Sessão Solene comemorativa do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

Lisboa
10 de Junho de 1998



Este dia de Portugal de Camões e das Comunidades Portuguesas decorre no ano em que se comemoram cinco séculos sobre a chegada de Vasco da Gama à Índia. As consequências dessa extraordinária viagem fizeram dela um marco da história universal. A sua evocação adquiriu com esta Exposição Mundial uma reforçada projecção.
Estas comemorações revestem-se de uma importância acrescida. Trata-se de uma oportunidade para a sociedade portuguesa rever um momento ímpar da sua história. Importa que o faça. A percepção que temos do nosso lugar no mundo mudou nas últimas duas décadas. O regime da Ditadura procurou instrumentalizar as Descobertas ao objectivo de legitimação do conceito de império colonial. Construiu uma interpretação única da história que pretendeu fixar para sempre.
O espírito com que nós comemoramos o papel de Portugal no movimento de abertura de horizontes geográficos e de horizontes do conhecimento dos séculos XV e XVI não é o da mera exaltação de glórias passadas.
Move-nos o desejo de valorização da história junto das gerações mais jovens. Sobretudo, acreditamos que a história é sempre susceptível de novos ângulos de abordagem, e que cada época acrescenta novos temas e perspectivas ao conhecimento que sobre o passado recebeu de épocas anteriores.
Com os Descobrimentos, Portugal contribuiu para uma nova atitude da cultura europeia, marcada pela curiosidade e pela atenção ao desconhecido e diferente, pela abertura à dúvida e à experiência como condição para o progresso do conhecimento.
A riqueza das nossas comemorações reside na possibilidade que hoje existe de comparar o olhar com que vimos os outros com o olhar com que os outros nos viram, e de compreender que esse novo mundo que demos ao Mundo tem também uma memória desse encontro de civilizações. Essa memória é tão importante como património cultural e tão decisiva para a compreensão da História como a nossa própria memória. E que uma e outra é que são a história da nossa História. Esta é a visão humanista que importa preservar.
Hoje, aliás, as nossas sociedades são multiculturais e multiétnicas. Por isso, é tão importante cultivar uma visão aberta da diversidade da história como cimento de uma cultura de tolerância. O combate à intolerância, ao racismo e à xenofobia passa pela interiorização desta abertura cultural.
A democracia portuguesa criou novas e importantíssimas relações em África, no Oriente e com o Brasil que se fundam no reconhecimento reciproco das identidades históricas nacionais. A possibilidade de melhor reforçar os laços com esses países reside, também, na nossa capacidade de compreender as raízes do seu olhar histórico sobre Portugal.
A cooperação com os países de língua oficial portuguesa, uma prioridade distintiva da nossa política externa, deve, por isso, assentar, para além da vertente económica, num intercâmbio cultural e científico cada vez mais sólido. A língua portuguesa que hoje aqui é celebrada só se reforça como elo de união entre nós se ela for um veículo de conhecimento e reconhecimento recíprocos.
Não esqueço, neste dia, a luta pela liberdade dos timorenses, causa nacional que tem estado no centro das atenções internacionais.
Estou certo de que a transição política na Indonésia não deixará de se reflectir sobre a questão de Timor-Leste. Pela nossa parte, continuaremos a seguir, atentamente, o processo de reformas, cuja credibilidade, designadamente perante a comunidade internacional, é inseparável de uma mudança profunda em Timor-Leste. Nesse sentido, a libertação de Xanana Gusmão e de todos os presos políticos seria um sinal importante.
Sob a égide do Secretário Geral das Nações Unidas, Portugal continuará a seguir uma linha de flexibilidade na procura de uma solução pacífica, sem abandonar a sua posição de firmeza quanto aos princípios, nomeadamente sobre a garantia do exercício livre e democrático do direito de autodeterminação.
Estas comemorações nacionais do dia 10 de Junho decorrem num ano muito importante para Portugal. Os portugueses viram compensados a visão estratégica, a consistência na condução da política europeia, e todos os sacrifícios que permitiram ao país integrar o núcleo fundador da moeda única.
Ao alcançar este objectivo, encerrámos um ciclo iniciado com a Revolução de 25 de Abril de 1974. Virámos uma página na nossa história. De país subdesenvolvido, colonialista, isolado, passámos, no espaço de duas décadas, a um país mais moderno, respeitado internacionalmente, capaz de demonstrar a sua criatividade, capacidade técnica e cultural. É uma vitória dos portugueses, da democracia e da liberdade.
Foi notável o esforço realizado nas últimas décadas em Portugal. Não foi fácil chegar aqui. Importa, aliás, não esquecer que o próprio processo de modernização deixou muitos portugueses socialmente excluídos. Este é um problema a que temos de dedicar a maior atenção.
Simbolicamente, o dia de Portugal deste ano celebra e sintetiza a nossa capacidade de realização: a do passado, porque se comemoram os 500 anos da histórica viagem de Vasco da Gama; e a do presente, materializado quer na capacidade de integrar a moeda única e acompanhar a construção europeia, quer na realização da Exposição Mundial onde nos encontramos.
Não podemos, como outras vezes o fizemos na nossa história, contentarmo-nos com atingir um objectivo. É preciso saber e poder dar continuidade ao trabalho realizado.
Fomos capazes de estar em pé de igualdade com os grandes países europeus no início de uma mudança histórica da construção europeia. A esse futuro já chegámos e muitos foram os que duvidaram.
Mas este é um ponto de partida e não o fim do percurso. Temos, agora, de ser capazes de nos manter ao lado desses países, no novo e complexo ciclo europeu que se abre perante nós, superando, em simultâneo, as diferenças que nos separam ainda da realidade de muitas sociedades europeias.
É no momento em que a República democrática provou ser capaz de assegurar a capacidade de realização dos portugueses que mais necessário é encarar as opções inadiáveis do momento presente.
Virou-se uma página. É necessário confrontar os portugueses com os desafios das próximas duas décadas, com uma nova visão para o futuro de Portugal.
Para chegar aqui foi necessário, há 25 anos, estabelecer um compromisso de geração em torno das prioridades essenciais para Portugal. As divergências e as opiniões críticas não impediram que todos compreendessem o sentido das mudanças necessárias.
Este é o momento de definir o novo compromisso de geração em que se fundará o futuro de Portugal daqui a vinte anos. É preciso que a política da pequena conjuntura não nos impeça de avaliar as opções estratégicas que há a fazer. É preciso olhar com lucidez e ambição para Portugal. Com proximidade e afecto para os portugueses.
Após o 25 de Abril, tivemos de definir as nossas prioridades no contexto conturbado de uma revolução, no rescaldo de uma complexa descolonização e com o país numa situação económica e social muito grave.
Agora, as condições são outras. Hoje, é possível e desejável que se distingam com serenidade as áreas onde o compromisso é necessário das de natural confronto e divergência de opiniões.
É sempre preciso mais coragem para o compromisso do que para o confronto. É dessa coragem que Portugal agora necessita. É de um compromisso de geração para o país, para os portugueses e para o papel do Estado, circunscrito ao essencial, porque a multiplicação de propostas de consenso não passa a maior parte das vezes de conflitualidade mal disfarçada.
Gostaria que daqui a vinte anos se pudesse afirmar que tínhamos virado uma outra página da história ao assegurar: a continuidade do nosso desempenho na União Europeia; um Portugal mais coeso; portugueses mais bem preparados e um Estado mais eficaz.
A Europa é a nossa prioridade.
A integração europeia pôs à prova a nossa capacidade colectiva. Mas a União Europeia está em permanente evolução e nós temos de saber desempenhar cada vez melhor o nosso papel no centro político da decisão europeia.
A negociação política que temos pela frente é difícil e exigente. Ninguém se poderá escusar a uma parte da responsabilidade.
É indispensável uma grande concertação, dos agentes económicos e sociais, dos agentes políticos, sem prejuízo das tarefas que incumbem ao governo, para fazer valer, com eficácia necessária, as nossas perspectivas legítimas.
Esse empenhamento generalizado é mais uma vez a condição fundamental perante um desafio tão complexo.
Um Portugal mais coeso.
A coesão nacional está ensombrada pela percepção das assimetrias de desenvolvimento. Nalguns aspectos, o problema tem uma dimensão que reconheço preocupante. As populações têm consciência da permanência dessas assimetrias e consideram-se descriminadas pelas políticas públicas.
Aliás, é útil distinguir duas realidades. A das políticas de equidade territorial, do combate aos dualismos sociais que atravessam todas as regiões e todas as gerações de portugueses. E a da reforma administrativa do Estado.
O problema não é insolúvel. O caminho da articulação entre políticas comunitárias, políticas sectoriais e políticas de âmbito territorial não está esgotado. O caminho da participação dos agentes locais nas decisões também não se encontra bloqueado.
Portugueses mais bem preparados.
Os níveis de competitividade a que Portugal está exposto aumentaram e aumentarão mais. Precisamos de portugueses com uma exigente formação escolar e uma excelente formação profissional. É preciso ter a coragem de exigir rigor. É preciso combater todos os facilitismos. O desempenho económico do país dependerá da capacidade de realização neste domínio.
É preciso um Estado mais eficaz que intervenha menos, mas regule melhor, que defina regras claras e estáveis. Um Estado que administre com maior eficácia, rapidez e justiça. Um Estado que no domínio da sua acção social seja tanto mais eficaz quanto melhor identificar os problemas a enfrentar, e mais rigoroso e justo for na afectação dos recursos que pode mobilizar.
É preciso reconstruir a partir dos problemas concretos, os instrumentos da solidariedade social. Este é um problema político de cuja solução depende a garantia e o desenvolvimento da cidadania.
Se estes podem ser os alicerces de um compromisso de geração haverá talvez que lhe acrescentar dois problemas cuja dimensão impõe a mobilização de todos.
A questão social da próxima década é consequência do envelhecimento da população. Dizia-me outro dia um amigo com a idade do século: “antigamente a velhice de uma pessoa era uma dignidade hoje é vista como um estorvo”. Ele tinha infelizmente razão.
A demografia, as alterações profundas nas estruturas familiares e uma sociedade que cultiva o egoísmo mais do que a generosidade trouxeram-nos o problema da “terceira idade”, e a ideia cada vez mais enraizada que os mais idosos já não têm um papel social e familiar a desempenhar.
Eu não me reconheço nesses valores e entendo prioritário assegurar a dignidade da pessoa humana e reforçar o princípio essencial da solidariedade entre gerações.
O problema da droga exige de nós novas soluções. Como referi, anteontem, no meu discurso perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, uma nova política em matéria de droga terá de ser uma política social preventiva, especialmente em relação aos jovens, que abranja desde a educação ao emprego e à formação profissional, desde a saúde ao apoio familiar e ao planeamento urbano.
Numa perspectiva de saúde pública, essa nova política terá de encarar com rigor e seriedade os programas de redução de riscos. Terá que tratar de forma equilibrada a redução da oferta e da procura.
Uma nova política, baseada em informação objectiva e na investigação pluridisciplinar, terá que partilhar os êxitos e aprender, aprender sempre, com as boas experiências.
O dia 10 de Junho é o dia em que reafirmamos o compromisso de assegurar a continuidade de Portugal e a unidade dos portugueses. Este é um compromisso que reiteramos com prazer e orgulho. Mas a continuidade de Portugal não decorre da história como uma inexorabilidade. Portugal é construído pelos portugueses.
É para sublinhar a importância do contributo individual que cada um pode dar ao seu país que ao dia 10 de Junho é associada à condecoração de cidadãos nacionais que se destacaram nos diversos domínios da suas actividades.
Saúdo aqueles que hoje aqui foram condecorados e agradeço-vos em nome do país o contributo distintivo que deram à vida nacional desde o combate pela dignificação da política, à afirmação de valores culturais e científicos, ao mérito dos seus desempenhos profissionais.
Alguns de entre vós foram agraciados com a Ordem da Liberdade pelo contributo dado à queda de um regime iníquo e ditatorial. Muito obrigado.
Daqui a menos de um ano estaremos a comemorar os 25 anos da Revolução do 25 de Abril.
Os Órgãos de Soberania assegurarão a dignidade institucional máxima a essas comemorações para assim exprimir que estas são comemorações do regime democrático e não de nenhuma interpretação da história.
Este será, aliás, a oportunidade para procurar redefinir o objectivo e o formato das comemorações fundadoras do Regime Republicano e da Democracia. É preciso inovar para que a rotina não banalize a celebração e lhe diminua o significado histórico e cívico. É importante restabelecer o elo afectivo entre a celebração das datas fundadoras do regime e a população portuguesa.
Vai em breve concretizar-se a dimensão participativa do nosso regime, consagrada na Constituição. Com o referendo é uma nova modalidade de participação directa dos eleitores que se concretiza. Estes actos enriquecem a democracia.
Considero essencial incentivar a mobilização cívica em torno dos referendos e criar condições para que eles constituam um momento exemplar de debate plural e de tolerância, onde qualquer crispação deve ser evitada.
A democracia representativa não sai diminuída da consulta popular. O que está em debate num referendo é uma questão cuja natureza os órgãos de soberania competentes julgam adequado colocar aos eleitores. Não está em causa a estabilidade política, seja qual for o resultado expresso pelos portugueses,.
A participação directa dos cidadãos deve constituir um factor complementar que reforce a legitimidade das escolhas e a coesão nacional.
É preciso aperfeiçoar constantemente os mecanismos de integração dos cidadãos no sistema político. Essa é uma condição necessária à estabilidade política e ao desenvolvimento do país.
Portugal precisa do contributo de todos os portugueses.
Viva Portugal.