Sessão Solene na Sessão Plenária do Parlamento Europeu

Estrasburgo
18 de Fevereiro de 1998


É para mim um privilégio poder dirigir-me ao Parlamento Europeu, instituição exemplar que representa, de modo único, a natureza essencial da União Europeia como comunidade democrática.
Agradeço-vos, pois, esta oportunidade que me honra e que honra o país que aqui represento, e desejo, antes de mais, saudar todos os membros desta Assembleia, legítimos representantes de uma comunidade de nações empenhadas na prossecução de um projecto único e original.
A esta saudação associam-se naturalmente os membros do Governo Português e os representantes de todos os partidos com assento no Parlamento português que me acompanham nesta visita.
Permitam-me que dirija uma palavra especial aos deputados europeus meus compatriotas e a todos os funcionários portugueses que trabalham neste Parlamento, e que lhes expresse o meu reconhecimento pelo importante trabalho que desenvolvem, nestas instâncias, em prol dos ideais europeus.
Como europeísta convicto que sou, e também como antigo parlamentar, este encontro com todos vós, Senhor Presidente e Senhores Deputados, reveste-se, para mim, de um significado muito particular.
Senhoras e Senhores Deputados
Face aos desafios que se colocam à construção europeia, este Parlamento continuará a ter um papel central no debate das ideias e na definição das propostas que moldarão o nosso futuro colectivo.
Creio, pois, ser este o lugar mais apropriado para proceder a um balanço sobre o estado da União Europeia, nas vésperas do início de um novo ciclo no processo de integração e para vos dar conta das nossas perspectivas quanto à evolução deste processo.
Neste momento, na iminência da passagem à terceira fase da União Económica e Monetária e da criação da moeda única europeia, podemos constatar que conseguimos completar essa etapa crucial, não obstante o cepticismo dos profetas do declínio europeu e das resistências políticas e institucionais à mudança.
Esse resultado é um sucesso de que todos nos podemos congratular e para o qual o Parlamento Europeu e os seus deputados deram, a cada passo, um contributo decisivo.
Portugal é hoje um país que conseguiu, em boa medida, ultrapassar um atraso estrutural herdado de uma economia fechada. Não atingimos ainda, é certo, os níveis de progresso económico que desejamos, comparáveis aos dos países mais desenvolvidos da Europa. A abertura da nossa economia, a reconversão económica sob a pressão da globalização, têm tido, naturalmente os seus custos.
Mas, contra as perspectivas dos mais pessimistas, soubemos cumprir escrupulosamente, dentro dos prazos estipulados, todas as condições para garantir a participação plena na terceira fase da União Económica e Monetária.
A continuidade desta estratégia, definida em coerência com o tratado de Maastricht e os interesses nacionais, só pôde ser assegurada graças a um sólido consenso entre os principais partidos políticos portugueses, ao apoio das diversas correntes de opinião pública - algumas delas certamente críticas, mas todas compreendendo o alcance dos objectivos prosseguidos - , à abertura dos agentes económicos, dos empresários e dos sindicatos, dispostos a compreender os sacrifícios indispensáveis para responder aos desafios da modernização e da nova etapa da integração europeia.
Portugal estará, assim, entre os fundadores da moeda única, decidido a assegurar, com idêntico rigor, o sucesso de uma moeda europeia forte, instrumento essencial do progresso das nossas economias e de uma crescente afirmação europeia na cena mundial.
Estaremos na primeira linha deste novo ciclo da construção europeia com um natural orgulho, mas também com um espírito de responsabilidade acrescida quanto à nossa intervenção própria na edificação da Europa do próximo século.
Para os portugueses, este passo tem um significado histórico particular, que culmina a decisão esclarecida dos que quiseram associar o destino da nossa democracia à integração europeia de Portugal.
Derrubada a ditadura, reencontramo-nos plenamente com a nossa vocação multisecular. Não regressámos à Europa pois sempre dela fizemos parte. Mas assumimos por inteiro, com a liberdade e a democracia, a nossa identidade europeia, tal como retomámos a nossa genuína tradição humanista e universalista.
É esse o espírito com que celebramos, este ano, a nossa aventura marítima no 5º centenário da viagem de Vasco da Gama, e também, na Exposição Mundial de Lisboa, Expo 98, o encontro sempre enriquecedor entre povos e culturas, a paz e o progresso que desejamos ao alcance de todos, a solidariedade entre as nações.
Cremos que a importância de que se revestem os Oceanos, enquanto património da Humanidade, justifica a criação de uma Agência especialmente vocacionada para a sua defesa.
Estamos emprenhados em que esta Agência se instale em Lisboa e conceder-lhe-emos todo o nosso apoio e experiência multisecular nesta temática.
Senhoras e Senhores Deputados
Chegados a um momento de viragem, é nossa obrigação identificar os principais desafios do processo europeu, para podermos traçar o caminho seguro do nosso destino comum.
Para mim, são eles os seguintes: o alargamento da União; o modelo da construção europeia; e a necessidade de fazer face aos sinais de crise que se multiplicam nas nossas sociedades democráticas.
O alargamento da União, por forma a incluir as novas democracias da Europa central e oriental dentro das suas fronteiras políticas e institucionais, é, sem dúvida, o passo seguinte da construção europeia e do qual depende a sua própria credibilidade política.
Na medida em que estão subordinados a uma finalidade única, o aprofundamento e o alargamento da União Europeia são inseparáveis.
Portugal apoiou sempre, sem hesitações, as legítimas aspirações dos países europeus que, após o seu reencontro com a democracia, desejam partilhar o mesmo espaço de progresso, de liberdade, de paz e de segurança.
Congratulamo-nos com a fórmula encontrada que permite evitar um sentimento de exclusão nos países que, porventura, não adiram na primeira fase do alargamento da União.
Trata-se, para nós, portugueses, de um tema particularmente sensível, desde logo pela nossa própria experiência, onde a adesão à Comunidade Europeia foi um factor insubstituível de convergência entre a estabilização do regime democrático e o nosso “regresso à Europa” após a descolonização.
É, pois, para nós evidente que os países candidatos deverão beneficiar da mesma solidariedade que nos foi manifestada após o restabelecimento da democracia em Portugal.
Bem entendido, não quero nem poderia minimizar a complexidade do próximo alargamento; não podemos ignorar o estado das estruturas económicas dos países candidatos nem as previsões dos efeitos sociais da sua adesão.
Não podemos sobretudo aceitar que o alargamento se transforme num elemento de dissolução do projecto europeu, nem de fragilização do nível de integração ou do grau de coesão económica e social entre os Estados da União.
O alargamento não se faz, não se pode fazer, contra a coesão nem contra o grau de integração já conseguido.
De igual modo, o alargamento constitui um esforço comum para a União, um esforço de todos, e como tal terá de ser encarado.
Serão estes os objectivos por que nos pautaremos, com firmeza, mas nem por isso deixaremos de defender, responsavelmente, a necessidade do alargamento.
Senhor Presidente
Senhoras e Senhores Deputados
A segunda questão que desejo abordar convosco diz respeito aos modelos da construção europeia, que vão voltar a estar no centro dos nossos debates.
Não é minha intenção, nem tal seria apropriado, intervir como proponente de um modelo específico.
Mas gostaria de vos dizer que, na minha opinião, a especificidade e a força da União Europeia residem no facto de ser uma aliança de países democráticos e uma associação de entidades soberanas, de Estados antigos e velhas nações, justificadamente vinculados à sua individualidade e à sua identidade.
O processo de integração europeia tem avançado na medida em que tem sido possível, em cada etapa, encontrar formas de articular os interesses comuns com os interesse nacionais, fortalecendo reciprocamente os Estado e as instituições comunitárias.
A criação da moeda única representa, porém, um enorme salto qualitativo em relação ao passado.
Temos, pois, o dever de nos interrogar sobre a necessidade de aumentar a nossa integração política por forma a garantir a manutenção de condições de coesão no conjunto da União Europeia, o reforço da transparência democrática e uma melhor projecção da nossa identidade própria na cena internacional.
Creio que estamos todos de acordo quanto ao facto de o processo de integração económica e monetária poder conduzir, se não existirem políticas compensatórias adequadas, ao aprofundamento de disparidades económicas e do nível de vida entre as diversas regiões que compõem o espaço europeu.
O que me parece essencial é que a União preserve a sua natureza fundamental de uma associação de Estado soberanos, vinculados por interesses comuns, uma comunidade de iguais, onde se mantenha a posição relativa de cada Estado-membro, assente nos princípios da solidariedade e da coesão, indispensáveis para garantir a perspectiva de uma convergência económica real.
O campo das possibilidades está aberto à nossa capacidade de iniciativa, nomeadamente na expansão de uma comunidade de direito e de direitos, bem como no terreno da política externa e de segurança comum da União.
O desenvolvimento do Estado de direito representa um dos mais sólidos e antigos sinais de identidade da civilização europeia.
As nossas afinidades nesse domínio constituem um fundamento sólido, sobre o qual podemos multiplicar as iniciativas concretas, quer no sentido da convergência entre os modelos jurídicos nacionais, quer para construir os alicerces de uma cidadania europeia.
Esta via, para a construção gradual de uma identidade política europeia, assente na cultura dos direitos, parece-me ser mais produtiva do que as tentativas de impor, de cima para baixo, uma constituição europeia acabada e definitiva, sem contar com a participação dos cidadãos da Europa.
O domínio da política externa terá, pela força das coisas, um desenvolvimento lento. Por isso mesmo, é especialmente importante um empenho persistente para a fazer avançar, nomeadamente na resposta a situações de crise.
A Europa deve assumir responsabilidades acrescidas na defesa dos seus interesses comuns próprios, designadamente nas relações com a Rússia e a Ucrânia, bem como no processo de paz no Médio Oriente, nas relações com os nossos parceiros mediterrânicos, em relação à África e à América Latina.
Permitam-me que, mesmo resumidamente, refira alguns aspectos que reputo particularmente importantes neste contexto.
A Aliança Atlântica desempenha uma função decisiva como garante da estabilidade regional, e pôde confirmar a sua posição central na arquitectura de segurança europeia.
Mas é indispensável desenvolver, com a UEO, a Identidade Europeia de Defesa e de Segurança, factor indispensável e acrescido de estabilidade, de reforço da cooperação europeia, e de institucionalização dos novos equilíbrios da nossa relação com os aliados norte-americanos.
É necessário prosseguir, na Bósnia, o esforço que permita, não apenas a continuada cessação das hostilidades, mas garantir efectivas condições de paz.
Temos também responsabilidades particulares relativamente aos nossos parceiros mediterrânicos, de cujo progresso e estabilidade dependem, em larga medida, a nossa própria segurança.
O processo de Barcelona tem de avançar de forma decidida, evitando a acumulação de frustrações e ressentimentos bem compreensíveis, que se repercutem tão negativamente sobre a nossa própria credibilidade internacional.
No que toca a Turquia, a sua vocação europeia não está em causa, desde que respeitados os padrões que a mesma pressupõe. Creio que as conclusões do Conselho Europeu do Luxemburgo propõem, sem preconceitos, um quadro realista para o aprofundamento das nossas relações mútuas.
Quanto a África, Portugal propôs, como sabem, a realização de uma cimeira União Europeia-África, que estamos dispostos a acolher durante a nossa Presidência da União.
Tratar-se-á, estou certo, de um passo importante para ultrapassar um certo “afro-pessimismo” e para avançar, de forma decidida, no reforço da nossa cooperação com todo um continente a que estamos ligados por tantos laços.
De igual modo devemos continuar a prestar a maior atenção ao estreitamento das relações entre a Europa e a América Latina. Como membro da Comunidade íbero-americana, acolheremos este ano a sua 8ª Cimeira, justamente subordinada ao tema da integração inter-regional.
Enfim, penso ser particularmente importante valorizar a defesa do direito internacional e dos direitos humanos na construção da política externa comum, que é um marco na definição da identidade internacional da União Europeia.
Neste contexto, queria referir-me à questão de Timor-Leste, cuja relevância crescente na política externa europeia ficou bem expressa na adopção de uma posição comum dos Estados-membros e pelas resoluções aprovadas por este Parlamento no ano transacto.
Uma e outras reflectem o empenho activo da União na defesa dos direitos de uma comunidade mártir, submetida a um regime de ocupação ilegal e brutal.
Portugal tem um único interesse na questão de Timor-Leste, a defesa dos direitos dos Timorenses, incluindo o exercício livre e democrático do seu direito à autodeterminação.
No respeito integral por esses princípios, continuamos empenhados, com um espírito construtivo, na procura de uma solução pacífica e democrática da questão timorense, no quadro das conversações que decorrem sob a égide do Secretário-Geral das Nações Unidas.
Mas independentemente dessa solução que terá de ser encontrada, impõem-se progressos imediatos no Território relativamente ao respeito dos Direitos Humanos, nomeadamente quanto à libertação dos presos políticos e à redução significativa da presença militar, medidas estas indispensáveis à criação de um clima propício ao estabelecimento de um verdadeiro diálogo entre todas as partes envolvidas.
A presente crise que se vive na Indonésia se pode, como espero, abrir novas perspectivas, deixa-nos também apreensivos quanto aos riscos de uma escalada de violência descontrolada em Timor-Leste.
Quero apelar à solidariedade do Parlamento Europeu, cujas iniciativas têm demonstrado um apoio constante à causa timorense, tanto mais necessário neste período de incerteza e de forte turbulência.
Senhor Presidente
Senhoras e Senhores Deputados
O meu último tema diz respeito à necessidade de fazer face aos sinais de crise que se multiplicam nas nossas sociedades, resultantes, nomeadamente, das tensões entre a modernização económica e a coesão social.
As disfunções da economia de mercado, com o desemprego de massa e a reprodução de fenómenos de exclusão, o crescimento da desigualdade e da pobreza, estão a pôr à prova os limites de tolerância dos nossos regimes democráticos.
O modelo social europeu, todos o reconhecem, está a atravessar uma crise de mutação que, pela primeira vez, atinge simultâneamente, embora em fases diferentes, todos os Estados da União Europeia.
Nesse contexto sem precedentes, a crise do modelo social é uma crise europeia que exige, cada vez com maior urgência, não só estratégias específicas de reforma em cada um dos Estados-membros, como, e sobretudo, respostas comuns europeias.
Uma resposta concertada para reinventar o contrato social que caracteriza e fundamenta as nossas democracias.
Tenho para mim que será impossível fazer face, de forma eficaz, aos novos desafios, se as opções dos Estados-membros em matéria de protecção social e de regulação do mercado de trabalho se acentuarem, tornando-se num factor adicional de tensão no seio dos nossos Estados e, consequentemente, na própria União.
Mas a crise constitui, em si mesma, uma oportunidade única para completar o processo da unificação monetária com o desenvolvimento de uma política económica conjunta, capaz de transformar a moeda única não só num instrumento indispensável de competição económica internacional, como numa alavanca de modernização e de coesão social na Europa, sem o qual não pode existir nem crescimento sustentado, nem estabilidade democrática.
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,
Do papel consultivo e de controlo que inicialmente lhe foi atribuído, este Parlamento soube conquistar competências e poderes de intervenção no processo de decisão mais em sintonia com a sua legitimidade democrática, que se revelam essenciais para o desenvolvimento e o aprofundamento da integração europeia.
Só nos podemos regozijar com esta evolução.
É profunda a minha convicção quanto à necessidade de valorizar constantemente os Parlamentos.
Convicção esta tanto mais arreigada quanto ressurgem tendências anti-democráticas, manifestações intoleráveis de racismo e xenofobia, e a violência que sempre lhes está associada.
O progresso económico e social da Europa faz-se necessariamente no respeito pelos valores da convivência, da liberdade e da justiça.
Após Amsterdão, temos de continuar a caminhar, em conjunto, para o estabelecimento de uma ampla cultura europeia de liberdades, assente num modelo de segurança interna consensualizado e que avance para um espaço judicial europeu.
Na nossa concepção comum, a sede de todo o poder reside no cidadão, nas Mulheres e Homens que pensam, que se expressam e que escolhem livremente. O processo de integração europeia terá sempre de visar o reforço das condições do exercício da cidadania, ser crescentemente mais participado, mais mobilizador dos cidadãos, das imaginações e das criatividades.
É indispensável reforçar a adesão dos cidadãos à construção europeia, valorizando a solidariedade que a todos deve beneficiar.
É indispensável encontrar uma arquitectura política europeia que garanta a representatividade necessária num espaço marcado por uma enorme diversidade linguística e cultural. Sem tal garantia, a cidadania europeia não passará de uma intenção bondosa, já que os cidadãos dos nosso países não sentirão a Europa enquanto espaço de realização pessoal.
De facto, os cidadãos perceberão melhor a Europa e estarão tanto mais abertos aos avanços no processo de integração quanto mais se sentirem representados nas instituições e as sentirem próximas, reflectindo as suas preocupações.
Não nego a dificuldade da tarefa; mas temos de crescentemente nos empenhar todos na projecção do Parlamento Europeu nas nossas sociedades.
Prestigiar o Parlamento Europeu é prestigiar a democracia europeia.
O projecto europeu terá de ser sempre um projecto político, baseado em valores e em princípios, um projecto que visa garantir a estabilidade e uma maior prosperidade económica e social.
A evolução da construção europeia terá de ser feita preservando e salvaguardando o já adquirido em termos de integração, prosseguindo um esforço comum e solidário.
O reforço da Europa não se faz pela sua dissolução.
Enquanto representante legítimo dos povos dos Estados que compõem a União Europeia, cabe ao Parlamento Europeu um papel essencial e insubstituível neste processo, na promoção da coesão e na sua manutenção enquanto prioridade central no contexto das políticas comunitárias.
Para tal, o Parlamento continuará a ser, estou certo, o intérprete atento das ambições legítimas desses mesmos povos no seu conjunto, o guardião do projecto e dos ideais europeus, o defensor - acima dos interesses conjunturais e das motivações individuais - dos valores que nos são comuns.
Só assim poderemos fazer face, de forma eficaz, aos falsos profetas, ao pessimismo e à descrença, aos interesses e às ambições mesquinhas.
Só assim poderemos iniciar, com confiança, este novo ciclo da construção europeia. Um ciclo marcado pelo alargamento da União ao conjunto das democracias europeias e pela intensificação das relações entre os Estados membros. Um ciclo marcado pela necessidade do reforço da coesão e da solidariedade entre todos.
Trata-se de um desígnio fundamental para o próximo milénio, que a todos interpela e que a todos mobiliza. Não devemos, nem na verdade podemos, desperdiçar esta grande oportunidade.