Tomada de Posse dos Juizes Cooptados para o Tribunal Constitucional

Palácio Nacional da Ajuda
16 de Março de 1998


Com esta tomada de posse conclui-se o processo de recomposição do Tribunal Constitucional, já à luz do novo quadro desenhado na última revisão constitucional e prosseguido com a aprovação das alterações à sua Lei Orgânica.
Cabe-me, em primeiro lugar, saudar todos os Senhores Juízes Conselheiros, incluindo aqueles que por agora cessaram o exercício de funções. Expresso-lhes aqui o grande apreço e reconhecimento de que são credores pela forma como a jurisdição constitucional portuguesa tem contribuído para a institucionalização do Estado de Direito e a consolidação da cultura e sistema democráticos.
Cumpre-me realçar, por outro lado, o alto sentido de Estado e de responsabilidade com que souberam impedir que as vicissitudes próprias de um processo de recomposição porventura demasiadamente alongado no tempo pudessem afectar o normal exercício das suas funções.
Senhores Conselheiros, Excelências,
Por todo o Mundo, nos últimos anos, a existência de uma justiça constitucional converteu-se, tendencialmente, de elemento em condição de legitimação e de existência de um Estado de Direito democrático.
Hoje, não se questiona já, seriamente, a legitimidade da existência de uma instância jurisdicional de garantia do primado da Constituição e de controlo da conformidade constitucional da actuação do poder político democraticamente constituído.
A sua instituição é, antes, e reconhecidamente, um factor de credibilização e legitimação de qualquer regime político democrático.
Também entre nós, nem a existência do Tribunal Constitucional, nem a sua legitimidade sofrem, hoje, qualquer contestação significativa.
Pelo contrário, como resulta claramente da última revisão constitucional, a tendência vai mesmo no sentido de um alargamento consensualizado das suas competências de garantia e controlo a domínios até agora não sindicados.
A esta pacificação não é seguramente alheia a forma vincadamente positiva como o Tribunal tem prosseguido a sua actividade, a prudência e equilíbrio da sua intervenção e a elevada capacidade científica demonstrada na sua jurisprudência.
A este conjunto de factores acresce, por sua vez, a serenidade e espírito democrático com que a generalidade dos titulares do poder político e os restantes tribunais têm acolhido, acatado e respeitado as suas decisões.
Tal tem permitido que, após o tão longo interregno provocado pela ditadura, a justiça constitucional seja hoje encarada, com toda a naturalidade, como elemento imprescindível à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos e a um funcionamento adequado das instituições democráticas.
De forma progressiva sedimenta-se a convicção de que em Estado de Direito é indispensável que as decisões do poder político democrático, por mais ampla que seja a maioria pontual que o sustente, respeitem as garantias e liberdades individuais e se conformem ao equilíbrio, separação e interdependência dos poderes constitucionalmente consagrados.
Em última análise, aí está o Tribunal Constitucional a garantir que assim continuará a ser.
O vosso é um papel vital e absolutamente insubstituível em regime democrático. Mas nada fácil! Porque se situa num terreno em que a função de dizer o Direito se mescla com as consequências directamente políticas da decisão e onde a aplicação das regras puras da interpretação jurídica significa igualmente, na prática e frequentemente, a arbitragem entre as posições políticas que se confrontaram no momento de emissão da norma; e porque, também, a função jurídica de garantia da supremacia da Constituição se faz num contexto conflitual ou, no mínimo, de confronto de legitimidades, seja em face da legitimidade do legislador democrático, seja face à legitimidade própria do exercício da função jurisdicional por outros tribunais.
Num tal contexto de dificuldades, e atenta a relevância máxima das vossas funções para o normal funcionamento do Estado de Direito, cabe-nos a todos contribuir para um adequado desempenho das vossas tarefas de garantia e controlo e desenvolver na opinião pública uma atitude de proximidade e interesse pela actividade do Tribunal Constitucional.
Não há nada mais estranho à forma como entendo o exercício das funções presidenciais, designadamente no domínio da fiscalização preventiva da constitucionalidade, que essa ideia simplificadora, mas profundamente errónea, de que se suscita a intervenção do Tribunal para "ganhar" ou "perder".
Suscita-se, sim, a intervenção do Tribunal quando é caso disso, no caso de haver dúvidas de constitucionalidade a ensombrar o livre curso do processo político, pelo que com o seu esclarecimento com a autoridade que provém de uma instância jurisdicional para tal legitimada, independente e qualificada, quem "ganha" é sempre o Estado de Direito e o regime democrático.
É porque faço um balanço particularmente positivo da nossa experiência de justiça constitucional e porque tenho consciência da responsabilidade que sobre todos impende, que me permito apelar à reflexão conjunta sobre as dificuldades que marcam o eventual novo ciclo da jurisdição constitucional que aqui inauguramos.
De facto, após a fase de transição e afirmação da jurisdição constitucional e ultrapassadas que foram as incertezas e vicissitudes públicas do processo de recomposição do Tribunal, temos condições para desenvolver, em exclusivo benefício do Estado de Direito e do sistema democrático, as possibilidades abertas com a última revisão constitucional e que mereceram, na altura, aplauso generalizado, como sejam, designadamente, o prolongamento do mandato dos juízes e o seu carácter não renovável..
É certo que as reservas e objecções tradicionais à existência de uma justiça constitucional estão hoje ultrapassadas. Mas, teremos que saber viver permanentemente com os problemas inerentes à própria existência de uma jurisdição constitucional em regime democrático.
Problemas como os da legitimidade e legitimação do Tribunal Constitucional, dos limites funcionais da sua actividade e da dialéctica das suas relações com o princípio da maioria e o poder político democrático são temas que - em todo o mundo democrático - suscitam dúvidas permanentemente em aberto que carecem de respostas sempre renovadas e em aprofundamento, sem que aí se deva vislumbrar algo de dramático ou anómalo.
Entre nós, já não é tanto o problema da forma de designação dos juízes e da fonte da sua legitimidade que gera mais reservas ou suscita, agora, a maior controvérsia.
De certa forma pode dizer-se que, ao fim destes anos e não obstante as críticas que mereceu a solução inicial encontrada, a ideia de que todas as soluções têm inconvenientes que neutralizam as suas eventuais vantagens relativas fez o seu caminho: é daquela solução que temos de partir e são as suas virtualidades que temos de saber explorar para o consequente reforço do Estado de Direito.
As reservas que se têm avolumado nos últimos tempos e que podem constituir os maiores perigos para a justiça constitucional respeitam, hoje, não tanto à legitimidade de título, mas mais à legitimidade de exercício.
Assistimos ultimamente a uma forte tendência para colocar o Tribunal Constitucional no centro da luta política e para revestir a interpretação das suas decisões com uma linguagem tipicamente vocacionada para a análise do trabalho das assembleias representativas, com as suas maiorias e minorias, com as suas alas ditas de “direita” e de “esquerda”.
Tal facto não pode deixar de nos preocupar a todos e de nos estimular a pensar a forma de permitir que os Senhores Juízes disponham de condições plenas para um exercício de funções isento de pressões, condicionamentos ou simplificações totalmente infundadas.
De algum modo, a última revisão constitucional e a alteração consequente da lei orgânica criaram já as condições objectivas para um reforço das garantias de independência do Tribunal Constitucional, para uma maior estabilidade no exercício das suas funções, para uma maior racionalização e optimização das formas de processo e organização interna.
Mas, neste caminho, se todos temos responsabilidades, o impulso decisivo tem que provir do próprio interior do Tribunal.
Com efeito, a continuidade de uma jurisprudência constitucional de mérito científico indiscutível, que passe incólume no crivo desejavelmente apertado e rigoroso constituído pela opinião pública e, designadamente, pelo sentir da comunidade jurídica, pode constituir o antídoto mais eficaz contra as tendências referidas.
Nem tudo se resume, todavia, à evidência científica da fundamentação das decisões do Tribunal ou à clareza e racionalidade da sua retórica argumentativa. O prestígio de uma jurisdição constitucional e a força normativa das suas decisões jogam-se também na preservação da imagem que se projecte do Tribunal na opinião pública, mas, simultaneamente, na abertura que ele próprio revele e proporcione ao meio envolvente.
Tal não se confunde, note-se, com um qualquer indesejável e não querido protagonismo mediático ou político, mas respeita sobretudo à forma como a explicação da actividade do Tribunal passa para a opinião pública e às condições que lhe permitam converter-se em objecto essencial de estudo universitário e crítica académica.
Ora, não há bondade de decisão que resista ao desconhecimento ou dificuldade em a ela aceder por parte dos eventuais interessados, pelo que, em parte, talvez residam aí, também, as razões para a relativamente incipiente crítica e acompanhamento académicos da actividade do Tribunal, com as consequências negativas que tal facto gera, não apenas num défice de projecção da jurisdição constitucional, como sobretudo na incompreensão pública dos reais mecanismos de funcionamento de um regime democrático.
A ninguém mais que a Vossas Excelências penalizará seguramente o facto de que, hoje em dia, um professor ou estudante de Direito tenha acesso, passados alguns dias e através do seu computador, às decisões constitucionais do Supremo Tribunal dos Estados Unidos ou do Tribunal Constitucional alemão, enquanto tem muitas das vezes de esperar meses para conhecer as decisões mais importantes do nosso Tribunal Constitucional.
Trata-se, portanto, de um esforço que nos envolve a todos, juízes e políticos, universitários e operadores jurídicos, mas cujos resultados dependerão sempre, em primeiro lugar, do trabalho do Tribunal e, particularmente, do rigor e independência da sua jurisprudência.
No fundo, acabará por ser sempre da forma como os Senhores Juízes Conselheiros souberem dizer a Constituição que dependerá o prestígio, o alcance e o futuro da própria jurisdição constitucional.
É na convicção segura de que Vossas Excelências Senhores Juízes Conselheiros me acompanham na reflexão e preocupações que acabo de exprimir que vos dirijo os melhores votos de sucesso no mandato que agora se inicia.
O aprofundamento do Estado de Direito e do regime democrático dele em boa medida depende.