Jornada da Interioridade - Encerramento da Conferência "PMES e Artesanato"

Serpa
14 de Junho de 1997


Tenho vindo a efectuar nos últimos dias uma série de contactos no Interior do País, com a intenção de reafirmar a importância que atribuo à problemática das assimetrias de desenvolvimento e todo o meu inconformismo perante os bloqueamentos das estruturas produtivas que afectam extensas parcelas do território nacional e os dualismos sociais deles decorrentes.
As questões da equidade territorial, da concretização do princípio da igualdade de oportunidades e, portanto, também, da própria coesão nacional preocupam-me desde há muito.
Mas essa preocupação não pode deixar de ser renovada à luz dos actuais condicionalismos da integração da economia portuguesa no espaço europeu.
É que, muito embora não me pareça justo endossar para instâncias de decisão da União a responsabilidade de debilidades estruturais que, afinal, encontram as suas raízes fundamentais nas vicissitudes da história nacional, não posso deixar de me interrogar sobre as consequências de alguns dos rumos traçados pela Europa em direcção à Moeda Única.
Tenho vindo a insistir na necessidade imperiosa de o projecto europeu não dissociar as exigências da convergência nominal das da coesão social, sob pena de se poderem vir a instalar nas nossas sociedades profundas desigualdades e marginalizações injustas.
O agravamento de assimetrias de desenvolvimento entre regiões é, seguramente, uma das consequências possíveis de uma estratégia de integração que subordine, para além do razoável, o princípio democrático da igualdade de oportunidades às exigências da modernização e da competitividade.
Ora, se, enquanto europeus, quisermos ser fiéis a um modelo social que encontrou na conquista e defesa de um núcleo duro de direitos sociais um emblema civilizacional próprio, compete-nos não transigir com aquele tipo de evoluções.
A emigração de muitas centenas de milhar de portugueses foi, na década de sessenta e início da de setenta, o afloramento mais doloroso das assimetrias e injustiças sociais motivadas pelo atraso económico e pelo isolamento de Portugal.
O fenómeno está, em boa medida, ultrapassado. Importa, todavia, não apagar da memória as marcas do que foi esse esforço colectivo de reacção à adversidade e às injustiças sociais e reconhecer o papel dos emigrantes na dinamização das actividades económicas e na revitalização de muitas colectividades do interior. Esperemos que o continuem a ter, na sequência de um merecido retorno às suas terras de origem.
O principal problema que o espaço rural do Interior tem hoje de enfrentar continua a ser o da dificuldade de fixação da população, mas agora conjugado com a necessidade do seu rejuvenescimento. Nalgumas áreas registam-se das mais baixas densidades demográficas, elevadíssimas taxas de envelhecimento e, portanto, índices de vitalidade demográfica muito desfavoráveis.
Uma tal rarefacção populacional - que nalguns casos se aproxima de uma autêntica desertificação humana, - tem de ser contrariada, não só através de incentivos e de políticas sectoriais concertadas que dinamizem as actividades produtivas, como ainda por intermédio de um reordenamento das formas de ocupação do território que permita às cidades do interior absorver os fluxos migratórios oriundos dos espaços rurais contíguos e, eventualmente, enquadrar o retorno de antigos migrantes. Escusado será acrescentar que as políticas de educação e de formação profissional constituirão outro pilar fundamental de qualquer projecto de desenvolvimento do Interior.
A revitalização económica destas regiões não pode deixar de passar pela agricultura. Sabe-se que a última década não se revelou globalmente favorável ao fortalecimento das estruturas produtivas do sector, o que nos obrigará a reflectir com realismo e conhecimento de causa sobre as orientações da Política Agrícola Comum e a preparar criteriosamente a nossa participação em futuras negociações sobre a matéria.
Aproveito entretanto para homenagear todos aqueles que têm participado com êxito no esforço de modernização da agricultura portuguesa, no difícil contexto concorrencial em que nos encontramos. Quer através de melhorias tecnológicas e de gestão, quer através da criação e certificação de produtos de grande qualidade, quer ainda através de fórmulas de comercialização inovadoras, eles têm sabido demonstrar que há um lugar para a afirmação da economia portuguesa neste domínio.
Neste breve inventário de caminhos a percorrer para ultrapassar as debilidades económico-demográficas do Interior, outro ponto a relevar prende-se com o papel dos centros urbanos nas políticas de desenvolvimento regional.
Sublinham os especialistas que, no conjunto do País, tem aumentado o efeito polarizador dos centros de média dimensão; admitem, porém, quanto aos que se situam no interior, que o seu crescimento se esteja a fazer à custa do despovoamento e desvitalização económica dos espaços rurais circundantes.
Está colocado aqui um desafio muito importante aos responsáveis pelas políticas de ordenamento do território, sendo certo que este constitui um domínio em que se impõe a articulação de uma estratégia de referência para o conjunto do território nacional com os interesses, aspirações e projectos de nível local e regional.
A ideia de fazer emergir desse esforço de concertação verdadeiros pactos territoriais para o desenvolvimento regional sustentado parece-me particularmente fecunda. Se esses pactos forem construídos mais numa perspectiva de cooperação e de complementação de meios do que numa óptica de competitividade interregional, é de esperar que deles venham a resultar espaços urbanos equilibrados (bem mais equilibrados que as manchas suburbanas das áreas metropolitanas do Litoral) e bastante atractivos em termos de qualidade de vida e mesmo no plano estritamente económico. As próprias políticas de Conservação da Natureza, tão necessárias mas tão incompreendidas, ganhariam, a esta luz, creio eu, um alcance adicional.
Estou a aproximar-me, já se vê, de um terceiro grande núcleo de questões suscitadas pelo desenvolvimento do Interior.
Refiro-me ao papel do sistema empresarial na dinamização sócio-económica das regiões. E, com isso, entro mais directamente na temática deste Encontro.
Vai-se aceitando hoje, com alguma facilidade, que o desenvolvimento não é uma questão meramente quantitativa e que, no conjunto de recursos disponíveis para o incentivar, se integram elementos tão diversos como o património cultural herdado, as técnicas produtivas e saberes-fazer tradicionais, a autenticidade da paisagem agro-rural, a qualidade ambiental, a originalidade dos modos de vida e das solidariedades comunitárias que persistem - e tantos outros aspectos outrora completamente ignorados por muitos técnicos desta área.
A verdade é que esta preocupação em acentuar a importância de factores não estritamente económicos nas estratégias de desenvolvimento não deve fazer-nos esquecer que este só emerge e se consolida com empresas e com empresários.
Cabe, em particular, às pequenas empresas um papel assaz influente nas dinâmicas de desenvolvimento local. Elas concentram grande parte dos postos de trabalho da indústria e comércio das zonas rurais e têm-se expandido em sectores favoráveis à preservação da qualidade de vida e dos equilíbrios ambientais, tais como o turismo cultural e ecológico, a recuperação do artesanato tradicional, a requalificação e comercialização de produtos agrícolas, etc.
Sabe-se, contudo, que especialmente na primeira fase do seu ciclo de vida, as pequenas empresas enfrentam grandes dificuldades nos planos técnico, financeiro e comercial - o que conduz a taxas de insucesso elevadas. Impõe-se, por isso, com a participação do associativismo empresarial e de múltiplas instâncias da administração pública ( escolas, autarquias, centros de emprego… ), criar estruturas regionais e locais de assistência técnica, formação e assessoria às empresas, sobretudo na sua fase de arranque e afirmação no mercado.
Compreende-se que os efeitos da globalização e, em particular, da concorrência no mercado comum europeu coloque as pequenas empresas das regiões interiores perante desafios para que não é fácil encontrar respostas eficazes.
Olhando para o conjunto de temas discutidos neste Encontro e para o leque de personalidades que reuniu, fico com a convicção de que os problemas e oportunidades ao alcance das PME’s estão a ser devidamente ponderados pelos interessados e acompanhados pelos responsáveis governamentais.
É um bom prenúncio.
Bom prenúncio quanto à possibilidade de combater as desigualdades de desenvolvimento é também a existência no terreno de actores locais com conhecimento e grande empenhamento na resolução dos problemas.
Devo referir, em primeiro lugar, o papel dos autarcas.
Além de serem eles, normalmente, os primeiros a diagnosticar com realismo os problemas, têm tomado a iniciativa de reivindicar, junto do poder central, medidas correctoras adequadas, Não hesitando, por outro lado, em avançar para soluções de tipo associativo que começam a transcender os limites territoriais dos Municípios, cabe-lhes o mérito de demonstrar na prática novas virtualidades da descentralização administrativa. A diversidade e qualidade dos equipamentos e serviços postos à disposição das populações são, em muitos casos, o emblema mais notável da obra realizada no Portugal Democrático pelo Poder Local. Mas importa não ignorar, além disso, o contributo que os eleitos locais deram, discreta mas eficazmente, para o reforço da participação das populações na defesa dos seus legítimos interesses, isto é, para a própria revitalização, no dia a dia, de alguns dos mais nobres desígnios da própria democracia.
Chamo a atenção, em segundo lugar, para a acção de associações de desenvolvimento local, cujas filosofias de actuação assentam no incentivo à cooperação e ao aproveitamento de sinergias entre entidades com forte enraizamento local. Optando quase sempre por fórmulas organizacionais inovadoras, este movimento semi-institucionalizado de animação sócio-cultural tem potencialidades que não podem ser desperdiçadas, até porque revela sensibilidade à valorização de recursos endógenos e à necessidade de, num mesmo combate, contrariar as tendências de desertificação humana e ecológica.
Um dos objectivos da Jornada sobre a Interioridade que promovi consiste em demonstrar que as dificuldades de desenvolvimento destas regiões não são uma fatalidade. Desde logo porque, como acabámos de ver, há vontades, recursos e projectos capazes de viabilizar processos de desenvolvimento sustentável. E, por outro lado, porque me parece possível prosseguir e aperfeiçoar políticas de âmbito nacional inspiradas por desígnios de solidariedade com as regiões mais desfavorecidas.
Creio encontrar bons indícios destas últimas em decisões económicas e sociais recentes visando quer o alargamento do âmbito de medidas de criação de empregos especialmente dirigidas aos mais jovens, quer a protecção às famílias e aos idosos pobres, quer ainda o incentivo à criação de microempresas.
Se for possível continuar a avançar segundo esta orientação, e se aperfeiçoar em permanência a articulação entre políticas comunitárias, políticas sectoriais e políticas de âmbito regional e local, sem deixar de apostar ainda na descentralização de decisões e na participação dos agentes económicos locais, estou certo de que poderão ser dados passos seguros no combate contra algumas assimetrias de desenvolvimento francamente injustas.
Sabem, de resto, V. Ex.as que o meu modo de olhar Portugal raramente concede espaço ao pessimismo.
É que, para mim, não há destino colectivo que se não possa contrariar, pelo menos em parte, com as armas do inconformismo, da perseverança e da solidariedade.
Gostaria, por isso, de terminar esta intervenção, trazendo-vos palavras de Miguel Torga, esse profundo conhecedor das coisas, bichos e gentes do Interior.
Escreveu ele no Diário, algures no Gerês, a 8 de Setembro de 1954, um brevíssimo poema que intitulou, precisamente, “Destino”. Eis o que nos diz, num daqueles milagres de concisão e de explosão de sentidos só possíveis na linguagem dos grandes poetas:
Destino
Começa um rio numa gota de água
O sonho é que avoluma o corpo da nascente
Fonte:
Tão delicada, e hás-de ser torrente
a saltar fragas e a rasgar o monte.