Sessão de Boas Vindas na Cidade de Haia

Nieuwe Kerk Haia
28 de Outubro de 1997


Senhor Burgomestre,
Agradeço-lhe as suas palavras e a forma tão cordial como nos acolheu nesta bela cidade e desejo transmitir, por intermédio de Vossa Excelência, uma calorosa saudação à população da Haia.
Da antiga “Casa de Caça do Conde” que esteve na sua origem, a Haia tornou-se numa cidade cosmopolita, que soube preservar e conciliar um rico património histórico e cultural com as exigências dos tempos modernos.
Esta síntese bem conseguida testemunhamo-la nós aqui, neste feliz encontro entre a sobriedade desta Igreja com o arrojo arquitectónico da nova Câmara Municipal concebida por Richard Meyer.
Admiramos a obra levada a cabo na Haia com vista a uma maior humanização dos espaços urbanos, à preservação do património, à protecção do ambiente, à recuperação das zonas mais antigas, à melhoria constante do quotidiano dos seus habitantes. E orgulhamo-nos que um português, aqui presente, Álvaro Siza Vieira, tenha dado o seu contributo para o grande esforço aqui realizado.
Senhor Burgomestre,
Minhas Senhoras e Senhores,
Nesta cidade, em cujo quotidiano estão presentes alguns dos mais altos ideais humanos - a paz e a concórdia, a justiça e o direito, a defesa do planeta -, quis homenagear a figura, entre todas admirável, de Baruch de Espinosa, que aqui viveu alguns anos da sua vida, trabalhou, morreu e está sepultado neste recinto
Esta homenagem que, em nome de Portugal, presto a Espinosa não se esgota na intenção de lembrar o descendente ilustre de portugueses judeus, cuja memória é merecedora do nosso reconhecimento e do nosso louvor. De facto, a vida e a filosofia do autor da “Ética” contêm uma mensagem tão actual que, penso, merecem ser apontadas como exemplo, ensinamento e fonte de reflexão às gerações do presente e do futuro.
Num tempo em que tudo parece começar e acabar no lucro e na satisfação dos interesses mais egoístas e imediatos, é bom termos presente uma vida dedicada ao saber e ao aperfeiçoamento dos homens e da sociedade humana, no sentido da justiça e do progresso. Os testemunhos que nos chegam dizem-nos que ele era simples, generoso e humilde, vivendo de muito pouco, e que, apesar da sua saúde frágil, amava a vida e era feliz.
Num Mundo em que, tantas vezes, tudo parece ser submetido ao pensamento único, à massificação, à conveniência prática e utilitária, é bom realçar a actualidade de uma filosofia que fez da liberdade de consciência e do risco de pensar de forma diferente o seu principal fundamento.
Num Mundo em que têm aparecido sinais inquietantes de chauvinismo, violência, racismo, exclusão, formas novas ou antigas dos vários irracionalismos, é bom lembrar o seu pensamento.
Esse pensamento constitui-se na defesa de que a política deve encarnar o exigência racional própria da natureza humana e de que a razão, a liberdade e a tolerância são antídotos contra a superstição e o fanatismo.
Isto sobretudo nas épocas adversas em que, como ele disse, os homens fabricam “inumeráveis ficções”, tomam “os delírios da imaginação e as pueris necessidades por respostas divinas”, declaram que “a razão é cega” e tratam “a sabedoria humana como vaidade”.
É bom também recordar o valor que Espinosa atribuiu à cooperação e à solidariedade, enquanto elementos essenciais à vida em sociedade, harmoniosa e geradora de paz.
Num tempo em que os medos e o pessimismo abrem as portas ao “vale-tudo”, ou ao seu reverso que é o “nada vale a pena”, é bom pensarmos na coragem de Espinosa, no seu amor pela humanidade, pela vida, pela natureza, pela liberdade. É bom conhecermos a sua fidelidade sem quebras a princípios, ideais, valores e convicções, a perseverança que pôs na procura do conhecimento, da justiça e da felicidade, a alegria serena que nele prevalecia sobre qualquer desconfiança ou ressentimento.
Este modesto polidor de lentes fez da sua vida um exemplo de independência de espírito e de autonomia pessoal. Era, como já foi dito, um dos homens mais dignos da história humana. Heterodoxo ameaçado por todas as ortodoxias, perseguido por todos os fanatismos, soube fazer da sua obra uma extraordinária meditação sobre o universo e o lugar nele do homem como ser livre. Espinosa não se cansou de pensar as condições da liberdade humana. Por isso, a sua filosofia é uma das mais modernas e influentes.
Aquele que tem sido louvado pelos maiores filósofos e cantado pelos maiores poetas tem nesta terra onde morreu um lugar de evocação e de memória. Aquele que queremos seja símbolo da amizade entre os nosso países, é por nós, hoje, homenageado, lembrando a sua mensagem de universalismo, tolerância e paz. Como dele disse o poeta português Jorge de Sena:

“Judeu sem sinagoga e sem península
ibérica de avós, moral geómetra
os ângulos mediu aos teoremas
da vida humana (...)
E sem de deus teólogo traçou
as linhas da cidade construída
segundo as leis dos anjos da razão
E Bento se chamava este coitado
da suma gentileza de existir-se
e de pensar-se em glória a paciência triste
de polir lentes sem ter deus nem pátria.
Mas só assim é que os cristais flamejam
em pura transparência apavorada”.