A Francisco Sá Carneiro e Francisco Salgado Zenha (Na Sessão Comemorativa do XXI Aniversário da Constituição da República)

Assembleia da República
02 de Abril de 1997


Nem sempre, como hoje sucede, uma cerimónia evocativa é simultaneamente uma honra e uma satisfação profunda para quem nela participa. É que para além do aniversário da Constituição da República o que aqui nos traz é um acto de justiça para com os homens a cuja memória prestamos homenagem e sendo um acto de justiça para com esses homens é também um acto de confiança nas instituições criadas pela Constituição de 1976.
A Constituição de que se comemora hoje mais um aniversário.
Os constituintes de então são credores do nosso reconhecimento. Souberam no respeito pelas regras da democracia ultrapassar, mau grado todas as dificuldades e incidentes do percurso, divergências e contradições. Aceitando o veredicto do voto, construíram uma Constituição que, reflexo dos tempos que então se viviam, manteve ao longo das sucessivas revisões, ditadas pelo evoluir das circunstâncias, o seu esqueleto essencial: a consagração da liberdade e do estatuto de cidadania durante décadas negado aos portugueses.
Matriz e marco do Portugal Democrático a Constituição de 1976 traduzia as contradições e as esperanças nascidas com a Revolução de Abril. Foi obra de constituintes empenhados sem reservas na construção de um Portugal novo e para quem a democracia era a conquista maior do 25 de Abril.
Democracia que a Constituição consagrou e que, se aqueles que conheceram o gosto amargo da repressão e da ausência de todas as liberdades medem hoje, no seu dia a dia, o significado, a sociedade portuguesa, no seu conjunto, interiorizou como valor natural e inalienável.
Nisso reside, aliás, a melhor prova de que a democracia se foi consolidando ao longo dos anos. A liberdade tornou-se parte do quotidiano dos portugueses e não é mais a lufada de ar fresco que o 25 de Abril trouxe, mas o ar que todos os dias respiramos.
Só que, não devemos esquece-lo, a democracia é um processo que se consolida aprofundando-se através de uma acrescida participação dos cidadãos na vida pública. Não podemos ignorar que, com demasiada frequência, uma certa incultura democrática torna os cidadãos presas fáceis das campanhas que vão sendo desenvolvidas contra as instituições.
E aqui vale a pena chamar a atenção para a necessidade de uma pedagogia democrática que está por fazer e é obrigação de todos nós. É importante e urgente levar junto dos cidadãos e, em particular, junto das escolas, o conhecimento das instituições democráticas, como regra ignoradas e o seu significado como instrumentos de afirmação da cidadania. É um desafio que deixo aos responsáveis políticos e a que, devo reconhece-lo, também o Presidente da República se não pode furtar. Naturalmente voltarei ao tema na celebração do 25 de Abril aqui também nesta casa.
Senhor Presidente, Senhores Deputados, associar a evocação de Sá Carneiro e Salgado Zenha à comemoração do aniversário da Constituição da República é também uma forma de prestar homenagem não só aos que lhe deram corpo, mas aqueles que ao longo dos anos lutaram para que isso fosse possível.
Francisco Sá Carneiro e Francisco Salgado Zenha foram homens de percursos distintos, de ideologias diferentes e de diferentes gerações, portadores de tradições culturais e experiências políticas divergentes, se não opostas, mas ambos marcaram de forma indelével, pela sua coragem e vigor das suas convicções, o processo de consolidação da democracia no pós 25 de Abril e ambos, ainda que por vias e modos diversos, deram um inestimável contributo na luta contra a ditadura.
Sá Carneiro oriundo de um meio conservador, integrado nas esferas dirigentes do salazarismo, foi cultivando a sua resistência no interior das influências que o rodeavam e acabou por entrar na política por opção própria e porque como ele dizia “por muito que se tenha sido educado no descrédito da política é-se forçado a reconhecer que quando se começa a tomar em profundidade consciência da nossa própria existência pessoal e das realidades que nos cercam somos constantemente conduzidos a ela”.
Sá Carneiro torna-se assim deputado à Assembleia Nacional, acreditando no “marcelismo” como via para uma mudança do regime. As suas intervenções fizeram história e foram ditadas pela independência e pela coragem com que se manteve fiel aos propósitos que haviam justificado a sua opção.
A experiência durou 3 anos, se tanto, e Sá Carneiro, perdidas as ilusões, renunciou em 1973 ao mandato de deputado, sem no entanto ter renunciado ao combate pela democracia.
Salgado Zenha, (ao contrário) foi formado na luta estudantil de oposição ao regime, luta que se tornou insensivelmente, como aconteceu com tantos dos estudantes universitários activos na vida associativa, em luta política pura e simples. Membro do Partido Comunista nos anos 40, será dirigente activo do MUD Juvenil e presidiu em 1944 à Associação Académica de Coimbra.
Nos anos 50 afasta-se do Partido Comunista e adere à Resistência Republicana e Socialista, criada em 1955 por Mário Soares, que viria a transformar-se, duas décadas mais tarde e após várias mutações, no Partido Socialista.
São pois dois percursos separados, por vezes opostos, que vão levar depois do 25 de Abril os dois juristas - que, causídicos notáveis, também no foro haviam revelado as suas invulgares qualidades de inteligência - à Assembleia Constituinte, à Assembleia da República e aos Governos da República.
Porém se os percursos foram distintos e as suas posições ideológicas divergiram, algo existia nas suas experiências que os levava a uma concepção da democracia e, em especial, da democracia representativa, que lhes era comum e se traduzia numa prática pautada pelos mesmos valores da frontalidade e da coragem da rebeldia criadora.
Ambos enfrentaram sempre sem tibiezas as dificuldades, cada vez que sentiam em causa os seus valores, recusando as convenções e os oportunismos, que podem tornar fácil uma carreira política mas lhe retiram o único sentido que, para eles, podia ter: o da realização dos projectos em que acreditavam.
Recusando o paternalismo dos ditadores ou a disciplina de clã quando esta fere os ditames da consciência e a independência do pensamento a democracia era para ambos a resolução das divergências através do debate de ideias, o respeito pela opinião do contrário.
Salgado Zenha e Sá Carneiro não eram, honra lhes seja feita, homens de consenso, no que este possa significar de abdicação permanente de princípios e de valores, de negação do confronto de ideias e projectos. Eram sim, homens de convicções, lutando por elas sem cedências a consensos fáceis mas paralisantes, não deixando por isso de ser homens tolerantes e que respeitavam o veredicto do voto como instrumento último para dirimir os conflitos em democracia.
Eram, nesse sentido, representantes por excelência da democracia parlamentar na sua expressão mais elevada e mais capaz de dignificar as instituições.
É pois esta casa o lugar próprio para perpetuar a sua memória e é dever de todos nós honrar o que de saber democrático nos legaram.
Podemos - devemos sem dúvida -, quando se comemora o aniversário da Constituição, interrogarmo-nos se o nosso sistema político e parlamentar tem evoluído por forma a seguir os caminhos que estes homens procuraram que ele trilhasse.
Certamente que nem sempre e nem sempre da melhor maneira.
Mas a lição de perseverança que eles também nos deixaram, ensina-nos que está na mão de todos nós, responsáveis políticos ou cidadãos comuns, fazer que o seu curso vá no sentido de uma prática política mais rigorosa, mais transparente, mais fiel aos valores e princípios de que cada qual se diz portador. Valores e princípios que os eleitos submeteram ao sufrágio e que os cidadãos que neles votaram têm o direito de ver respeitados, antes do mais, por quem os assumiu.
Salgado Zenha e Sá Carneiro acreditaram firmemente na importância de uma instituição parlamentar independente, respeitada e olhada pelos cidadãos como um elemento chave do controlo do executivo e da elaboração das leis. Uma instituição composta por homens livre e responsáveis, acima de tudo, perante aqueles que os elegeram.
É nosso dever, também para com eles, como exemplo que foram de uma luta árdua e difícil pela instauração da democracia, mas, sobre tudo, para com os cidadãos deste país, prosseguir a consolidação dessa democracia e prestigiar as instituições.
Que o sistema político carece de reformas que lhe dêem uma maior transparência, e assegurem o exercício da cidadania é, creio, incontroverso.
Não deve, nem pode, o Presidente da República pronunciar-se sobre a revisão das instituições que está em curso. Isso lhe impõe o respeito, a que sempre será fiel, pela separação de poderes, e também o respeito pelos que foram mandatados pelo voto para prosseguir essa revisão.
Mas pode e deve o Presidente da República manifestar o seu empenho no aperfeiçoamento das instituições democráticas, que a todos compete, aproximando-as dos cidadãos e fazendo com que estes nelas se reconheçam.
Essa foi afinal, uma das mensagens que Sá Carneiro e Salgado Zenha nos deixaram e também o propósito maior dos constituintes de 1976. Quero por isso publicamente agradecer o que fizeram por nós e por Portugal.