Cerimónia Comemorativa do 1º de Dezembro

Palácio da Independência - Lisboa
01 de Dezembro de 1997


Quando o liberalismo se lançou na empresa de construção política do Estado territorial, os dias nacionais, a par de outros símbolos, funcionaram como grandes unificadores da nação. Sobrepondo-se à diversidade cultural das comunidades locais e à frágil integração geográfica e económica, as referências nacionais tiveram um papel agregador insubstituível. A comemoração de grandes acontecimentos históricos, a evocação de grandes figuras, a bandeira, o hino deram corpo ao desejo e à necessidade de composição de uma identidade nacional.0
Assim, os símbolos nacionais valem, não pelo personagem ou acontecimento histórico a que se reportam, mas pela referência que constituem e pela estabilidade que como tal adquiriram.
O dia da Independência, com que se pretendeu consagrar a garantia de integridade do território e a autonomia do Estado português, foi assimilado ao 1º de Dezembro de 1640. Este dia assinala basicamente a viabilidade de Portugal. É neste sentido que o devemos historicamente encarar.
Será redutor e parcial limitar tal viabilidade a um contexto puramente peninsular. Do mesmo modo, também será redutor limitar essa viabilidade ao contexto de um confronto político e militar do século XVII.
A experiência histórica da viabilidade de Portugal como país soberano foi um processo - insisto neste ponto - que, como todos sabemos, se desenvolveu ao longo de vários séculos, convocando condições internacionais multilaterais e articulando aspectos não apenas políticos e militares como de ordem económica e cultural.
A autonomia portuguesa não se decidiu apenas, nem sequer fundamentalmente, no século XVII, e os factores que a tornaram possível tiveram expressões diversas ao longo da nossa história. Poderíamos mesmo, com igual propriedade, ter escolhido outras datas para celebrar a independência de Portugal.
Não se trata de propor uma qualquer revisão deste tema - estejam descansados! - pois como é sabido, sou favorável à estabilidade das referências nacionais. Se abordo aqui esta questão, é sobretudo para vincar que o que celebramos hoje, em meu entender, não será tanto um acontecimento preciso, mas antes uma grande experiência que atravessa séculos e é obra de múltiplas gerações, e da qual resultou uma identidade feita de um sentimento de pertença e de partilha.
Os portugueses construíram uma identidade num espaço físico caracterizadamente aberto, tanto do lado marítimo como terrestre. Também o espaço social e político se caracterizou desde cedo pela abertura ao exterior, com a colaboração de diversas proveniências na colonização e na própria negociação autonómica.
Por isso nos orgulhamos justamente de contar na nossa história com diversas épocas marcadas por um intenso intercâmbio cultural e económico com outros povos.
Mais: encontrámos muitas vezes na linha da frente do diálogo civilizacional que permitiu ao mundo, como sucedeu na época das Descobertas, deslocar as fronteiras do conhecimento.
É certo que, ao arrepio desta tendência, também assistimos noutras épocas (recentemente até) a tentativas de encerrar Portugal e os portugueses em si próprios, num isolacionismo absurdo que nos afastou da convivência com outros povos, e consequentemente dos novos horizontes do saber e da criação.
A democracia permitiu-nos reencontrar o caminho do diálogo e do entendimento, ou seja, o que privilegia a aprendizagem sem preconceitos, a curiosidade, o trabalho em conjunto, o caminho afinal que valoriza igualmente o nosso próprio contributo para a construção do universo humano na sua diversidade.
A democracia portuguesa ligou-nos de novo à Europa, entendida como um espaço identitário, marcado por valores fortes: a liberdade, a igualdade de oportunidades, a promoção económica e cultural das sociedades, a igualdade entre Estados.
Passa pela Europa - hoje - a experiência histórica secular da viabilidade portuguesa. Por isso esse é um conceito e uma prática que não podemos deixar de querer aprofundar - a Europa.
Acredito que o inevitável crescimento de um espaço público comum europeu se não fará à custa de uma desagregação das sociedades que o integram. A Europa depende tanto dos instrumentos de política comum, como da coesão nacional lograda em cada uma das comunidades territoriais que estabeleceram a União.
É nesse sentido que os elementos culturais identitários, baseados na tradição, na história e no património são decisivos. Certamente que poderão, numa ou noutra ocasião, constituir factores de resistência, mas a consciência de si, o orgulho das raízes, o sedimento histórico podem igualmente ser factores positivos no estabelecimento de uma confiança recíproca entre comunidades nacionais.
A solidez do diálogo entre comunidades, assente no respeito mútuo, depende do interesse e da atenção que cada uma saiba despertar nas outras, a partir exactamente das respectivas manifestações culturais, e do desejo de partilha desses valores que consiga inspirar.
Nesse diálogo Portugal jamais deixará de justificar a sua soberania e os portugueses de garantir a sua segurança enquanto cidadãos.