboa, em 1147. Em todos os planos - político, religioso, cultural, económico, científico, universitário, militar - houve intercâmbio entre os nossos países.
Para se ter a ideia da relevância deste intercâmbio, basta citar, de entre tantos alemães ilustres que viveram em Portugal, os nomes de Johan Friedrich Ludwig (ou Ludovice), Conde de Lippe, Fernando de Saxe-Coburgo, Carolina Michaelis, Josef Maria Piel, Georg Rudolf Lind, Curt Mayer Clasen.
Se tivéssemos, porém que eleger um símbolo material dessas relações, talvez pudéssemos escolher o belo retrato do humanista português Damião de Góis, feito pelo pintor Albrecht Durer, que sela o encontro de dois grandes europeus.
Saúdo o Presidente da Comissão Europeia, Jacques Santer, cuja presença tem tanto significado, pois reafirma que a cultura é o fundamento primeiro do projecto europeu.
Saúdo, em nome de Portugal, todos os convidados presentes nesta sessão inaugural. Para o ano, esperamos por todos vós, em Lisboa, para a Expo-98.
Portugal é um país antigo, com uma história e uma cultura abertas ao Mundo, com uma língua que é falada por povos de vários países e continentes, no número de 200 milhões de seres humanos. É uma Nação - talvez a única - que fez de um poeta, Camões, o seu símbolo e do dia em que ele se celebra o seu Dia Nacional. Tendo-se reencontrado com a liberdade com a Revolução dos Cravos, é hoje membro da União Europeia e também da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. É um país moderno que luta pelas grandes causas do nosso tempo - a democracia e os direitos humanos, o respeito pelas culturas e pela diversidade, a defesa do património e da memória histórica, a solidariedade, a paz.
Portugal, que com o 25 de Abril, se abriu e transformou radicalmente, tem hoje uma cultura que quer estar nos caminhos do Mundo, participando nesta exaltante aventura de todos os seres humanos que é a imaginação do futuro.
A literatura portuguesa é um meio único e insubstituível de nos conhecermos e dos outros nos conhecerem. Herdeira de uma riquíssima tradição de muitos séculos, essa literatura, que nos dá uma identidade tão marcante, tem-se aberto a novas dimensões e a novas direcções, tem-se renovado e afirmado, gozando de um prestígio e suscitando um interesse que são, para nós, motivos de orgulho e de estímulo. Muitos dos que têm contribuído para isso estão presentes nesta Feira.
Mas não só a literatura se tem renovado e afirmado. Também a pintura, a escultura, o cinema, a fotografia, o teatro, a música, o bailado, a arquitectura vivem um período forte, como decerto se poderá reconhecer pelo que aqui está a ser mostrado.
Portugal está na Europa porque acredita no projecto de civilização, cultura e cidadania, que se consubstancia numa União Europeia alargada e aberta, espaço de criação cultural e científica, de inovação e transformação. Estamos na Europa para lhe darmos o nosso contributo original de país moderno e de povo que levou a Europa ao Mundo e o Mundo à Europa. A universalidade, não o esqueçamos, é e será sempre uma condição insubstituível da pujança cultural da Europa.
Ao longo de séculos Portugal esteve nos caminhos do Mundo. Abriu rotas e alargou horizontes, descobriu “novos mares, novas terras, novos céus, novas estrelas”, como disse Pedro Nunes. E novos povos, novas culturas, novos costumes. A cultura portuguesa é portadora das marcas desse encontro de civilizações. Portugal fez sempre do passaporte o seu bilhete de identidade. Eduardo Lourenço, que a seguir nos falará, tem dedicado a sua reflexão à identidade portuguesa e à identidade europeia, pensadas como interpelações activas.
No tempo da planetarização, da comunicação, da globalização, esta experiência dos caminhos do Mundo não é apenas um motivo de orgulho mas de responsabilidade.
Hoje, aqui, neste país, nesta cidade, nesta feira, Portugal está num centro onde se cruzam caminhos, livros e pessoas vindos de todo o lado. É também o impulso da descoberta, em que nos reconhecemos, que as traz cá.
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Nesta ocasião em que celebramos o livro e os livros, sentimos presentes, especialmente, todos aqueles que os escrevem e os editam.
Lembramos que há ainda escritores sujeitos, por escreverem, à censura, à prisão, ao exílio, à tortura, à morte, à penúria. E mesmo assim têm a coragem de continuar a escrever.
Sabemos que há editores e livreiros que são ameaçados e vêem os seus livros apreendidos, destruídos, confiscados. E mesmo assim têm a coragem de continuar a editar.
Esses exemplos fazem-nos pensar que o livro é também a medida da nossa liberdade.
Lembramos ainda que temos o dever de defender os direitos da propriedade intelectual, que encontraram num grande alemão, Kant, o seu primeiro arauto.
Sabemos também que há gente sem livros, porque os quer e não os pode ter, e, pior ainda, outros que os não têm nem têm a necessidade de os ter.
Lutar pela solidariedade, pela liberdade, pela tolerância e pela paz, contra o subdesenvolvimento, a ignorância, o fanatismo, a violência, é ainda defender o livro.
O próximo século terá de ser o século do encontro, da comunicação - não apenas técnica, mas humana - do diálogo universal. O livro é sempre um lugar de encontro, de comunicação, de diálogo. O livro é, por isso, o símbolo da nossa esperança renovada num tempo mais justo, mais humano e mais universal, em que a poesia não precise de ser, como diz o poeta Herberto Helder, “uma clandestinidade na ditadura do Mundo”.