Aos Professores Expulsos da Universidade em 1947 (Na homenagem, por ocasião do Dia Nacional da Cultura Científica)

Academia das Ciências - Lisboa
24 de Novembro de 1997


Agradeço o convite que me dirigiram para estar presente nesta sessão que encerra o primeiro Dia Nacional da Cultura Científica.
Antes de mais, quero saudar esta ideia de se consagrar um Dia Nacional para a Ciência, com o tão louvável e necessário objectivo de sensibilizar a sociedade, em geral, e cada cidadão para a importância insubstituível e determinante da cultura científica como instrumento para compreendermos o tempo e o Mundo em que vivemos, para desenvolvermos o nosso país e para preparamos o futuro.
Ao querer que esta data esteja ligada à figura de Rómulo de Carvalho - historiador da ciência, divulgador, pedagogo, poeta e membro desta Academia - pôs-se, desde logo, em evidência o espírito humanista que inspirou a criação deste Dia.
A terminar um programa tão interessante e diversificado, que hoje se realizou, lembramos agora, aqui, os professores expulsos, há meio séculoUniversidade, por decisão ilegítima e arbitrária de um regime que fez da liberdade de pensamento e do espírito crítico os seus inimigos mais temidos.As circunstâncias em que essa expulsão se deu e o que ela representou para a Universidade portuguesa foram brilhantemente descritas e analisadas pelo Prof. Fernando Rosas, que saúdo e felicito.
Os vinte e um professores demitidos em Junho de 1947, e aqueles outros dois - Bento Caraça e Azevedo Gomes - já antes atingidos, eram, todos eles, homens de excepcional valor e prestígio científico e académico, cidadãos digníssimos a quem o País e a Universidade muito deviam.
A sua expulsão representou um empobrecimento de nefastas consequências, que se tinha iniciado com as demissões de 1935 e continuou nas décadas seguintes com o elevado número daqueles que foram afastados e discriminados por razões políticas ou obrigados, directa ou indirectamente, a ir e a permanecer no estrangeiro.
Para além de um acto violento de injustiça, praticado contra a inteligência e contra a cultura, foi também um acto realizado verdadeiramente contra os interesses fundamentais de Portugal que tanto eram retóricamente invocados a propósito de tudo e de nada. Mas essa expulsão teve ainda um significado mais vasto. Representou a queda reincidente e agravada num estado de coisas que, já no século XIX, Antero de Quental apontava como a causa principal da nossa decadência - a repressão do espírito crítico, experimental, inovador, universalista e moderno e a sua substituição pelo dogmatismo, pela intolerância, pela autoridade ex-cathedra, pela educação livresca e escolástica, assente num saber cristalizado e inerte.
A homenagem nacional que prestamos aos professores expulsos tem, pois, o sentido de uma reparação e é um gesto simbólico de justiça e de reconhecimento do Portugal democrático que somos e por que eles lutaram. Mas é sobretudo a reiteração expressa da nossa vontade de realizarmos os ideais que inspiraram a sua acção e a sua vida - fazer de Portugal um país moderno, aberto à contemporaneidade, um país em que a educação, a ciência, a cultura e a cidadania sejam, de facto, considerados como condições insubstituíveis de realização individual e colectiva. Mais do que nunca, essas condições constituem hoje objectivos inadiáveis, de uma urgência prioritária.
Com efeito, não é possível viver no Mundo do presente e preparar o do futuro sem cultura científica, que não se esgota nem confunde com o saber científico e técnico especializado. É isso, mas é muito mais do que isso: significa uma atitude nova perante o Mundo, uma vontade de investigar, de compreender e de descobrir, uma abertura à inovação e ao desconhecido, uma exigência de rigor, de relação, de racionalidade, de organização.
Sabemos hoje que a herança do passado só se torna viva se lhe juntarmos o impulso prospectivo do futuro. A esperança que faz com que os homens ajam e lutem por causas e ideais, para além da satisfação dos interesses imediatos e egoístas, assenta na nossa capacidade de criar novos conhecimentos e novas possibilidades de progresso sustentado.
Sabemos também que a complexidade da nossa época e dos problemas que nos põe exige maior informação, mais esclarecimento, mais comunicação, mais participação, mais ciência, mais consciência. O próprio destino das sociedades democráticas depende, em larga medida, disso mesmo. Não podemos aceitar um Mundo ou uma sociedade atravessada por um novo e ainda mais terrível dualismo - de um lado, os poucos que possuiriam tudo, poder, saber, tecnologia, informação, dinheiro, capacidade de decidir, de escolher, de manipular; do outro, os muitos que nada teriam e nada poderiam. Nessa sociedade, que constituíra uma nova e mais perversa versão da profecia de Orwell, não haveria nem liberdade, nem progresso, nem cidadania, nem participação. A cultura e a ciência acabariam por ser submetidas a interesses estranhos, primeiro; ameaçadas e destruídas, depois.
Não podemos também aceitar que as inquietações, dúvidas, perplexidades do tempo levem, tantas vezes com propósitos inconfessáveis, à exploração do irracionalismo mais primário, da superstição mais grosseira, do fanatismo mais agressivo.
A curiosidade pelo novo e pelo diferente, o desejo de explicar, o amor do conhecimento são, desde os gregos, o motor primeiro do nosso processo civilizacional e da nossa definição como civilização de muitas culturas e de muitas racionalidades. A ciência, o método experimental, a observação metódica, a procura da prova, a produção da lei, a organização do conhecimento, a razão crítica marcaram e deram origem a uma nova fase da vida da humanidade, com mudanças radicais em todos os domínios - do particular ao geral, do económico ao social, das instituições aos costumes. Esta Academia é, aliás, depositária dessa memória valiosíssima.
Portugal, que durante o período de ouro da sua história esteve na vanguarda do conhecimento, virou depois as costas ao progresso e à atitude empírica, experimental e crítica, deixando-se decair. Sofremos ainda as consequências desse erro histórico.
Mais do que lamentar o passado, importa, todavia, reflectir sobre as lições que nos dá e que nos ajudam a preparar o futuro.
Somos hoje um país livre que faz parte de uma comunidade de países que têm a ciência como prioridade. Mas se estamos acompanhados, sabemos que ninguém fará por nós o que só a nós compete fazer. E o que de essencial nos cumpre realizar é preparar as novas gerações para os grandes desafios do nosso tempo, dando-lhes uma educação sólida, uma formação cívica, uma cultura humanista. Só assim se garante a existência de mulheres e homens profissionalmente preparados e de cidadãos activos e participantes. Só assim se asseguram o dinamismo cultural, o progresso científico, a coesão social, o desenvolvimento económico, a solidariedade, o espírito de responsabilidade, a consciência de um destino assumido e partilhado.
Devemos, por isso, ter presente que a ciência exige recursos e meios poderosos. Temos de ganhar consciência de que apostar a fundo na investigação científica é o investimento a prazo mais rentável, pois é o que mais valoriza o que os países têm de precioso: a capacidade intelectual de criar, de inventar, de descobrir, de realizar.
Ao lembrarmos, neste primeiro Dia Nacional de Cultura Científica, aqueles que foram vítimas do obscurantismo e do arbítrio, é para a frente que olhamos, recebendo deles o testemunho e passando--o às gerações seguintes. Oiçamos, como se estivesse entre nós, Bento de Jesus Caraça:
“Houve quem dissesse um dia que as gerações dos homens são como as das folhas, passam umas e vêm outras. Está na nossa mão o desmentir o significado pessimista desta frase. Só figuram de folhas caídas, para uma geração, aquelas gerações anteriores cujo ideal de vida se concentrou egoísticamente em si e que não cuidaram de construir para o futuro pela resolução, em bases largas, dos problemas que lhes estavam postos, numa elevada compreensão do seu significado humano”.
Esta é a nossa grande responsabilidade. Não tenhamos medo de a assumir integralmente, mesmo que muitos desafios nos pareçam difíceis e que haja ilusões que se desfaçam. Não importa! Porque, como também disse Caraça, “benditas as ilusões, a adesão firme e total a qualquer coisa de grande, que nos ultrapasse e nos requer. Sem ilusão, nada de sublime teria sido realizado, nem a Catedral de Estrasburgo, nem as sinfonias de Beethoven. Nem a obra imortal de Galileu”. Ousemos, pois, com rigor, determinação, criatividade, imaginação, preparar o futuro - esta é a mensagem que, neste Dia, quero deixar.