Sessão de Abertura da Conferência “A Cultura Integral do Indivíduo, Hoje”

Lisboa
22 de Abril de 1998


Agradeço o convite que me dirigiram para estar presente nesta sessão que marca o início das comemorações dos 50 anos da morte prematura de Bento de Jesus Caraça.
Felicito calorosamente os promotores deste ciclo de iniciativas - a CGTP-IN, a Escola Profissional e o Instituto de Investigação, Cooperação e Formação que receberam o nome do nosso homenageado - e saúdo também todos os que, com a sua participação, apoio e empenhamento tornaram possível esta comemoração. É muito feliz a ideia de a realizar com espírito inovador e aberto, recolhendo o essencial da mensagem de Bento Caraça.
A diversidade de perspectivas em que a sua personalidade, acção e obra são lembradas e analisadas, a pluralidade das pessoas convidadas a depôr e a debater dão ao ciclo uma enorme riqueza e amplitude, tornando-o numa iniciativa cultural muito viva, com o maior interesse para o nosso tempo e o nosso país, num instrumento de reflexão sobre a nossa realidade, os seus problemas e desafios.
A esse propósito, é oportuno recordar as palavras com que Bento Caraça disse que “precisamos de analisar o nosso tempo e de actuar como homens dele”, sublinhando que “a aquisição de cultura significa a conquista da liberdade” e que “às organizações sindicais cabe um papel enorme nesse trabalho de libertação, promovendo intensamente a cultura dos seus membros”.
Ele foi, de facto, um homem do seu tempo cujas grandes questões equacionou com um rigor e uma clareza que ainda hoje nos surpreendem e encantam. Mas foi também um homem que, como poucos, possuía uma visão larga e para além do imediato, que media as consequências e os efeitos dos nossos actos, que prevenia os erros e os riscos, que convidava à grandeza e à generosidade. Por isso mesmo, tendo sido um homem do seu tempo, é-o ainda do nosso.
De facto, é do nosso tempo a sua curiosidade sem limites, a vontade de saber e de alargar horizontes, o espírito crítico e anti-dogmático, a capacidade de considerar as questões de todas as áreas do saber e da acção, para, com elas, construir sínteses. É do nosso tempo a conciliação que conseguia fazer entre uma altíssima competência científica e uma concepção universalista a que nada era alheio.
É ou deve ser do nosso tempo a sua radical recusa de pactuar com a mediocridade e com a demagogia, a sua exigência de qualidade moral e intelectual, de rigor, o seu incansável devotamento às causas em que acreditava.
É, ainda do nosso tempo o entendimento que tinha da política como um serviço prestado à comunidade, exercido em nome de ideais e de princípios, com o objectivo de transformar o que está mal, de ser útil aos outros.
É do nosso tempo o impulso de justiça e a sua atitude moral de insubmissão e de resistência à arbitrariedade e à opressão, tão exemplarmente expressa na Defesa que apresentou no processo da sua iníqua expulsão da Universidade.
Homem de muitos interesses e de muitos saberes, que, para além da matemática, da economia, da estatística, da demografia, da física, iam da literatura à música, da filosofia às artes plásticas, da história à pedagogia, Caraça manteve uma constante humildade e abertura aos outros.
Foi um professor querido como poucos, apesar da sua altíssima exigência com os alunos, a qual, aliás, começava consigo mesmo.
Viveu num país sem liberdade e foi preso, perseguido, humilhado, demitido. A pergunta que hoje nos ocorre é esta: numa sociedade livre, que extraordinárias possibilidades teria ele de realizar os seus projectos e de aproveitar inteiramente as suas extraordinárias capacidades?
Nas condições em que viveu, lutou por um país livre e de dignidade para todos os portugueses, por uma sociedade solidária, sem discriminações nem exclusões, por uma Escola e uma Universidade que fossem um lugar de criação de saber original, de transmissão de conhecimentos, de formação humana. Lutou por uma cultura crítica, criativa, por um Mundo de paz e de concórdia.
Nunca se rendeu nem aceitou ser derrotado, nunca desistiu. Tinha convicções e uma honradez que merecia o respeito geral. Mesmo os que dele discordavam não deixavam de reconhecer a integridade do seu carácter, a probidade intelectual, a limpidez das suas intenções.
Fiel às suas raízes populares e à memória do seu Alentejo natal, era um dos raros homens em cuja boca a palavra povo estava isenta de demagogia e tinha o puro valor da mais alta dignidade. Era tolerante e fraterno. Tinha muitos amigos que pensavam de modo diferente do seu e fez sempre dessa diversidade um motivo de enriquecimento intelectual e afectivo. Para ele, a cultura era o nosso espaço comum, onde nos reconhecemos, ao mesmo tempo, iguais e diversos.
Era ainda um homem com um carisma irradiante, com um enorme poder de sedução. Quem o via ou ouvia não o esquecia mais. O grande poeta Mário Cesariny, que, quando jovem, assistiu a uma das suas conferências, dá-nos disso um impressionante testemunho: “A minha admiração pelo Prof. Caraça data, inalterada, da primeira (e última) vez que o vi e ouvi, numa conferência pronunciada, creio que em 1943, na Universidade Popular”.
O sentido das suas palavras, verdadeiro banho de lucidez para quem aos vinte anos só topara, em matéria de mestres, com administradores do opaco, nada era ainda junto à impressão de força ágil, de inteligência proporcional ao corpo, que dele emanava (...) Homens destes vivem já no futuro para que apontam, por isso a sua visão, mesmo numa simples conferência, pode ser arrebatadora”.
Uma parte desse futuro a que ele apontava é o nosso presente. Muito diferentes daqueles que foram os dele são o nosso tempo e o nosso Mundo. As questões são, em larga medida, outras. Mas permanece como exemplo a sua exigência de as analisarmos com lucidez, para podermos agir com consequência.
Permitam-me que, em nome da importância que Bento de Jesus Caraça dava à análise dos problemas concretos do tempo em que vivemos e ao reconhecimento de que, então como agora, cabe aos sindicatos um papel relevante na conquista da liberdade, sublinhe, também aqui, a importância central que a questão social continua a ter.
É verdade que, contrariamente à ditadura de então, os portugueses têm hoje do seu lado a liberdade individual, a liberdade sindical e a liberdade política.
São, bem o sabemos, conquistas maiores que marcam o nosso presente, permitindo que analisemos livremente os problemas e discutamos abertamente as políticas com que nos propomos enfrentá-los.
Portugal vive hoje num espaço cultural, social e económico que se distingue do resto do mundo pela importância impar que nele assume a questão social e pelo relevo particular que tem o sindicalismo.
Tenho-o dito em várias ocasiões e faço questão de o vincar nesta homenagem a um homem que ousou enfrentar os problemas do seu tempo: precisamos de reinventar os instrumentos da solidariedade a partir dos problemas concretos da sociedade portuguesa.
E precisamos de o fazer por duas ordens de razões: porque temos hoje outros problemas e porque as velhas soluções se tornaram, em muitos casos, desajustadas ou mesmo impraticáveis.
Temos, em primeiro lugar, um problema de emprego, que atinge quer os que estão desempregados, quer os que estão em situações precárias de emprego, quer, ainda, os que vêem pairar no horizonte ameaças consistentes à estabilidade do seu emprego ou ao exercício dos direitos que a democracia lhes reconhece.
Temos, estreitamente ligado ao primeiro, um problema de desigualdade de oportunidades no acesso à educação, à qualificação profissional, à gestão do tempo de trabalho e do tempo livre, aos rendimentos e à protecção e à segurança social.
Temos, por último, uma mudança profunda nas possibilidades de intervenção perante as situações: mudou o contexto geoestratégico, alteraram-se as relações entre os espaços público e privado, mudaram os meios de intervenção dos agentes económicos e sociais.
Há trinta anos atrás, a lógica do compromisso social assentava no pleno emprego masculino e a questão social tinha a dimensão dos problemas de repartição, dentro das empresas e do Estado-Nação.
Hoje, o desemprego deixou de ser uma possibilidade remota e ocasional para se transformar numa característica persistente das sociedades europeias, as quais estão confrontadas com um dilema inaceitável: aceitar o desemprego e a marginalização social de uma parte dos cidadãos ou reduzir os níveis de protecção social.
Um problema desta dimensão e desta complexidade, que corrói há duas décadas a identidade europeia, não tem, evidentemente, uma solução fácil. Mas tem - tem de ter - uma solução. É dever de todos nós não desistirmos de a procurar.
É verdade que a sociedade portuguesa tem que aumentar a produtividade empresarial para poder melhorar duradouramente o nível e a qualidade do emprego, o nível das condições de trabalho e de protecção social da generalidade dos portugueses.
Mas tal não se fará sem aumentar as oportunidades dos portugueses, em geral, e sem os trabalhadores, em particular, melhorarem a sua qualificação e a sua motivação.
A experiência dos anos 80 mostra, aliás, que se enganam os que sustentam que a solução para o problema do desemprego assentaria na redução do espaço público, na desregulamentação e na competição sem limites.
Pelo contrário, as sociedades europeias que souberam realizar reformas audaciosas nos domínios da educação e da formação, da duração e da gestão do tempo de trabalho e da protecção social obtiveram melhores resultados económicos com muito menores custos sociais.
Fizeram-no enfrentando as questões difíceis da flexibilidade e da precariedade, combinando o diálogo social com a decisão política dos poderes públicos, democraticamente legitimados.
Julgo que se enganam quer os que, em nome da manutenção de direitos ou de privilégios, se opõem à reforma do modelo social, quer os que, em nome do reforço míope da competitividade empresarial, a resumem à desregulamentação e à redução do espaço público.
Pelo contrário, entendo que a limitação das desigualdades sociais induzidas pelo funcionamento dos mercados e o respeito pelo constrangimento ambiental, constituem condições incontornáveis do desenvolvimento económico sustentado e do aprofundamento da cidadania que não são viáveis sem reformas de fundo.
Há, por isso, fundadas razões para que todos se sintam perdedores sempre que se bloqueiam ou não se concretizam as reformas de que depende a salvaguarda e o desenvolvimento da sociedade de bem-estar.
Penso, assim, que precisamos de esclarecer, de um modo aberto e aprofundado, as fronteiras, as oportunidades, os meios e as estratégias que permitem a partilha de responsabilidades entre trabalhadores, sindicalistas, empresários e poderes públicos na reforma do mercado de trabalho, da protecção social e da repartição da resultados da melhoria da eficiência económica.
Da viabilidade dos compromissos explícitos sobre essa partilha de responsabilidades e de meios depende, em boa parte, a capacidade do nosso País reduzir as desigualdades, reinventar a solidariedade e aprofundar a cidadania.
Dito de outro modo: de Portugal ser um País onde todos se sintam e saibam mais livres porque mais senhores de si e do nosso futuro colectivo. Foi por esse país que Bento Caraça trabalhou, agiu e lutou.