Sessão Comemorativa do 10 Aniversário do CITEFORMA - Uma Homenagem a António Janeiro

Lisboa
19 de Novembro de 1997


O homem que aqui nos junta era uma personalidade invulgar, que se afirmou como um sindicalista de excepção num período particularmente intenso da nossa história contemporânea.
Não me deterei no elogio do António Janeiro, já aqui feito por um dos amigos que ele mais prezou.
Mas quero frisar que a personalidade que aqui nos reúne morreu, mais jovem do que muitos dos aqui estão, podendo dizer, como Neruda, “confesso que vivi”.
E viveu, como sabemos, alguns dos momentos essenciais da construção do sindicalismo moderno português, contribuindo de modo decisivo para a institucionalização da democracia portuguesa.
Ao homem de acção que soube afirmar-se nesse terreno, sempre difícil, que é o das relações entre o sindicalismo e a política, ao dirigente duma organização sindical representativa e moderna, ao sindicalista que soube conciliar a defesa da liberdade sindical e a acção reivindicativa em conjunto com sindicatos de diferentes orientações, a esse homem que preferia a negociação mas organizou algumas das mais duras greves que o nosso País conheceu na década de 80, quero prestar a minha homenagem.
E decidi fazê-lo partilhando convosco algumas reflexões quanto ao que considero ser um dos principais desafios ao sindicalismo e à política neste final de século: o de reconstruir as condições e os instrumentos da solidariedade social.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
As sociedades inigualitárias em que vivemos conhecem, desde há mais de duas décadas, uma crise persistente do modelo social que se foi construindo a partir do “New Deal” norte-americano e do desenvolvimento do modelo social europeu.

Hoje, a competição empresarial exacerbada questiona a lógica do compromisso laboral que se baseou na partilha dos ganhos de produtividade das empresas, o desemprego deixou de ser ocasional e de curta duração, instalaram-se a exclusão social e as novas formas de pobreza.
Se há três décadas atrás a eficácia e a representatividade dos sindicatos se media, antes de mais, pela capacidade que revelassem de mobilizar os trabalhadores para os desafios da partilha dos ganhos da produtividade, as décadas de oitenta e de noventa têm confrontado os sistemas de relações industriais com os desafios da diferenciação de interesses dos vários grupos de trabalhadores, da desregulamentação e do desemprego.
À dualização e à segmentação sociais, decorrentes deste conjunto de modificações, vieram juntar-se a crescente integração regional dos espaços económicos e as alterações geoestratégicas simbolizadas pela queda do muro de Berlim.
Conhecem-se os resultados: os sacrifícios pedidos nas conjunturas económicas difíceis deixaram de ter assegurada a compensação esperada nas conjunturas favoráveis da vida das empresas, tornou-se mais difícil a negociação de compromissos entre assalariados e empresas e menos espontânea a solidariedade entre trabalhadores.
Em consequência, o equilíbrio entre os poderes económicos e sociais, o conteúdo e as prioridades da agenda política são hoje profundamente diferentes em toda a Europa democrática, pondo em causa os termos tradicionais do pacto social.
A crise de identidade e as dificuldades estratégicas que atravessam todos os actores sociais e políticos europeus têm-se traduzido, também entre nós, numa grande dificuldade em reformar o compromisso produtivo típico dos anos 70.
E, no entanto, estou certo que é indispensável fazê-lo.
Primeiro, porque o pacto social tradicional não responde com eficiência suficiente aos problemas do desemprego estrutural, da desigualdade de oportunidades e do alargamento e aprofundamento da pobreza e da exclusão sociais.
Segundo, porque é preciso adaptar os sistemas de regulação do mercado de trabalho às crescentes exigências de qualificação dos trabalhadores e de eficiência das empresas e ajustar os sistemas de protecção social quer à necessidade de inserção social dos grupos desfavorecidos, quer à crise financeira do Estado Providência.
É verdade que Portugal, tal como a generalidade das sociedades europeias, está confrontado com um problema de competitividade e, portanto, de emprego e de bem estar social.
Mas é igualmente certo que o desrespeito e a degradação dos direitos sociais estabelecidos tem vindo a excluir do emprego e da participação política uma parte dos cidadãos, o que diminui a coesão e a governabilidade das nossas sociedades.
Julgo, por isso, que se equivocam os que opõem a defesa estrita dos interesses que representam à sua participação na reforma do modelo social, optando por uma em detrimento da outra.
Primeiro, porque a experiência das décadas de 80 e de 90 mostra que o diálogo social permite obter, com muito menores custos sociais, resultados em termos de emprego e de competitividade empresarial idênticos aos que o radicalismo neo-liberal realizou.
Depois porque, a meu ver, a defesa dos interesses empresariais e laborais não pode deixar de enfrentar, nos tempos que correm, os dilemas da flexibilidade e da precariedade.
Creio que o desafio está em enfrentar os problemas dos nossos dias e, a partir dos problemas concretos, reconstruir os instrumentos da solidariedade social que a situação exige.
A necessidade de aumentar a produtividade com que as empresas estão confrontadas depende, em boa parte, das possibilidades que os trabalhadores tiverem de melhorar a sua qualificação e a sua eficiência.
Existe um vasto campo de negociação que vai do acesso à formação ao reconhecimento das qualificações obtidas e de ambas às decisões sobre competitividade e partilha dos ganhos assim obtidos.
Há, pois, razões objectivas para que todos se sintam perdedores quando não for possível chegar a acordo sobre algumas das reformas do mercado de trabalho ou quando as dificuldades de aplicação dos acordos obtidos limitarem o alcance das decisões tomadas.
A meu ver, quer os actores económicos e sociais, quer os detentores da responsabilidade política decorrente do sufrágio eleitoral estão confrontados com a necessidade de repensar a articulação entre a representatividade, a capacidade de negociar compromissos e os modelos de relacionamento das associações patronais e sindicais entre si e destas com os poderes públicos.
A meu ver, deveríamos reconhecer abertamente que a crise do sistema de representação de interesses e o modelo de relações profissionais existentes se contam entre as causas relevantes das dificuldades persistentes que o nosso País tem enfrentado em concretizar reformas.
Reformas de que depende, quer a melhoria da eficiência económica, quer a limitação das desigualdades induzidas pelo mercado.
Quero também reafirmar aqui que, no meu entender, a questão social não é resolúvel sem que se definam novas fronteiras entre o espaço público e o espaço privado, entre a legitimidade eleitoral e o reforço da participação das organizações de interesses na preparação e na execução das políticas públicas.
Em meu entender, aqueles a quem o sufrágio eleitoral conferiu a legitimidade e a responsabilidade de decidir e sem que percam, ou possam sequer ver afectadas, as suas competências e atribuições têm muito a ganhar com um conhecimento aprofundado das opiniões dos agentes económicos e sociais e, em muitos casos, com a associação destes à aplicação das políticas públicas.
Esta partilha de responsabilidades exige, pois, um debate aberto, transparente e aprofundado sobre a representatividade, a legitimidade, a função e os meios de que dispõem as organizações patronais e sindicais, um debate sobre o modo como se relacionam entre si e com os poderes públicos.
Refiro-me a um debate público que não exclua à partida nenhuma perspectiva e propicie a ocasião para ouvir, fazer dialogar e registar as contribuições dos especialistas, dos representantes dos interesses e dos responsáveis políticos.
Creio que um tal debate é essencial para que se possam tomar as decisões de que dependem a realização de algumas das reformas de que Portugal precisa para responder com mais sucesso às exigências que o desenvolvimento da cidadania e a reconstrução da solidariedade nos colocam neste final de século.
Muito obrigado.