Sessão de Abertura do Colóquio "Declaração Universal dos Direitos do Homem"

Lisboa
08 de Maio de 1998


50 anos após a sua aprovação, e também como resultado inevitável de uma certa banalização da retórica sobre os direitos do homem, a importância actual da Declaração Universal parece desvanecida ou, no mínimo, muito relativizada.
Não admira que tal aconteça, sobretudo se tivermos em conta, de um lado o facto de a Declaração não ser um documento jurídico de força vinculativa incontroversa, e, de outro, que a conjuntura política internacional da época que presidiu à sua aprovação não permitia que a Declaração fosse muito além de um tom e de um conteúdo necessariamente programáticos e, até, compromissórios.
Porém, a Declaração Universal constitui um marco decisivo na história dos direitos do homem, designadamente, no domínio da sua protecção e dimensão internacionais.
Em certa medida, a Declaração é como que o prolongamento concretizador dos princípios gerais sobre direitos do homem constantes da Carta constitutiva da Organização das Nações Unidas. Mas, ela é, também, o primeiro documento internacional de proclamação e definição específicas dos direitos do homem com uma vocação verdadeiramente universalista. Nesse aspecto, a Declaração abre decisivamente a via da superação da concepção de soberania tradicional que fazia dos direitos fundamentais um domínio absolutamente reservado aos Estados.
Os excessos cometidos pelos regimes ditatoriais no século XX e a tomada de consciência de que o desprezo dos direitos do homem constitui uma ameaça grave à paz e segurança internacionais aceleraram o movimento para a institucionalização e desenvolvimento da protecção internacional dos direitos e liberdades fundamentais e para o desenvolvimento de uma concepção universalista dos direitos do homem.
E, pese embora a delicadeza da questão e a complexidade das consequências políticas que encerra, reconheceu-se progressivamente que os direitos do homem interessam o conjunto da comunidade internacional e que a protecção contra as suas violações, sobretudo quando elas assumem um carácter sistemático, não é mais um domínio reservado do Estado em causa. Ora, o caminho deste reconhecimento foi definitivamente inaugurado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Por outro lado, e vale a pena recordá-lo, mesmo numa conjuntura marcada pelo afrontamento entre blocos, a aprovação consensualizada da Declaração Universal constituiu a consagração da vocação expansiva e universal dos direitos do homem e a demonstração de que o reconhecimento da diversidade de culturas e tradições e a diferença de regimes políticos e formas de governo não pode eximir ao seu cumprimento.
Assim, a Declaração Universal forneceu durante estes anos e continua a fornecer às instâncias internacionais e à opinião pública mundial o fundamento reconhecido e comum de condenação dos comportamentos e práticas estatais de violação dos direitos fundamentais.
Ainda neste sentido, ela constituiu um poderoso estímulo para a consequente celebração, muitas das vezes sob a égide das Nações Unidas, de uma multiplicidade de Convenções internacionais de protecção de categorias específicas de pessoas ou de direitos, bem como dos posteriores movimentos regionais de tutela internacional dos direitos, cujo exemplo mais acabado terá sido a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A Declaração acolheu, ainda, ao lado dos direitos e liberdades tradicionais, os chamados direitos económicos, sociais e culturais, reconhecendo-lhes a dimensão de verdadeiros direitos do homem e não apenas de normas de conteúdo programático. Nessa medida, conferiu uma dimensão universal e vinculante a uma tendência de evolução da concepção dos direitos fundamentais que, até aí, manifestava um carácter circunstancial, regional ou marcadamente ideológico.
Por último, a relevância da Declaração Universal projectou-se, directa ou indirectamente, sobre as ordens jurídicas nacionais, quer inspirando o conteúdo e sentido das respectivas declarações de direitos, quer, como acontece com a nossa Constituição, sendo recebida como fonte de interpretação e integração dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais.
Com um tal conteúdo e sentido histórico, a Declaração Universal dos Direitos do Homem manifesta, hoje, e também entre nós, uma actualidade e relevância sempre renovadas.
Ela dá-nos a legitimidade, o suporte e o estímulo para, no plano internacional, não permitirmos que a questão de Timor caia no esquecimento e para exigirmos da comunidade internacional uma actuação consentânea com a gravidade das violações de direitos que ali são quotidiana e sistematicamente perpetradas.
Ela confronta-nos, em contrapartida, com a necessidade de, aos mais diferentes níveis, tudo fazermos para que o nosso país deixe definitivamente de constar dos relatórios internacionais que fundadamente dêem conta de práticas sistemáticas de violação de direitos.
A Declaração convoca, por outro lado, a nossa atenção para a necessidade de internamente garantirmos a efectividade dos direitos do homem, designadamente daqueles cujo exercício é indissociável da garantia dos seus pressupostos materiais e do desenvolvimento económico.
A Declaração Universal confere-nos, por último, até por obrigação constitucional, o contexto e a dimensão globais de interpretação e vivência dos direitos fundamentais, apelando para um sentido de comum responsabilização na sua garantia internacional, particularmente no espaço cultural e político que partilhamos, e assim nos responsabilizando pela construção de uma consciência nacional e universal dos direitos do homem baseadas no respeito da dignidade da pessoa humana.
Cumpre-me, assim, saúdar a Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa pela feliz iniciativa de comemoração do 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem através de um conjunto de iniciativas tão estimulante, diversificado, actual e aberto à sociedade e ao futuro como o que aqui se desenrolou ao longo de toda a semana e se completa neste Colóquio.