Sessão de Abertura do I Curso Livre de História Contemporânea “Portugal e a Transição para a Democracia (1974-1976)

Lisboa
23 de Novembro de 1998



Agradeço aos organizadores o convite que me dirigiram para usar da palavra nesta sessão de abertura. Aceitei-o para poder dar público testemunho da importância que atribuo ao debate que aqui se vai realizar. Mas, aceitei-o também porque esta é talvez a boa sede institucional para partilhar algumas reflexões.
O tema da transição à democracia em Portugal, alvo já de uma importante bibliografia, conhecerá nos próximos anos uma redobrada atenção fruto das comemorações do 25º aniversário do 25 de Abril.
Todas as comemorações constituem uma oportunidade e um risco. Uma oportunidade, porque é possível mobilizar vontades e recursos que em circunstâncias normais se revelam mais escassos. Mas um risco, também, porque o comemorativismo implica sempre uma pulsão reducionista, que tanta vezes rescreve a história, iludindo numa única narrativa o que na realidade foi um feixe de processos complexos ou conferindo ao memorialismo não o estatuto de testemunho, mas o de interprete final dos acontecimentos
As comemorações dos 25 anos do 25 de Abril, começarão em breve. É preciso aproveitar a oportunidade que elas nos conferem para afastar os riscos que o comemorativismo tradicionalmente comporta. Por isso, muito gostaria que elas não se circunscrevessem apenas a uma mera celebração o acontecimento que se comemora.
Creio que é desejável que uma parte importante do trabalho se possa centrar no reforço dos meios de investigação futura sobre o processo do 25 de Abril. Importa dotar os arquivos, as bibliotecas e os centros de documentação de acervos documentais que recolham tanta documentação ainda dispersa e aproveitar a oportunidade para um grande projecto de recolha de testemunhos orais feitos por universidades com critérios científicos rigorosos. Mais do que procurar que seja a geração que viveu com vibrante emoção esse processo tão complexo a fixar a sua própria história,
Esta é uma tarefa onde é possível conjugar parcerias múltiplas entre Estado e privados. São iniciativas como esta onde nos encontramos que me estimulam a sugerir que se olhe com grandeza e generosidade para estas comemorações.
Julgo que com um ou dois anos de trabalho intenso, juntando fundos públicos e privados num programa de comemorações oficiais concebido em moldes modernos, é possível deixar às gerações futuras um legado patrimonial, mais do que uma sequência de celebrações que se esfumam rapidamente na “bruma da memória”. É, por isso, muito importante que o Estado faça uma grande campanha de sensibilização junto de financiadores privados .
Podia ficar aqui umas boas e, para mim, agradáveis horas a conversar convosco sobre o que representou para mim o 25 de Abril, não apenas o dia, esse dia inesquecível, mas todo o percurso que “A Revolução dos Cravos” permitiu.
Não o faço, porém, para não incorrer nos riscos que eu próprio enunciei. Não me compete fazer a história, sobretudo perante historiadores tão conceituados, nem é este, ainda, o momento de depositar o meu testemunho pessoal. Quero, porém, sumariar um ou outro tópico, para dele poder tirar algumas pistas sobre a forma de olhar o futuro.
Permito-me resumir uma problemática complexa num sentimento e numa ideia que me vem à memória quando penso sobre esse período: Foi possível chegar ao Futuro.
Muitos de vocês, felizmente, não viveram aquela sensação revoltante e patética de viver num país parado, vivendo em sentido contrário ao tempo do seu tempo, e com isso afastando-se cada vez mais do futuro para que toda a Europa se encaminhava.
Essa sensação de partir para trás foi particularmente marcante para a minha geração que ao ouvir a voz de marchar “para Angola e em força” assistia ao inicio da guerra colonial e de um percurso que tinha a sua motivação e destino no passado e não no futuro. A Campanha do Delgado ficará para todos nós como um marco num ciclo do regime caracterizado pela fuga contra o seu Tempo.
O 25 de Abril representou o fim desse ciclo.
A Liberdade, a Democracia e a Europa foram as apostas maiores do 25 de Abril. O processo de consolidação da democracia foi um dos períodos, mais interessantes e complexos do século XX português. A forma como se efectuou a transição política em Portugal constituiu um exemplo que marcou as transições políticas na América Latina e na Europa de Leste.
A República, agora democrática, associou desde então o seu destino à Europa. A integração europeia pôs á prova quer a capacidade do novo regime formular e resolver politicamente um grande desafio nacional, quer a capacidade colectiva de realizar e absorver mudanças estruturais a um ritmo acelerado.
Mas a integração europeia também foi um factor decisivo de estabilização democrática e contribuiu para a racionalização e o enquadramento das estratégias de modernização económica e social do país.
O caminho não foi fácil. Os obstáculos foram muitos. Mas foram vencidos porque os responsáveis políticos souberam definir uma orientação clara e preservar os consensos internos, parlamentarmente maioritários, indispensáveis para manter uma linha de rumo coerente.
A transição portuguesa ficará para sempre associada à independência das colónias portuguesas de África. As consequências deste facto foram múltiplos, quer no plano internacional, alterando os dados do equilíbrio da guerra fria, no continente africano, quer no plano interno, pelas transformações sociais que provocou e pela abertura de uma nova política em relação a África.
Com o 25 de Abril surgiram cinco novos Estados independentes, fruto do sacrifício desses povos ao longo de uma difícil luta de libertação, mas desenvolveu-se também, no país, uma nova concepção da relação entre Portugal e os outros países de língua portuguesa.
O desenvolvimento e o equilíbrio entre estas duas políticas - a Europeia e a Africana - é um elemento importante desta transição democrática e constitui um traço marcante de Portugal que a nossa diplomacia tem sabido explorar com sucesso, mesmo que ainda se tenha aqui um longo caminho à nossa frente.
Portugal mudou de uma forma impensável para todos aqueles que tenham hoje menos de quarenta anos. Transformações profundas, na economia, na sociedade, no tecido produtivo nacional, nas atitudes, nos valores dominantes, nas rede de infraestruturas. Em tudo.
É bom que se lembre que os sacrifícios também foram muitos. E que uma parte do esforço de solidariedade necessário para os minorar está por fazer.
Uma mudança tão grande só foi possível porque, de forma mais instintiva do que racionalizada, se estabeleceu um compromisso de geração, entre todos aqueles que ao longo da transição, independentemente dos seus pontos de partida políticos, perceberam que o sucesso da democracia portuguesa e o futuro do país dependiam desse compromisso.
Nessa altura, não foi possível nem dispor de instrumentos exaustivos de análise da nova realidade portuguesa, nem da possibilidade de racionalizar atempadamente os termos de um consenso de geração em torno das questões essências para o futuro de Portugal.
Hoje, não só é possível como é necessário fazê-lo. E pergunto-me se essa não será uma forma nobre e útil de comemorar o 25 de Abril. Dispomos de aperfeiçoados instrumentos de análise da realidade. Dispomos de estudos aprofundados sobre os desafios e oportunidades que temos perante nós nos próximos 20 a 25 anos.
É preciso pensar o futuro. É preciso um novo compromisso de geração. O futuro não decorre apenas das condições previamente fixadas, económicas e sociais, ou outras. Essa é apenas uma parte da questão. A outra parte é representada pelas nossas motivações, pelas nossas aspirações, pelos nossos projectos. Em suma, pela nossa vontade.
Uma vez mais as próximas comemorações do 25 de Abril podem dar o pretexto - e o pretexto é a razão primeira do comemorativismo positivista - para procurar estabelecer as bases de um debate sobre o próximo compromisso de geração.
Deixo aqui um apelo às Universidades para que procurem entre si e em parceria com privados, estabelecer um programa de trabalho que no âmbito destas comemorações, permita levar a cabo um amplo projecto de investigação interdisciplinar que perspective os grandes desafios e oportunidades com que Portugal tem de lidar nos próximos vinte a vinte e cinco anos. Porque só com base nesse diagnóstico exigente será possível estabelecer as bases de um novo compromisso de geração.
E que melhor maneira poderá haver de comemorar o 25 de Abril do que estudar a forma como se processara a transição entre o ciclo que com ele se iniciou e o novo ciclo aberto com a participação de Portugal na moeda única, pleno de incertezas e incógnitas, mas também de oportunidades, e que a uma nova geração, que não aquela que fez a Revolução dos Cravos, caberá perspectivar e gerir?
Nós recolhemos o testemunho do passado entre o caos de um regime que se desagregou em poucas horas. Nós temos o dever de procurar transmitir o nosso testemunho em condições compatíveis com a sociedade moderna e preparada que somos.
São alguns os grandes desafios que estão no nosso horizonte.
Em primeiro lugar, o desafio da cidadania. A adopção de mecanismos de aproximação entre representantes e representados, as garantias de visibilidade e transparência dos processos de decisão, bem como a extensão e a multiplicação das modalidades de participação política são vias de que depende a qualidade da democracia. O fortalecimento de uma opinião pública, informada e exigente está por consolidar no nosso país.
Em segundo lugar, a preocupação com a solidariedade. Solidariedade entre gerações, entre partes do território nacional, solidariedade na distribuição da riqueza. As questões sociais vão voltar a estar no centro da vida política, serão condição do desenvolvimento e vão exigir de todos visão e capacidade de compromisso.
Em terceiro lugar, uma nova geração de reformas do Estado. A adopção de novos mecanismos de regulação do Estado democrático deverá supor e contribuir para a autonomia dos cidadãos. As administrações, pesadas, burocráticas, “iluminadas”, não poderão continuar a deter o monopólio da acção pública e a invadir a esfera da sociedade civil. A maior eficácia da justiça tem de ser a base de reconhecimento de um regime de direitos efectivos e não apenas teóricos.
Em quarto lugar, a questão europeia. A redefinição das relações económicas entre a Europa e o resto do Mundo, o alargamento da União, a elaboração de uma nova arquitectura institucional e a prioritária redefinição do modelo social europeu serão sem dúvida questões a analisar
Por último, convém não perder de vista a questão cultural e identitária que é para Portugal um desafio crucial . Não creio possível que os Estados possam aceitar o desenvolvimento de um espaço público comum, à custa da desagregação das sociedades respectivas.
Os elementos culturais identitários, baseados na tradição, na história e no património são decisivos. Podem, também, ser factores de resistência, mas a consciência de si é sempre um factor positivo no estabelecimento de uma confiança mútua.
Creio que não faltam hoje elementos para fazer o balanço desta ampla transição, perspectivar com rigor a entrada de Portugal no terceiro Milénio e debater as bases de um compromisso de geração que permita levar o país até um novo futuro.
Não quero terminar esta minha intervenção sem deixar o meu contributo para o debate. Nem quero esquivar-me ao compromisso de um dia dar o meu testemunho de quarenta anos de vida política.
No contexto deste debate limitar-me-ei, por agora, a identificar alguns traços que são o contributo, porventura distintivo, da minha geração.
Para quem resistiu e combateu a Ditadura, poder participar na construção da Liberdade e da Democracia constituiu uma experiência duma riqueza inigualável.
Despertámos para a vida política numa encruzilhada de situações novas, de que fomos a um tempo espectadores e actores. Destacarei desse três: a sobrevivência do salazarismo, a guerra colonial e a tentativa liberalizante do marcelismo.
Começarei por esta última, pois foi no fracasso desta tentativa que teve origem o 25 de Abril. Fui daqueles que não julgaram possível um processo de liberalização controlada do Estado Novo. Por isso recusámos qualquer tipo de compromisso, e procurámos contribuir para o fortalecimento de um campo político alternativo.
Em larga medida, essa era uma herança recebida da resistência que durante décadas lutou contra o Estado Novo. Diversas orientações político-ideológicas e fórmulas organizativas tinham convergido nesse legado de que a minha geração, tocada pelo terramoto político das eleições de 58 e nascida para a intervenção cívica nas movimentações académicas e populares de 1962, se propôs recolher.
Que contributo somou a minha geração a esse legado, com repercussões no pós-25 de Abril ?
Em primeiro lugar uma inquietação de natureza teórica. A longa permanência do regime autoritário, convidava a uma análise teoricamente fundamentada da sua natureza. A preocupação com o aprofundamento dos instrumentos de análise política tornou-se uma das características do nosso modo de abordar a própria prática política.
Terá sido esta preocupação que levou muitos de nós a romper com uma visão dicotómica das soluções políticas, designadamente as inspiradas pelos projectos globais de teor ideológico.
O pendor libertário que culminou a década de 60 está presente desde o seu início e manifestou-se em valores e práticas como: o privilégio concedido à imaginação, a recusa do maniqueísmo, o gosto pelo trabalho em equipa, a interrogação permanente, o questionar das soluções feitas, a busca determinada de novas possibilidades, o gosto pela mudança, atenção ao mundo e ás suas múltiplas e contraditórias manifestações, a preocupação com as pessoas.
Daí que o nosso entendimento da democracia se mostrasse desde logo insatisfeito com o mero exercício formal. O apelo a modalidades de participação cívica, complementares e revitalizadoras dos próprios procedimentos, sempre esteve presente nas nossas discussões e propostas.
Sei que esta posição, que alguns tiveram por equívoca, não era fácil na altura. Não separava águas apenas do Autoritarismo, era distinta de outras aproximações à democracia. A invasão da Checoslováquia, introduziu também aqui uma linha de fractura irreversível.
Coube à minha geração enfrentar a questão colonial, questão na qual se jogou o destino da Ditadura. A questão colonial atravessou a sociedade e as instituições, derrotou o regime e obrigou a redefinições importantes na oposição. A guerra marcou de uma forma ou de outra, directa ou indirectamente, toda uma geração.
Abordámos a questão colonial em moldes diferentes. Refiro-me à convicção de que a independência das colónias era uma condição indispensável não só para a democratização do país, como para o futuro estabelecimento de um relacionamento fraterno e responsável com a África e o Mundo de língua portuguesa. Mas refiro-me, também, a uma perspectiva moderna do diálogo Norte-Sul e da cooperação para o desenvolvimento entre países ricos e países do terceiro mundo que depois se generalizou como política dominante em toda a Europa.
Foi com empenhamento, aberta à diversidade e confiante nas possibilidades da democracia, suportada pela generosidade e sacrifício de tantos e tantos destinos pessoais, que a minha geração enfrentou a explosão de expectativas e confrontos a que o 25 de Abril abriu caminho. E, assim, deu um contributo decisivo para que o regime democrático que construímos tenha sido capaz de dar conta, como deu, das mudanças, e chegado, como chegou, ás portas do século XXI com uma implantação sólida na sociedade portuguesa.
A transição à democracia em Portugal foi um processo complexo que se estende, nos seus antecedentes, desde o período de oposição ao regime, no pós-guerra, e prolonga as suas consequências a um ciclo de modernização do país que se conclui com à participação de Portugal na moeda única.
Esse ciclo está encerrado. Hoje, graças a ele, estamos às portas do terceiro milénio, a par de toda a Europa. Do pleno uso de todas as nossas capacidades como povo depende a nossa estabilidade e a coesão das nossas relações enquanto sociedade, no futuro.