Cerimónia de imposição de insígnias para assinalar o Dia Internacional da Mulher, no Palácio Nacional da Ajuda

Dia Internacional da Mulher

Palácio Nacional da Ajuda
11 de Março de 2000


Quero, com esta iniciativa, assinalar a passagem do Dia Internacional da Mulher, como tem sido hábito ao longo do meu mandato. Faço-o, em primeiro lugar, porque desejo partilhar convosco uma reflexão sobre a evolução do papel das mulheres na sociedade portuguesa, e sobre os obstáculos que se colocam a uma efectiva igualdade de oportunidades. Faço-o, também, porque considero que é necessária uma maior participação feminina como contributo decisivo para o desenvolvimento. Mas faço-o, acima de tudo, porque esta é uma questão essencial de direitos humanos e de democracia.

Quero começar por salientar a evolução verificada no plano jurídico ao longo do século, visando pôr termo às desigualdades entre homens e mulheres. As medidas tomadas permitiram a um número mais significativo de mulheres alcançar uma maior realização pessoal e autonomia na definição dos seus projectos de vida. Tenho consciência de que a evolução no plano legislativo nem sempre teve tradução nas práticas sociais, o que torna necessária uma profunda transformação nos hábitos culturais e nos modos de vida, para garantir a alteração de situações de grande injustiça ainda existentes. Refiro-me em concreto à violência física, existente nas culturas do mundo inteiro, e que atinge, umas vezes de forma flagrante, outras vezes de forma subtil, muitas mulheres e crianças, sendo considerada com frequência como a violação mais generalizada dos direitos humanos.

Gostaria de me referir em particular à progressiva conquista dos direitos cívicos pelas mulheres, questão essencial em que a maioria das sociedades registou importante evolução. Esta não é ainda uma realidade universal, não devendo ser esquecido que nalguns países a marginalização da vida social, cívica e política, é a regra. Não devemos tão pouco esquecer que a conquista de direitos cívicos não é necessariamente acompanhada de uma efectiva igualdade de oportunidades no acesso a funções de responsabilidade na esfera política, persistindo ainda fortes desequilíbrios com prejuízo da democracia e do desenvolvimento.

O segundo aspecto, igualmente condicionante da evolução das mulheres, diz respeito ao acesso à educação e formação. Progredimos muito neste domínio, no nosso país. De uma educação reservada a elites muito restritas, a democratização do acesso à educação realizada pela democracia transformou-a num meio potencial de integração e mobilidade social, e numa possibilidade acrescida de afirmação profissional.

A situação da população jovem é hoje bem diferente, visto que em cada três diplomados do ensino superior, dois são mulheres e que as mulheres se vêm afirmando em áreas de formação tradicionalmente reservadas aos homens.

Não devemos, porém, esquecer a dívida da democracia relativamente às gerações privadas do acesso à educação e qualificação profissional e condenadas pela ditadura ao analfabetismo. Temos no nosso país um elevado número de mulheres ainda jovens que encontram graves dificuldades quando pretendem iniciar uma actividade profissional ou mudar de emprego.

O terceiro aspecto diz respeito à afirmação progressiva das mulheres no domínio profissional. A utilização crescente da mão de obra feminina, a revelação de uma grande diversidade de competências e comportamentos, afirmou novos valores e criou uma nova imagem da mulher.

Mas este tem sido um dos domínios onde é mais difícil concretizar a igualdade de oportunidades.

Os estudos mostram que, apesar da legislação existente o proibir, existe uma discriminação, forte e persistente, entre as remunerações dos homens e das mulheres.

Sabe-se igualmente que as mulheres com a mesma qualificação e o mesmo nível de remunerações que os homens são, em regra, mais escolarizadas que estes, tal como não restam quaisquer dúvidas de que a diferenciação dos rendimentos médios entre homens e mulheres é tanto maior quanto mais alto é o nível de qualificação considerado.

Embora a percentagem de mulheres portuguesas que trabalham seja das mais elevadas da União Europeia, as mulheres estão menos presentes do que os homens no mercado de trabalho e estão-no em piores condições. De facto, as percentagens de mulheres que trabalham em empregos precários ou a tempo parcial são superiores às dos homens, do mesmo modo que as taxas de desemprego feminino - total, juvenil ou de longa duração - são sempre superiores às masculinas.

Vale a pena lembrar que, se é certo que o absentismo feminino é superior ao masculino, tal deixa de ser verdade se não se tiver em conta o absentismo ligado à assistência à família.

Tais discriminações sexuais nos mercados de emprego e de trabalho limitam a liberdade, e reduzem as possibilidades das mulheres exercerem os seus direitos de cidadania.

Minhas senhoras e meus senhores,

A democracia portuguesa constituiu e constitui um marco decisivo para a evolução do estatuto da mulher.

Na maioria das sociedades modernas, as mulheres ganharam em dignidade, realização pessoal e afirmação nos planos familiar, profissional e cívico.

Não seria porém justo ignorar as lutas, por vezes muito difíceis, que a conquista dos direitos das mulheres implicou. Queria por isso salientar o papel das mulheres e dos homens que, pondo de lado velhos preconceitos, abraçaram a causa dos direitos das mulheres, com muita persistência e dedicação.

Permitam-me que homenageie de forma muito particular, congratulando-me pela honra que nos dá com a sua presença aqui hoje, a Senhora Simone Veil, pela extraordinária dignidade, empenho e coerência de uma vida distinta em que o combate pela dignidade da mulher é nota marcante.

Num mundo em que os jovens são cada vez mais cépticos relativamente à política, e em que existe uma desmotivação crescente face à participação cívica, o exemplo da sua vida e a persistência com que tem defendido as causas em que acredita, constitui uma referência essencial.

Minhas senhoras e meus senhores,

Ao longo do meu mandato, nos contactos desenvolvidos no país, confrontei-me com experiências muito interessantes de pessoas que, com generosidade e persistência, defendiam causas visando resolver problemas reais da sociedade.

Muitas dessas causas representam a dedicação de uma vida, e deram origem a projectos de intervenção desenvolvidos com competência e com criatividade, mesmo se os motores dessas causas são pessoas cujo trabalho a sociedade ignora.

São as heroínas e os heróis desconhecidos deste país, a que frequentemente me tenho referido e cujo contributo para aliviar o sofrimento humano, para a defesa do planeta, dos direitos humanos, da liberdade não me cansarei de sublinhar.

Tenho-me interrogado sobre a perda para a democracia que constitui a invisibilidade de muitas dessas acções, privando a sociedade de exemplos de intervenção cívica, demonstrativos de que a solidariedade vale a pena.

A democracia necessita de cidadãs e de cidadãos empenhados, capazes de resolverem problemas e de defenderem os valores em que acreditam, de contrariarem o espírito de indiferença.

Capazes de reagirem perante injustiças, de se baterem com persistência e generosidade pela solução dos problemas que afectam as pessoas, a sociedade e o planeta.

Permitam-me que recorde o empenhamento colectivo dos portugueses na defesa da independência de Timor. Tratou-se, neste caso, de uma causa com grande visibilidade mediática, aliás decisiva para o seu sucesso.

Mas muitas outras causas mobilizadoras do empenhamento de cidadãos poderiam ser dadas como exemplo. São, em geral, momentos de vitalização da democracia que considero importante apoiar.

Tive o privilégio de conhecer e contactar nos últimos anos muitas iniciativas exemplares de mulheres e de homens defensores de causas, muito valiosas para a democracia e para o desenvolvimento do nosso país.

Convidei, por isso, alguns deles para estarem aqui presentes hoje. Quero felicitar-vos vivamente pela acção que têm vindo a desenvolver e agradecer o contributo que têm dado ao país.

Quis neste Março do ano 2000, agraciar mulheres que se distinguiram na defesa de causas relacionadas com a melhoria da educação; a promoção da cultura; a defesa da língua portuguesa; o desenvolvimento da compreensão internacional; a integração social e o fim do trabalho infantil; o cumprimento dos direitos humanos; a defesa dos direitos dos trabalhadores; a defesa da família e dos direitos das mulheres e das crianças, o apoio a doentes e a protecção da natureza.

Minhas senhoras e meus senhores

Ao terminar a minha intervenção quero referir quatro orientações que considero essenciais para uma maior dignificação de homens e mulheres na sociedade portuguesa. Refiro-me, em primeiro lugar, à necessidade de melhorar a compatibilidade entre a vida pessoal e familiar e a vida profissional dos homens e das mulheres. Todos, e sublinho o todos, todos sabemos, dizia, como é desigual a repartição das tarefas entre homens e mulheres dentro das famílias. E, evidentemente, não ignoro que este é um terreno particularmente sensível, em que a influência das tradições e dos estereótipos em que fomos educados pesam de forma significativa.

A sociedade portuguesa precisa de continuar e de ampliar os esforços que vêm sendo feitos para fornecer às famílias os apoios de que estas carecem.

Mas se a intervenção cívica e política deve ser especialmente prudente quando intervém na esfera privada, nem por isso a sociedade está condenada a aceitar que a família seja um reduto inexpugnável onde nada há a fazer para banir a violência física, reduzir a desigualdade e promover a equidade.
Em segundo lugar, uma palavra quanto ao mundo do trabalho.

Sei bem, e tenho-o dito em múltiplas ocasiões, que vivemos um tempo em que as empresas têm de enfrentar desafios cada vez mais exigentes de competitividade, o que, num país com as características do nosso, é e será um desafio particularmente difícil e prolongado.

Mas é possível, também nesse domínio, fazer mais e melhor para conciliar os desafios da produtividade com os direitos cívicos e sociais que constituem um património da nossa sociedade.

E, se o incumprimento da lei é sempre uma forma de limitar o Estado de Direito, o desrespeito, nalguns casos reiterado, das normas de protecção da mulher no trabalho é particularmente chocante e inaceitável.

Apelo, pois, às empresas e às organizações de trabalho para que as suas estratégias de desenvolvimento concedam uma importância crescente às medidas de redução da desigualdade e de promoção da equidade entre homens e mulheres no acesso ao emprego e à formação, no desenvolvimento do profissionalismo e na retribuição do trabalho.

Quero, em terceiro lugar, afirmar a importância de prosseguir a aposta na educação e em especial na educação ao longo da vida como instrumento essencial de realização pessoal e integração social e profissional. Mas a educação é igualmente um instrumento essencial para vencer estereótipos e desenvolver novos equilíbrios.

Uma preocupação final prende-se com a necessidade de melhorar a qualidade da democracia, nomeadamente através de uma maior participação de todos os cidadãos nas decisões políticas, e de uma abertura dos círculos do poder a novos públicos e a novos problemas. Já tenho dito noutros contextos que acredito que uma maior participação feminina nos partidos políticos poderá contribuir para a renovação da agenda política e para a sua aproximação das preocupações dos cidadãos. Esta transformação não se dará automaticamente com um mero aumento do número de mulheres na política. Ela exige que nos questionemos sobre ritmos, rituais e conteúdos do trabalho político, por forma a atrair novas e novos protagonistas.

A transformação exige que a política assuma também, e cada vez mais, a defesa de causas.