Sessão Comemorativa dos 50 Anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem

Palácio Galveias
14 de Julho de 1998


Quando se comemoram, em Portugal, os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, há que constatar, em primeiro lugar, a enorme diferença entre o Portugal democrático e o Portugal da época da aprovação da Declaração quanto ao cumprimento dos objectivos e prossecução dos ideais que nela encontraram expressão.
Contrastando com o regime de ditadura e de sistemática violação dos direitos fundamentais que caracterizava o Portugal anterior a 1974, o regime democrático cedo acolheu a Declaração Universal como uma das fontes inspiradoras da nova ideia de Direito e de legitimação do poder político. Foi esta atitude radicalmente distinta que determinou os constituintes de 1976, e de uma forma sem paralelo no Direito comparado, a consagrarem a Declaração Universal dos Direitos do Homem como fonte de interpretação e integração dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais.
É com grata satisfação que assistimos, entretanto, à forma como outras Constituições dos novos países de língua portuguesa seguiram idêntico caminho no plano normativo-constitucional, para além do natural regozijo com que nos podemos congratular pela atitude comum de empenhamento no respeito e promoção dos direitos fundamentais por parte de toda a comunidade lusófona.
Porém, os indiscutíveis e significativos progressos de que o Portugal democrático se pode orgulhar neste domínio, quer no plano interno, quer no da cooperação internacional, não autorizam um qualquer abrandamento no que deve constituir uma preocupação permanente do nosso Estado de Direito. Há, com efeito, que ter a consciência de que no domínio da protecção e promoção dos direitos fundamentais há sempre algo mais a realizar em nome das renovadas exigências de um pleno desenvolvimento da personalidade individual e da dignidade da pessoa humana.
Os ideais, objectivos e direitos proclamados na Declaração Universal confrontam-nos, desde logo, com a necessidade de, aos mais diferentes níveis, tudo fazermos para que deixe definitivamente de haver razões para que o nosso país conste dos relatórios internacionais que, justificadamente, assinalem práticas de violação de direitos. Os esforços desenvolvidos neste domínio, reflectidos, de resto, no carácter cada vez mais residual dessas situações, dão-nos fundadas esperanças de caminharmos no bom sentido.
A Declaração convoca, por outro lado, e até por exigência constitucional, a nossa atenção para a necessidade de garantirmos a efectividade dos direitos do homem, designadamente daqueles cujo exercício é indissociável da garantia dos seus pressupostos materiais e do desenvolvimento económico e que estão longe de ter obtido, entre nós, um grau satisfatório de realização.
Por último, a Declaração Universal apela ao sentido de responsabilização comum, no espaço cultural e político que partilhamos, na garantia internacional dos direitos do homem, particularmente do direito à paz, ou seja, como se diz na Declaração, na realização de "uma ordem capaz de tornar plenamente efectivos os direitos e as liberdades" nela enunciados.
Isto significa que a própria dignidade da pessoa humana exige, à luz da consciência dos nossos dias, que o poder político se exerça em quadros constitucionais abertos, democráticos e capazes de corresponder, através de instituições legitimadas na participação cívica das várias correntes de opinião, às aspirações populares ao bem-estar, à paz e ao progresso.
A existência de regimes políticos que preencham estes requisitos torna ilegítima, por natureza, qualquer ruptura do compromisso institucional que pretenda operar-se por meios não constitucionalmente previstos. Verificada que seja, por outro lado, uma qualquer ruptura no consenso político e social em que assenta um dado regime, o referido direito à paz requer que, na reconstrução de uma ordem política e social de respeito dos direitos fundamentais, prevaleçam as vias do diálogo e da mediação, das preocupações e da assistência humanitárias e da preservação das condições de dignidade da pessoa humana.
A Declaração Universal dá-nos, assim, a legitimidade, o suporte e o estímulo para, no plano internacional, não permitirmos que a questão de Timor caia no esquecimento e para exigirmos da comunidade internacional uma actuação consentânea com a gravidade das violações de direitos que ali são quotidiana e sistematicamente perpetradas.
É que também neste plano a Declaração Universal constituiu um marco decisivo na história dos direitos do homem.
Em certa medida, a Declaração é como que o prolongamento concretizador dos princípios gerais sobre direitos do homem constantes da Carta constitutiva da Organização das Nações Unidas. Mas, ela é, também, o primeiro documento internacional de proclamação e definição específicas dos direitos do homem com uma vocação verdadeiramente universalista.
Nesse aspecto, a Declaração abre decisivamente a via da superação da concepção de soberania tradicional que fazia dos direitos fundamentais um domínio interno absolutamente reservado aos Estados.
Incumbe-nos a todos, países de língua portuguesa que se reconhecem na fonte inspiradora da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o prosseguir deste caminho tão auspiciosamente inaugurado pela Declaração, com a consciência de que esta tarefa, sendo dos Estados, só encontrará plena realização sob estímulo, empenhamento e participação da sociedade civil e das organizações de cidadãos.
O Forum que aqui se vai realizar é um feliz exemplo dessa participação que de novo se saúda e em cujos resultados e conclusões é legítimo depositar, atendendo à qualidade e diversidade dos diferentes contributos, as melhores expectativas.

Cerimónia de Instalação do
Novo Tribunal dos Direitos do Homem
(Estrasburgo)
3 de Novembro de 1998

É com uma sentida emoção que me associo a esta cerimónia de tão grande significado.
Para além da honra que me é feita pessoalmente, e que honra sobretudo Portugal e os portugueses, não esqueço os anos que passei nesta casa, como primeiro membro português da Comissão dos Direitos do Homem. Destes anos guardo recordações e experiências indeléveis, amizades e conhecimentos pessoais que continuam a constituir, para mim, uma referência incontornável.
Como democrata, como europeu, como advogado, como cidadão e como homem político, orgulho-me de ter podido dar um contributo empenhado na aplicação concreta da Convenção dos Direitos do Homem, símbolo e quadro da vivência democrática europeia.
Compreenderão que deseje saudar, antes de mais, os membros da Comissão e do Tribunal, e os seus colaboradores respectivos - cuja competência profissional e dedicação desejo particularmente assinalar - os advogados, os representantes dos Estados, os requerentes. Todos quantos, em suma, ao longo de todos estes anos - e tantas vezes com uma inegável coragem - se empenharam tão activamente para pôr em prática a Convenção, para a vivificar, para a tornar uma prática concreta, assumida, para fazer com que os direitos plasmados nos textos pudessem, de facto, constituir um elemento de protecção eficaz dos direitos da pessoa humana e do funcionamento democrático das nossas sociedades. São, todos eles, merecedores da nossa admiração e do nosso reconhecimento.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o seu sistema de garantia constituem um marco de enorme importância na história da tutela internacional dos direitos fundamentais e do próprio Direito Internacional Público. Pela primeira vez se ultrapassou, com o sucesso hoje unanimemente reconhecido, a fase da mera proclamação dos direitos - em que se situava, por exemplo, a Declaração Universal de 1948 - para se enveredar decididamente pela institucionalização de garantias efectivas do controlo da observância dos direitos nela consagrados, incluindo garantias de natureza jurisdicional a que, não apenas os Estados, mas também os particulares passam a ter acesso.
A importância de tais factos no plano da superação das concepções tradicionais de soberania dos Estados em benefício da plenitude da tutela internacional dos direitos do homem é inestimável. O seu significado para a construção de uma identidade europeia fundada numa cultura dos direitos é tão relevante quanto o haviam sido, no plano interno, a aprovação das declarações constitucionais de direitos ou a institucionalização da justiça constitucional.
Ao longo destes anos, a actuação do Tribunal e da Comissão tem sido marcada por um dinamismo e realismo nem sempre acompanhados pelas ordens jurídicas nacionais. Isso reflete-se, particularmente, numa jurisprudência contida, mas simultaneamente inovadora e correctiva, que tem proporcionado a actualização dos padrões morais exigida por uma sociedade democrática em rápida mutação. Do alto nível técnico e da razoabilidade das decisões do Tribunal e dos órgãos da Convenção resultou, assim, a criação e solidificação de um corpo transnacional apropriado de standards gerais de controlo capazes de constituir a base europeia de uma consciência efectiva e de um sistema vivido dos direitos do homem.
Este notável desenvolvimento colocaria inevitavelmente o sistema da Convenção perante as necessidades de uma reforma institucional capaz de assegurar a continuidade daquele elevado nível de prestações nas novas condições marcadas pela procura exponencial verificada nas últimas décadas e pelas profundas transformações políticas que se verificaram na Europa.
O novo Tribunal corresponde à resposta comum encontrada para esta fase crucial do desenvolvimento do sistema da Convenção.
São enormes as novas responsabilidades que sobre ele incidem. De um lado, responder com novos mecanismos institucionais e procedimentais às insuficiências que o sistema revelara; de outro, integrar os novos juízes e garantir a continuidade de um acquis que a todos orgulha num quadro político e geográfico renovado, marcado por experiências, especificidades e condições objectivas muito mais diferenciadas.
As dificuldades e factores contraditórios inerentes a um tal quadro são, seguramente, não negligenciáveis. Mas o potencial de desenvolvimento que ele encerra justifica as melhores expectativas.
O novo Tribunal tem, não apenas que ultrapassar os obstáculos institucionais, como tentar obviar aos atrasos, porventura incontornáveis, que se verificavam no sistema anterior. Mas mais importante será - e é este o grande desafio que se lhe coloca - fazer progredir a jurisprudência de Estrasburgo. É o que toda a Europa espera do novo Tribunal.
A aspiração comum à construção de uma identidade europeia fundada no respeito e observância dos direitos do homem, revelada claramente na adesão dos novos Estados e no reconhecimento da jurisdição do Tribunal, constitui o alicerce mais sólido da nova casa comum. Há todas as razões para crer que essa aspiração encontrará resposta adequada ao sistema da Convenção em que todos nos reconhecemos.
As possíveis consequências que daí poderão resultar para o processo de reforço da integração e solidariedade europeias não podem ser ignoradas. Aí reside, também, um contributo significativo para a Paz na Europa, porque só é possível, nos dias de hoje, alcançar uma Paz que se funde no respeito da dignidade humana e nos direitos fundamentais que dela decorrem e que a todos integre no projecto da sua construção.
O Conselho da Europa soube sempre, com clareza e determinação, assumir os valores democráticos que formam a nossa herança comum e participar activamente na construção europeia.
Assim aconteceu logo na sua fundação, quando, no meio de uma Europa desfeita pela guerra, surgiu como primeiro marco institucional de uma união das democracias europeias. Depois, no reconhecimento e legitimação das democracias ibéricas, constituindo, para nós, um apoio decisivo quando se construía a democracia portuguesa. Finalmente, o Conselho tem estado presente de uma forma particularmente activa, rigorosa e inspiradora, nos processos de construção democrática no centro e no leste da Europa, estabelecendo com esses países uma cooperação a todos os títulos profícua.
Enquanto instância que, pela diversidade geográfica, cultural e económica dos seus membros, melhor espelha esta imensa e variada riqueza do nosso continente, o Conselho continua a constituir uma sede privilegiada onde se forjam as grandes concepções indispensáveis à construção europeia, e se concertam e definem orientações relativas às grandes questões que nos preocupam.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem constituiu, em grande medida, uma ruptura com algumas das mais enraizadas tradições do Direito internacional bloqueadoras do reconhecimento universal dos direitos do homem. O sistema por ela instituído comprovou a justeza da nova via e dele há que fazer um balanço largamente positivo. Nessa medida, ele aponta um caminho e pôde constituir-se como exemplo e modelo inspirador de experiências e projectos que se constroem noutras latitudes. O novo Tribunal estará seguramente à altura das responsabilidades que emergem desse extraordinário legado.