Abertura do Ciclo de Conferência "O Desafio Europeu: Passado, Presente e Futuro"

Fundação de Serralves - Porto
27 de Setembro de 1997


Quero agradecer à Fundação de Serralves, na pessoa do seu Presidente, o amável convite para abrir este ciclo de conferências sobre “O Desafio Europeu”, que aceitei com o maior gosto.
O prestígio da Fundação, a alta qualidade dos participantes e a pertinência do tema asseguram, desde já, o sucesso desta iniciativa, que considero muito oportuna.
Estamos a atravessar um período crucial para a definição das grandes linhas políticas e institucionais que irão marcar o futuro de Portugal e da Europa. Esta circunstância exige de todos nós uma reflexão profunda e aberta para preparar e formar, em liberdade, as decisões de que depende, numa larga medida, a evolução da nossa comunidade política.
Não é, pois, de estranhar que as interrogações sobre o futuro da Europa ganhem uma importância acrescida à medida que a integração europeia se desenvolve. É natural e desejável que esse debate se intensifique, estando, como estamos, muito próximo da data prevista para as decisões que nos levarão à moeda única, um passo fundamental da construção europeia.
O passado da Europa, sobretudo a sua história durante o último século, constitui o ponto de partida natural para a definição do seu futuro.
O século XX foi, para citar a fórmula de um grande historiador, uma “era de extremos”, dominado na Europa por uma sucessão de guerras e de revoluções que mudaram radicalmente a sua posição internacional, bem como as relações entre os estados europeus.
No fim da “guerra civil europeia” que dominou a primeira metade do século, a Europa ficou em ruínas : moralmente, pela devastação provocada pelo genocídio totalitário ; politicamente, pela divisão imposta pela emergência de duas grandes potências ; economicamente, pela destruição de estruturas e recursos essenciais.
Essa situação sem precedentes levou muitos a pensar que a Europa tinha chegado ao fim e desistido de continuar a desempenhar a sua função na história.
Porém, contra todas as expectativas, os europeus puderam encontrar nas ruínas da guerra as sementes do presente. Nesse sentido, o fim da Europa foi o princípio de uma outra Europa.
A forma rápida e dinâmica como se processou a reconstrução económica da Europa bem como o desenvolvimento do chamado modelo social europeu revelaram-se decisivos para superar gradualmente as divisões impostas pela guerra fria. Foi de resto, em nome do “ regresso à Europa “ - a uma Europa que se tornara sinónimo da democracia pluralista, do estado de direito e da economia de mercado - que a Europa de Leste se libertou para tornar enfim possível unificar a Europa no seu todo.
Põe - se, portanto, com premência a questão do alargamento da União Europeia, que surge hoje como uma responsabilidade histórica indeclinável. Mas não é menos necessário garantir a solidez do projecto europeu através do aprofundamento da solidariedade entre os estados que o integram, atribuindo a indispensável espessura política às instituições que o orientam.
É, afinal, todo o futuro constitucional da Europa que está em questão.
A meu ver, a opção sobre o futuro constitucional da Europa depende do modo como se esclarecer a natureza de uma entidade internacional que desenvolve actividades, toma decisões e produz normativos que se impõem aos Estados nação que a constituem, influenciando, de modo cada vez mais intenso, a governação destes.
É nesta perspectiva que julgo que se devem avaliar as respostas à questão de saber em que medida é necessário e possível superar alguns dos impasses actuais da União Europeia.
A Europa encontra-se hoje perante uma situação inédita e de grande complexidade. È uma situação que obriga a tomar opções delicadas e em que o adiamento destas introduz necessariamente algumas dificuldades acrescidas.
Esta situação não é uma surpresa e decorre naturalmente do processo de integração europeia. Enquanto se tratou de criar uma simples união aduaneira a integração avançou, embora ainda assim de forma irregular, com avanços intercalados com fases de estagnação.
Não devemos subestimar o imenso progresso que constituiu para a Europa, do ponto de vista da paz e do desenvolvimento económico, a criação daquilo que chamei, de forma porventura demasiadamente simplista, uma “simples união aduaneira”. Mas não devemos também esquecer o enorme salto qualitativo que representa, para a Europa, o objectivo da criação da União Económica e Monetária
Julgo que, perante esta alteração qualitativa, temos o dever de nos questionarmos sobre a necessidade de aumentar a integração política capaz de garantir a manutenção de condições de coesão económica e social no conjunto da União Europeia.
Surgem assim as interrogações e perplexidades que explicam em grande parte as dificuldades de decisão.
Em primeiro lugar, porque um processo de integração económica e monetária pode conduzir, se não existirem políticas compensatórias adequadas, a uma maior visibilidade das disparidades económicas e de nível de vida entre as regiões que compõem o espaço em integração.
É, portanto, o princípio do respeito da igualdade entre os Estados membros e todo o grande objectivo do reforço da coesão económica e social que deve continuar a enformar as políticas estruturais comunitárias, sem o que todo o modelo social europeu será posto em causa.
Mas são também a profunda interrogação sobre o e, porventura, a crise do, pacto social tradicional que, em Portugal como nos outros Estados membros da União Europeia, hoje vivemos, a levantar o problema de saber como se poderá assegurar a arbitragem política entre a eficiência económica e os direitos sociais.
Durante as décadas de 80 e de 90 afirmou-se crescentemente uma concepção que tende a reduzir os problemas económicos à questão da competitividade empresarial e a conceber o campo das políticas sociais como um espaço residual limitado pela mudança induzida pelas tecnologias da informação, pelos efeitos da globalização dos mercados financeiros, pela mudanças geo-estratégicas decorrentes do fim da guerra fria e pela crítica às ineficiências das administrações públicas.
Para os adeptos destas concepções, não haveria escolha porque não haveria alternativa possível, isto é, as sociedades europeias teriam de encarar o facto de que a globalização mataria as especificidades nacionais e regionais e exigiria menor intervenção pública na regulação do desenvolvimento económico.
Colocada nestes termos, a questão social europeia deste final de século aparece formulada como um dilema que obrigaria a optar entre, por um lado, a criação de emprego com um incremento das disparidades sociais e da disseminação da pobreza ou, por outro lado, a defesa de níveis elevados de protecção social com manutenção ou crescimento do desemprego de massa.
Está bem claro que será muito difícil levar a bom porto a moeda única europeia se as opções dos Estados membros quanto à política de regulação do mercado de trabalho e de protecção social divergirem ao ponto de transformarem os respectivos custos num factor adicional de tensão interna dos Estados membros e, por consequência, da União Europeia.
Por outro lado, os resultados dos trabalhos dos especialistas mostram que nem há relações unívocas entre inovação tecnológica e mudança organizacional, nem entre desregulamentação dos mercados de trabalho e criação de emprego. A experiência recente dos vários Estados membro da União Europeia mostra igualmente que é possível obter níveis idênticos de sucesso em termos de emprego com métodos políticos que vão do tatcherismo ao consenso social holandês da última década.
Esta arbitragem é, portanto, queira-se ou não, um problema político.
E é um problema político que, no quadro dum mercado interno europeu completado com a moeda única, os Estados membros da União Europeia não podem resolver com total independência duns em relação aos outros.
Ao contrário do que sustentam adeptos dos modelos teóricos universalistas, tem-se vindo a mostrar que, mesmo no interior da União Europeia, existem diferenças significativas entre os sistemas educativos e formativos, entre os sistemas de emprego, entre o nível de informação e de participação dos trabalhadores nas decisões empresariais, entre o grau e as modalidades de protecção social, entre os sistemas de relacionamento das organizações de interesses com os poderes públicos.
E também há diferenças entre o nível de participação feminina no trabalho remunerado, na duração e na gestão do tempo de trabalho, no acesso à formação e nos níveis de qualificação, no nível e na estrutura dos rendimentos, no grau e nos padrões de precariedade do emprego e nos níveis e na composição do desemprego. Tudo isto tem tido evoluções diferentes segundo os Estados membros considerados.
Se estas diferenças coexistem e, por vezes, se acentuam mesmo no quadro da Europa comunitária, não teremos, então, de reconhecer que o desenvolvimento da dimensão social europeia constitui apenas uma forma de voluntarismo que, embora generoso, é irrealizável senão mesmo pernicioso?
Não será preferível resumir a Europa a um grande mercado em que a moeda única facilitará o desenvolvimento das economias nacionais, adaptando-as melhor à era da globalização?
Conto-me entre os que, sabendo que se está em terreno difícil, respondem negativamente a esta questão e, por isso, entendem que há que enfrentar as dificuldades com que estamos confrontados.
Em que medida é possível conjugar a indispensabilidade, a prazo, de instituições políticas supranacionais com o reforço da sua legitimidade democrática, quando é certo que esta tem estado ligada, até agora, basicamente às instituições do estado nação?
De que forma será possível encontrar uma arquitectura política para a Europa que garanta a necessária representatividade num espaço onde se encontra uma enorme diversidade cultural e linguística?
Em que medida será possível dotar a Europa de uma verdadeira política externa comum, sem a qual a união económica e monetária terá grandes dificuldades em funcionar de forma estável?
Será suficiente garantir uma cidadania europeia aos cidadãos dos nossos países para que eles sintam a Europa enquanto espaço de realização pessoal?
Estas interrogações não têm, como sabemos, respostas simples.
Mas julgo que a construção europeia nos obriga a buscar novas soluções para os problemas decorrentes da reconfiguração geo-estratégica com que a Europa e os Estados nação que a constituem estão confrontados neste mundo do pós-guerra fria.
Do mesmo modo, entendo que estamos confrontados com a necessidade de nos posicionarmos perante algumas tendências contemporâneas do desenvolvimento económico que, reduzindo ou sacrificando a solidariedade, acabam por limitar o exercício da liberdade e dos direitos políticos a muitos dos nossos concidadãos e diminuem a governabilidade das sociedades em que vivemos.
A concepção de Europa que eu perfilho é inseparável duma identidade europeia em que os valores da liberdade, da igualdade de oportunidades, da solidariedade, da qualidade de vida são inseparáveis da noção de cidadania e do princípio da igualdade entre Estados.
Não se trata de opor esses valores à eficiência económica, sendo, como é, verdade que as sociedades europeias em geral e a portuguesa em particular estão confrontadas com um problema de competitividade e, portanto, de emprego e de bem estar social.
E é verdade que se, neste mundo de competição económica crescentemente planetarizada, o mercado interno europeu não poderá ser construído sem esse passo essencial que é a criação da moeda única, no meu entender, é igualmente certo que esse mercado, porque se trata de sociedades democráticas, é e deve ser condicionado pela soberania do voto.
Por mim, entendo que deveríamos reconhecer que tais esforços de reformulação do modelo social europeu não permitiram ainda progressos suficientes no combate ao desemprego e à exclusão social.
Julgo igualmente que deveríamos assumir que, até agora, se tem tentado enfrentar a questão social e o problema da solidariedade dum modo duplamente limitado.
Em primeiro lugar, porque os constrangimentos decorrentes do programa de convergência nominal que visa a criação da moeda única europeia reduzem o espaço de manobra dos Estados membros.
Em segundo lugar, não se tem verificado no plano europeu, um desenvolvimento satisfatório da dimensão social.
Em terceiro lugar, argumentando com a garantia formal dos direitos cívicos e políticos, alguns remetem os direitos sociais para um plano residual, a desenvolver se e na medida em que a eficiência económica tenha gerado excedentes que o tornem possível e o funcionamento das relações entre os interlocutores sociais os consagre.
Não creio que se possa continuar a negar essas evidências que são, para mim, a limitação da cidadania política de todos os que são vítimas do desemprego e da exclusão social e a diferenciação social de oportunidades induzida pela segmentação social.
Conto-me entre os que pensam que a reforma dos mercados de trabalho e dos sistemas de protecção social europeus constituem exigências estratégicas deste fim de século.
Mas também penso que essas não poderão ser satisfatoriamente resolvidas sem que se repensem as fronteiras das competências, das responsabilidades e dos meios entre o espaço público e o espaço privado, entre a legitimidade eleitoral e o reforço dos sistemas de participação, tanto no plano nacional como no plano comunitário.
Se esta linha de raciocínio nos leva a responder positivamente à necessidade de organizar a solidariedade entre diferentes estados nação, entre cidadãos de línguas e tradições culturais diferentes, a resposta só pode ser, a meu ver, a de desenvolver o espaço público europeu, o que exige que se enfrente a questão do reforço da legitimação democrática desse mesmo espaço público alargado.
Sei bem que isso implica também o desenvolvimento de movimentos cívicos, de organizações não governamentais, de organizações de interesses, capazes de se afirmarem e de se relacionarem entre si e com os poderes públicos democraticamente legitimados de modo a que a vontade colectiva possa espelhar adequadamente o relacionamento, certamente complexo e difícil, entre diferentes que se reconhecem como agentes participantes dum futuro colectivo.
Dir-se-à que, ainda assim, identificar necessidades não é o mesmo que demonstrar a possibilidade de lhes dar resposta positiva e podem-se mesmo invocar alguns exemplos históricos que ilustram bem essa dificuldade.
Reconheço, naturalmente, que estamos num domínio em que as certezas são poucas e o voluntarismo político um instrumento insuficiente.
Mas não quero deixar de lembrar que a identidade nacional não é sempre um produto espontâneo, nem preexistiu todas as vezes aos estados nação.
Pelo contrário, em muitos casos, ela resultou de decisões políticas que, mesmo em contextos históricos em que a escolarização dos povos europeus, as possibilidades de comunicação e os factores de constrangimento colectivo eram bem menores do que hoje, moldaram a solidariedade entre diferentes e definiram os contornos de novas identidades colectivas.
Acresce que, do meu ponto de vista, se equivocam os que entendem a cidadania e a identidade europeia como alternativas à cidadania e à identidade nacionais.
Do que se trata, a meu ver, é de acrescentar uma nova referência identitária ao complexo de pontos de ancoragem em que se estrutura o nosso ser e o nosso agir.
Deixem-me terminar com uma nota de esperança.
Perante necessidades como aquelas que enfrentamos, creio que teremos tantas mais razões para recusar o pessimismo quanto mais lúcidos formos na abordagem das dificuldades e mais nos empenharmos na sua superação.
Portugal é um Estado antigo, uma velha nação e uma democracia nova.
Estou certo que nessas três qualidades encontraremos a sabedoria, a prudência e a vontade para fazer a nossa parte do futuro da Europa.