Jantar em honra do Presidente Jacques Chirac

Palácio Nacional da Ajuda
04 de Fevereiro de 1999


Senhor Presidente,
Vossa Excelência costuma qualificar, de uma forma particularmente feliz, as relações entre os nossos dois países: elas são “sólidas e confiantes”.
Partilho inteiramente este sentimento, que se radica na linha multissecular de laços, de afectos e de cumplicidades que unem duas das mais antigas nações da Europa.
Entre a França e Portugal existe uma amizade exemplar que vem de longe, desde as origens da nossa nacionalidade, assente em idênticas raízes culturais e em múltiplos e renovados intercâmbios humanos que, ao longo dos tempos, ajudaram a forjar as estreitas afinidades inspiradoras do nosso presente relacionamento.
É animado deste espírito que lhe desejo, Senhor Presidente, em nome de Portugal e dos portugueses, as mais calorosas boas-vindas, a si pessoalmente e a todos os que o acompanham.
Permita-me que lhe diga que o recebemos, antes de mais, como um amigo, um amigo a quem a expressão democrática do povo francês confiou as mais altas responsabilidades da República e a defesa dos valores perenes que ela representa: a Liberdade, a Justiça, a solidariedade, a tolerância, o respeito pelos direitos da pessoa humana.
Valores estes que carecem de ser constantemente afirmados e firmemente defendidos, tanto mais que assistimos a tentativas, ora declaradas, ora subreptícias, de minar os fundamentos democráticos em que assentam as nossas sociedades, a pretexto, tantas vezes, das tensões entre a modernização económica e a coesão social, ou, noutras, de inaceitáveis preconceitos étnicos e raciais.
Esta visita do Presidente da República francesa, que muito nos honra, reveste-se de um particular valor pelo impulso que dará ao nosso relacionamento tradicional num momento novo e crucial da vida da Europa e de profundas transformações da sociedade internacional.
Partilhamos, franceses e portugueses, memórias históricas, experiências e valores comuns, de que nos podemos orgulhar e que nos aproximam no trabalho apaixonante de repensar a Europa do próximo milénio.
E soubemos, em períodos difíceis do nosso viver deste século, dar corpo concreto ao conceito de solidariedade; assim foi durante o primeiro conflito mundial, como bem o ilustra o comovente cemitério militar português de Richebourg, perto de Lille; assim foi também, em alturas várias, quando a França acolheu exilados políticos portugueses ou, nos anos sessenta, serviu de segunda pátria para centenas de milhares de portugueses em busca de um futuro que aqui lhes era negado.
A presença lado a lado de soldados franceses e portugueses na Bósnia, constitui a mais recente manifestação desta solidariedade comum, em defesa dos ideais que nos norteiam, da paz e da Justiça.
E, se me permite uma nota mais pessoal, gostaria de lhe dizer, Senhor Presidente, que não esquecemos também o apoio concedido pela França, pelos seus partidos políticos e organizações cívicas, por tantas individualidades, escritores, artistas e jornalistas, à causa da democracia em Portugal, durante o longo período ditatorial a que fomos sujeitados.
A este propósito, recordaria o grande escritor português Almeida Garrett, cujo nascimento, há duzentos anos, comemoramos neste dia exacto.
Almeida Garrett foi também um heróico combatente pela liberdade, e este combate levou-o a exilar-se em França e a afirmar, num célebre texto intitulado “Portugal na balança da Europa”, que o destino da liberdade estava intimamente ligado ao povo francês, à sua generosidade e devoção.
Mas tantos outros portugueses houve e há, para quem a França é um território privilegiado de afectos, de exigentes expectativas, de permanente diálogo intelectual. De André de Gouveia, amigo de Montaigne, a Vieira da Silva; de Herculano a Amadeo de Sousa Cardoso; de Eça de Queiroz a todos quantos, intelectuais e artistas portugueses por ali andaram, como dizia Antero de Quental, em busca da “totale compréhension de ce qu’est la grande vérité humaine, individuelle, sociale, rationnelle et affective”.
Falava, Senhor Presidente, da importância da sua visita no quadro deste momento novo da vida da Europa e do mundo que estamos a viver.
Não temos, entre nós, quaisquer contenciosos e é visível a dinamização dos intercâmbios nos mais diversos domínios, ilustrando bem o elevado nível do nosso relacionamento. A França é o nosso terceiro parceiro comercial e investidor, e o primeiro mercado para vários produtos portugueses. Somos já o décimo destino das exportações francesas e esta dimensão apreciável do nosso relacionamento económico encerra novas e acrescidas potencialidades comerciais e tecnológicas a nível bilateral e também em direcção a terceiros mercados. Estou certo de que o seminário que reunirá amanhã empresários dos nossos dois países contribuirá para um ainda maior aprofundamento destas questões.
Existe, hoje, em França, uma melhor percepção da modernidade de Portugal, corrigindo a imagem desfocada que existiu noutro tempo. Regozijamo-nos, todos, com o crescente interesse dos franceses pela cultura portuguesa, nomeadamente pela nossa literatura e pelo nosso cinema, mas caber-nos-á mostrar ainda mais aquilo que somos.
No reforço constante das nossas relações tem assumido um papel destacado a presença singular em França de uma numerosa comunidade de origem portuguesa, presente em todo o território; uma comunidade que demonstrou uma capacidade exemplar de integração mas que mantém bem vivas raízes e ligações a Portugal. Uma comunidade a quem o estatuto de cidadania europeia atribui doravante direitos e deveres cívicos na vida política francesa.
Parceiros activos na União Europeia, cabe-nos colaborar, na medida das nossas capacidades e identidades, no estabelecimento de um ordenamento internacional onde seja mais firme a paz, mais sustentada a prosperidade e menores as desigualdades entre os Povos.
Torna-se necessário reforçar o mundo multipolar em que vivemos como base de maiores equilíbrios na sociedade internacional. Estamos perante a necessidade imperativa de adoptar, como Vossa Excelência propôs, uma “Agenda para a mundialização”, com novas regras de conduta, baseadas na equidade, na solidariedade, na diversidade das identidades, na liberdade, na protecção do ambiente, na complementaridade internacional, na gestão eficaz de riscos ameaças.
A criação da moeda única europeia constituiu um marco singular do aprofundamento do processo europeu. O EURO é um poderoso instrumento de integração, de afirmação externa da nossa comunidade, e um desejável polo de estabilização monetária internacional.
Mas o sucesso da união monetária dependerá de uma convergência crescente entre as políticas económicas e sociais dos Estados membros, do reforço constante das condições de coesão do espaço europeu e da redução das disparidades entre as regiões que o compõem.
Só assim poderá a moeda única assumir o seu papel, não apenas de instrumento de competição económica internacional, mas também de alavanca de modernização e de reforço da coesão na Europa, permitindo o crescimento sustentado e garantindo a estabilidade democrática.
Trata-se de uma questão fundamental, tanto mais que as disfunções na economia de mercado, com o desemprego e a reprodução de fenómenos de exclusão, de desigualdade e de pobreza, criam tensões inevitáveis no seio das nossas sociedades.
A crise do modelo social europeu, que atinge todos os nossos Estados, exige não apenas estratégias específicas de reforma em cada um deles, mas, e sobretudo, respostas comuns europeias.
Permitam-me que saúde, neste contexto, a acção empenhada da França no processo que conduziu à aprovação do Pacto do Emprego no Conselho Europeu de Viena.
A Europa terá de ser social e não apenas económica e monetária; terá de ser de cidadãos e não apenas de consumidores; terá de assumir-se cada vez mais como um projecto político, em todas as suas dimensões; terá de constituir permanentemente um projecto de todos e para todos, sob pena de trair os valores e os ideais que sustentam o próprio processo integrador.
Alargar a União constitui o passo seguinte da construção europeia e nele se joga, em grande parte, a sua própria credibilidade política. Apoiamos esse processo sem hesitações nem reservas, desde logo pela nossa própria experiência em que a solidariedade europeia foi essencial para a consolidação da democracia e do nosso desenvolvimento económico.
Não minimizamos, no entanto, a complexidade do próximo alargamento, tal como não poderemos aceitar que ele se transforme num pretexto ou num elemento de dissolução do projecto europeu, nem que afecte o nível de integração já conseguido ou o grau de coesão económica e social entre os Estados da União. O alargamento tem de constituir um esforço comum de todos, num quadro em que se reforce a solidariedade em que se baseia a construção europeia.
Senhor Presidente,
Urge, hoje mais do que nunca, reafirmar com clareza a natureza política do projecto europeu, a necessidade de aumentar a nossa integração política, retirando todas as consequências lógicas da criação da moeda única.
A Europa tem de assumir responsabilidades acrescidas na defesa dos seus interesses comuns próprios, designadamente na estabilização das suas relações com a Rússia e a Ucrânia, em relação ao Médio Oriente, na consolidação do relacionamento com os parceiros mediterrânicos, na África e na América Latina; tem de poder agir, de forma eficaz, com uma só voz, quer seja na Bósnia, no Kosovo ou em relação ao Iraque.
Relativamente ao Mediterrâneo, temos responsabilidades particulares. Do progresso económico e social dos países da sua orla sul depende, em larga medida, a estabilidade de toda esta vasta região, e, porque não dizê-lo, a nossa própria segurança. O processo de Barcelona tem de avançar de forma decidida, evitando a acumulação de frustrações e ressentimentos que minam a nossa própria credibilidade. Temos de dar corpo a uma efectiva relação de vizinhança e de parceria, claramente assumidas, baseadas na solidariedade e no diálogo franco sobre todas as questões de interesse comum.
O impasse que se verifica no processo de paz no Médio Oriente justifica igualmente a preocupação legítima de quantos defendem o direito à paz e ao progresso de todos os povos da região, baseada no cumprimento escrupuloso dos acordos livremente consentidos e no respeito pelas decisões das Nações Unidas.
É indispensável, também, ultrapassar um certo “afro-pessimismo” e avançar, de forma decidida, no reforço da nossa cooperação com todo um continente a que estamos ligados por tantos laços. Temos de contribuir, de forma empenhada, apoiando nomeadamente as Nações Unidas e as organizações de âmbito regional, para fazer face de forma eficaz aos sinais ameaçadores de conflitos que prenunciam já uma crise de mais vastas e perigosas proporções. Não queremos, certamente, nesta viragem de século, que a África continue a ser um continente adiado.
A cimeira com a América Latina constitui igualmente um desafio à nossa capacidade e à nossa vontade política. A declaração da 8ª Cimeira Ibero-Americana que se reuniu em Outubro no Porto, sobre a situação financeira internacional, sublinha, de uma forma particularmente eloquente, a necessidade de um reforço da solidariedade que deve prevalecer na abordagem e resolução de tão graves problemas que afectam a sociedade internacional no seu conjunto.
A defesa do direito internacional e a valorização dos direitos humanos na construção da política externa da União são um marco fundamental da nossa identidade internacional.
Gostaria, neste contexto, de referir a situação em Timor-Leste. A nossa posição é bem conhecida; não temos quaisquer interesses egoístas mas o dever de defender os direitos dos timorenses, para garantir a sua liberdade e dignidade, no cumprimento das obrigações resultantes do mandato como potência administrante do Território.
As mudanças na Indonésia, com o início de uma transição cujo objectivo é uma profunda reforma das instituições políticas, tem, naturalmente, profundos efeitos naquela questão.
Pela nossa parte, quisemos assinalar o nosso reconhecimento por aquelas mudanças políticas, designadamente com o acordo sobre a abertura de secções de interesses dos dois Estados. Por outro lado, mantemos uma total disponibilidade para continuar a procurar, sob a égide do Secretário-Geral das Nações Unidas, uma solução digna e honrosa para a questão de Timor-Leste, que abra o caminho para um quadro democrático de autogoverno e para o livre exercício do direito à autodeterminação.
Senhor Presidente,
Quer no que diz respeito à Política Externa e de Segurança quer no que concerne uma política europeia de defesa, o importante é que haja uma clara vontade política, um propósito comum, um efectivo desejo de criação das condições indispensáveis para a sua prossecução. São estes os elementos fundamentais para dotar a Europa de uma política externa eficaz, coerente e credível.
A visão política do futuro europeu é igualmente imperativa nas negociação sobre a agenda 2000, na qual a França detém responsabilidades especiais. Esta visão tem de impôr-se necessariamente a uma rigidez contabilística que constitui um risco maior para as políticas comunitárias que forjaram, afinal, a força da Europa.
Não duvidamos que as autoridades francesas estão conscientes das especificidades de Portugal e da necessidade de preservarmos as condições do nosso desenvolvimento, após os sucessos já registados e os sacrifícios consentidos, reafirmando com clareza a solidariedade que está na essência do projecto europeu.
Um projecto europeu que tem de ser de todos e para todos; um espaço em que os cidadãos se revejam e que sintam como solidário e susceptível de permitir a sua efectiva realização pessoal; uma comunidade de destinos dos povos que o integram.
Se me permite, Senhor Presidente, citarei a este propósito uma frase do seu ilustre predecessor, o Presidente de Gaulle : “quand vient le moment de décider, il faut regarder vers les sommets - la lumière y est plus vive” !
Senhor Presidente,
Na nossa concepção comum, a sede de todo o poder reside no cidadão, no Homem que pensa, que se expressa, que escolhe livremente. A evolução das nossas sociedades democráticas terá de visar, sempre, o reforço das condições do exercício da cidadania, da liberdade e da dignidade do Homem, libertando-o do medo; do medo não apenas do seu semelhante ou do medo da guerra, mas também libertá-lo dos espectros da rejeição social, da exclusão económica, da intolerância e da xenofobia, de todas as formas de marginalização que minam as nossas sociedades.
É por isso que permanece válida e actual a defesa dos ideais republicanos da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Significam eles que estamos activamente empenhados na construção de uma sociedade em que o aprofundamento da democracia, a igual dignidade de todos e a sua participação na “res publica”, constituem a condição do dinamismo social.
É esta, também, a essência do projecto europeu.
Monsieur le Président,
Le grand historien portugais Alexandre Herculano disait de la France que “c’est là qui vivent les écrivains que nous allons jusqu’à aimer comme s’ils étaient les nôtres”. Je crois que cette phrase exprime bien la richesse et la densité de nos relations ainsi que notre confiance dans le rôle solidaire de la France dans les débats qui nous préoccupent aujourd’hui, auxquels elle doit apporter, comme dirait Claudel, “toujours l’harmonie et l’équilibre”.
Je demande à tous de porter um toast au bonheur personnel do Président Jacques Chirac, à la prospérité du Peuple français et à l’amitié entre nos deux pays.