Jornada da Interioridade - Sessão de Abertura do Colóquio “Perspectivas de Desenvolvimento do Interior”

Idanha-a-Nova
13 de Junho de 1997


Não surpreenderei, por certo, a grande maioria dos presentes se disser que, na base da iniciativa que durante os últimos dias me levou a multiplicar contactos no Interior do País, está uma preocupação séria com as questões da equidade territorial, da concretização do princípio da igualdade de oportunidades e, portanto, também, da própria coesão nacional.
Preocupação séria e antiga, já que, quer na qualidade de cidadão desde há muito atento aos problemas sociais do País, quer como responsável autárquico, quer como dirigente político nacional, sempre fiz questão de observar de perto e de reflectir o mais informadamente possível sobre as consequências de um processo de desenvolvimento marcado por desigualdades regionais acentuadas, por bloqueamentos nas estruturas produtivas que afectam extensas parcelas do todo nacional e por injustos dualismos sociais deles decorrentes.
Compreendam que, enquanto Presidente da República, tenha querido voltar a interrogar-me, com os cidadãos do meu País, sobre os problemas do desenvolvimento e sobre as perspectivas que, nesse âmbito, se encontram ao alcance das regiões do Interior.
O Colóquio que tenho o gosto de agora iniciar é uma oportunidade, para mim altamente gratificante, de aprofundar pontos de vista nesta matéria. Por isso, e desde já, agradeço a todos os que quiseram estar presentes, e em particular aos oradores principais, a sua disponibilidade para participar activamente nestas Jornadas sobre a Interioridade.
A emigração de muitas centenas de milhar de portugueses foi, na década de sessenta e início da de setenta, o afloramento mais doloroso das assimetrias e injustiças sociais motivadas pelo atraso económico e pelo isolamento de Portugal.
Embora convenha estarmos atentos às novas modalidades de emigração envolvendo compatriotas nossos, sabe-se que o fenómeno deixou de ter o dramatismo de outrora. Tal não justifica que apaguemos da memória as marcas do que foi esse esforço colectivo de reacção à adversidade e às injustiças sociais. Aos nossos emigrantes devemos uma dupla homenagem: homenagem pelos sacrifícios que fizeram para garantir a dignidade, quando não a própria sobrevivência, das suas famílias; homenagem ainda pelo contributo que, longe das suas terras ou a elas regressados, nunca deixaram de dar à revitalização das comunidades de origem e ao progresso económico de Portugal.
O despovoamento e envelhecimento das populações de muitas zonas do interior, bem como a escassez de postos de trabalho ao alcance dos mais jovens são, entretanto, indícios preocupantes dos desequilíbrios de desenvolvimento que permanecem.
Contra eles têm-se erguido a energia e o sentido de responsabilidades de muitos autarcas, ora no diagnóstico realista dos problemas, ora na reivindicação, junto do poder central, de medidas correctoras adequadas, ora no estabelecimento de soluções de tipo associativo que começam a transcender os limites territoriais dos Municípios e a demonstrar na prática novas virtualidades da descentralização administrativa. A diversidade e qualidade dos equipamentos e serviços postos à disposição das populações são, em muitos casos, o emblema mais notável da obra realizada no Portugal Democrático pelo Poder Local.
Creio encontrar, por outro lado, em políticas económicas e sociais recentes, maior abertura do Governo, quer no sentido de alargar o âmbito de medidas de criação de empregos especialmente dirigidas aos mais jovens, quer no de melhorar a protecção às famílias e aos idosos pobres. O incentivo à criação de microempresas parece-me ser outro indício de mudanças positivas em curso.
Se se continuar a avançar nesta direcção, e se se aperfeiçoar em permanência a articulação entre políticas comunitárias, políticas sectoriais e políticas de âmbito regional e local, sem deixar de apostar ainda na descentralização de decisões e na participação dos agentes económicos locais, estaremos em condições, julgo eu, de dar passos seguros no combate contra algumas assimetrias de desenvolvimento francamente injustas.
Neste combate têm estado presentes também muitas associações de desenvolvimento que, sob formas organizacionais inovadoras, privilegiam filosofias de actuação em que o incentivo ao auto-reconhecimento dos problemas, à cooperação e ao aproveitamento de sinergias entre entidades com forte enraizamento local constitui pedra de toque. Convém não desperdiçar as potencialidades deste movimento semi-institucionalizado, mas por vezes muito activo, de animação sócio-cultural em prol do desenvolvimento, até porque, de modo geral, tem revelado grande sensibilidade à valorização dos recursos endógenos e à necessidade de contrariar os efeitos da desertificação humana e ecológica.
Um dos grandes objectivos da Jornada sobre a Interioridade que decidi promover consiste, aliás, precisamente, em tentar demonstrar que as dificuldades de desenvolvimento destas regiões não são uma fatalidade intransponível
E, a meu ver, não o são, por duas ordens de razões fundamentais:
- porque existem nas regiões competências, vontades, recursos e projectos capazes de viabilizar de forma sustentável processos de desenvolvimento; e porque, por outro lado,
- é possível prosseguir e aperfeiçoar políticas de âmbito nacional inspiradas por desígnios de solidariedade com as regiões mais desfavorecidas.
Pois bem: ao procurar aproximar-me, no terreno, das dificuldades concretas dos cidadãos (mas também da sua vontade de participação na resolução dos problemas), ao procurar dar visibilidade aos esforços conjuntos da Administração Pública Central, Local e Regional na definição de projectos de desenvolvimento exemplares, ao revelar as potencialidades da iniciativa empresarial na criação de condições para a fixação das populações - em todas estas circunstâncias a minha intenção tem sido ainda a de dar ao País um sinal inequívoco de que o reforço da identidade e da coesão nacionais é, num quadro de integração da Europa, uma condição necessária do próprio desenvolvimento.
Nem sempre se dá o devido relevo a esta exigência de harmonização e integração no plano nacional dos anseios e condições de vida das populações de todas as regiões do País.
A verdade é que, quando somos confrontados com indicadores que nos revelam crescentes atrasos de regiões inteiras, não apenas em relação aos padrões comunitários, mas mesmo em relação aos níveis médios nacionais, temos de aceitar que aí se possam gerar alguns sentimentos de desmobilização colectiva face aos desafios de modernização e desenvolvimento que o País tem pela frente. Ora, sem uma identificação forte com grandes desígnios nacionais não chegará a haver partilha autêntica de esforços nem corresponsabilização séria na concretização dos projectos que os consubstanciam. E pode abrir-se a porta a regionalismos tão agressivos quão estéreis.
Temos a obrigação estrita de os evitar, não propriamente em nome de um nacionalismo ultrapassado que teime em ver nas fronteiras do País o términus de todas as virtudes, mas em nome da solidariedade entre cidadãos e regiões identificados com uma longa história feita em comum e com uma herança cultural aberta ao Mundo, mas singular.
Acredito que o aprofundamento de algumas mudanças de orientação em matéria de desenvolvimento regional, a que já me referi, contribua para reforçar os laços de natureza cultural, económica e afectiva que ligam as várias parcelas do todo nacional.
Há que contar, por outro lado, no plano das políticas europeias, com estratégias de integração que não subordinem, para além do razoável, o princípio democrático da igualdade de oportunidades às exigências da modernização e da competitividade.
Não é aceitável que o agravamento de assimetrias regionais seja um dos preços a pagar, em espaços nacionais globalmente frágeis como o nosso, pelo rigoroso cumprimento dos critérios de Maastricht.
Como muito bem sabem, começa a estar definitivamente ultrapassado o tempo em que dominavam concepções de desenvolvimento (e, em particular, de desenvolvimento regional) estritamente limitadas à componente do crescimento económico.
Felizmente, aceita-se, hoje, com alguma facilidade, que o desenvolvimento não é mera questão aritmética ou contabilística e que, entre os recursos disponíveis para o promover, se incluem elementos tão diversos como o património artístico e arquitectónico herdado, as técnicas produtivas tradicionais ( eventualmente recriadas pelas novas tecnologias ), a autenticidade da paisagem agro-rural, a qualidade ambiental e das riquezas naturais, a originalidade das culturas locais, as solidariedades comunitárias remanescentes, a qualidade de vida de centros urbanos de pequena e média dimensão - e tantos outros aspectos outrora subvalorizados pelos técnicos desta área.
A par de uma tal mutação na forma de entender o conteúdo do desenvolvimento, mudanças importantes foram também operadas, como se sabe, em termos das próprias metodologias de intervenção utilizadas.
Assim, de políticas de desenvolvimento concebidas e executadas por instâncias de decisão centrais, centralizadas e centralizadoras, foi-se caminhando para formas de actuação sintonizadas com as aspirações das populações (elas próprias previamente auscultadas) e que, além disso, apelam ao envolvimento e participação criativa de uma multiplicidade de actores locais.
Tenho procurado, ao longo destes dias de contacto próximo com as realidades sócio-económicas do Interior, chamar a atenção dos portugueses para algumas dificuldades, mas também para efectivas oportunidades de desenvolvimento que estão ao nosso alcance, sobretudo se levarmos a sério esta visão não economicista nem tecnocrática do problema.
Não estou a falar de qualquer utopia sem materialização à vista. Estou a falar de realizações efectivas, de esforços e resultados concretos da acção conjunta de governantes, autarcas, empresários, associações empresariais, instituições de ensino e formação, agências de desenvolvimento, instituições de solidariedade social, professores, artistas, técnicos e intelectuais e muitos outros cidadãos anónimos que militam em prol do bem estar das populações.
Escusado será dizer que, como Presidente da República, encaro com orgulho todos os exemplos de mobilização bem sucedida de energias e competências dos actores locais do desenvolvimento e, por isso, não deixarei de lhes dar o maior apoio possível ao longo do mandato para que fui eleito.
Não sinto igualmente a obrigação de me interrogar - e esta é uma ocasião para o fazer em excelente companhia - sobre algumas questões de âmbito mais geral, que presumo terem influência decisiva na definição das oportunidades e margens de manobra que lhes são propiciadas.
A primeira questão diz respeito à situação e perspectivas da agricultura portuguesa.
A importância económica e social do sector agrícola não pode ser ignorada. De facto, quer o encaremos na perspectiva da sua função estratégica de produção de alimentos, quer na da preservação do ambiente, do espaço físico e dos recursos naturais, é óbvio que temos de lhe atribuir um lugar cimeiro entre as prioridades das políticas de desenvolvimento. Se tivermos em conta, por outro lado, as enormes capacidades da agricultura e dos sistemas sociais adjacentes para acolherem e integrarem populações em situação crítica (lembro o caso do retorno de portugueses residentes nas ex-colónias e, mais recentemente, a absorção de desemprego gerado nos sectores em crise), forçoso é concluir que ao mundo agro-rural cabe um papel de grande relevância em sociedades tão marcadas como as nossas por fenómenos de instabilidade e precarização.
A década de integração económica que agora termina deixa o sector agrícola português, não obstante melhorias parcelares conhecidas, numa situação globalmente mais vulnerável. É um facto que nos obriga a repensar seriamente aos orientações da Política Agrícola Comum e a preparar com cautela extrema a participação portuguesa em futuras negociações. Estou certo de que os nossos agricultores não deixarão de se mobilizar, através das suas Associações, para esta importante tarefa. Alguns resultados positivos alcançados pela agricultura portuguesa em certos domínios dão a entender que essa mobilização é indispensável e dará frutos.
Outro tipo de reflexão que, ao abordar os problemas da interioridade, me parece incontornável reporta-se ao papel do sistema urbano nas políticas de desenvolvimento regional.
Sabe-se que as tendências de urbanização em Portugal não têm contribuído, como seria desejável, para o reforço da equidade territorial e da coesão nacional.
Limito-me a assinalar, a tal respeito, a excessiva litoralização do sistema urbano nacional (ela própria polarizada em torno de duas áreas metropolitanas), a escassez de centros intermédios entre, de um lado, as duas grandes aglomerações e, do outro, os centros com dimensão próxima dos cem mil habitantes e ainda uma articulação deficiente entre rede urbana e sistema de acessibilidades.
Relativamente aos centros de média dimensão, sublinham os especialistas que tem aumentado o respectivo efeito polarizador, admitindo, porém, ainda, quanto aos que se situam no interior do País, que o seu crescimento tende a operar-se com despovoamento e desvitalização dos espaços rurais circundantes.
Está colocado aqui um desafio aos responsáveis pelas políticas de cidades, ordenamento do território e desenvolvimento regional, mas suspeito que se trate de um daqueles domínios em que não há soluções predeterminadas nem, muito menos, boas soluções concebidas ao arrepio de uma efectiva concertação entre instâncias de decisão de base local, regional e nacional.
Impondo-se, sem dúvida, partir de uma orientação estratégica de referência para o conjunto do território nacional ( em que, aliás, não poderão perder-se de vista os condicionalismos da integração em espaços mais vastos), não vejo que se possa avançar neste terreno sem uma auscultação e participação autênticas das instituições locais, públicas e privadas e sem uma coordenação eficaz de políticas sectoriais.
Não me parece utópico admitir que deste esforço de articulação entre uma perspectiva global para os problemas do espaço e os interesses, aspirações e projectos de nível local e regional possam resultar - como já tem sido proposto - autênticos pactos territoriais para o desenvolvimento regional sustentado. É de esperar que, construídos estes mais numa perspectiva de cooperação e de complementação de meios do que numa óptica de pura competitividade entre regiões, deles venham a resultar, a breve prazo, espaços urbanos equilibrados, revitalizados e atractivos, quer em termos de qualidade de vida, quer mesmo em termos estritamente económicos. As próprias políticas de Conservação da Natureza ganhariam, a esta luz, alcance adicional.
Acentuar a importância de factores não estritamente económicos (ou seja, culturais, simbólicos, ambientais, institucionais) nas estratégias de desenvolvimento não pode fazer-nos esquecer que este não emerge nem se consolida sem empresas e sem empresários. Os próprios pactos territoriais a que ainda agora me referi esvaziar-se-ão de conteúdo útil se não envolverem estes últimos como parceiros interessados e actuantes.
As pequenas empresas, concentrando grande parte dos postos de trabalho da indústria e comércio das zonas rurais constituem um segmento especialmente influente nas dinâmicas de desenvolvimento local. Mas sabe-se que, sobretudo em fase de arranque, são muito grandes as dificuldades que elas têm de enfrentar nos planos técnico, financeiro e comercial - o que conduz a elevados riscos de insucesso.
A organização de estruturas locais e regionais de formação, assistência técnica e de assessoria às empresas, sobretudo neste momento inicial do seu ciclo de vida, reveste-se, assim, de importância crucial. Penso que ao associativismo empresarial cabe dar uma parte da resposta para o problema. Mas também julgo ser indispensável implicar nessas tarefas os órgãos da administração pública (autarquias, escolas, centros de emprego…), ainda que, para tanto, se exija criatividade e algum sentido inovador no desenho das fórmulas organizativas mais adequadas.
A expansão da escolarização - que, hoje, é já um facto indesmentível no mundo rural - pode contribuir para dar um impulso importante à criação e dinamização de pequenas empresas nestas regiões. É que, se, por um lado, este aumento do nível de instrução das populações tende a incrementar a procura de bens e serviços cuja produção se ajusta bem às especificidades daquele tipo de empresas, ele não pode deixar de influenciar também, positivamente, a formação dos trabalhadores e dirigentes e, portanto, indirectamente, os patamares de produtividade e qualidade alcançáveis. Espero que daí decorram igualmente progressos efectivos nas condições de trabalho e garantias de emprego dos trabalhadores.

Compreende-se que os efeitos da mundialização da economia e, em particular, da concorrência no mercado comum europeu coloquem as pequenas empresas das regiões interiores perante desafios para que não é fácil encontrar respostas prontas e eficazes. Talvez eles não sejam, apesar de tudo, mais complexos ou mesmo inteiramente diferentes de outros que os países e regiões menos desenvolvidos sempre tiveram de enfrentar. Não vamos por isso ficar paralisados, rendendo-nos à fatalidade de umas tantas tendências dos processos económico-sociais contemporâneos.
Acabei de enunciar, sem qualquer preocupação de exaustividade, algumas questões de índole geral que me parece indispensável aprofundar a propósito das perspectivas de desenvolvimento do Interior.
Estou certo de que no debate que vai seguir-se outras dimensões serão abordadas, porventura mais relevantes do que as que eu próprio sugeri. Ficaremos todos a ganhar com esse alargamento de horizontes e com o confronto de pontos de vista que necessariamente dele decorrerá.
Devo confessar que, preparando-me para vos ouvir com atenção, faço questão de manter bem presentes no meu espírito as imagens dos homens e mulheres do Interior com que tenho contactado, não só durante os últimos dias, como em muitas outras viagens pelo País. São rostos que, aparentando resignação, trazem muitas vezes as marcas da solidão, de aspirações eternamente adiadas, de saudade pelos que saíram, de expectativas profissionais frustradas, de desejos de participação recalcados. Muitos rostos, muitos silêncios.
Rostos que exigem um desenvolvimento com rosto.