Sessão de Abertura do Congresso de Estudos Queirosianos

Coimbra
06 de Setembro de 2000


Este Congresso de Estudos Queirosianos é, do programa destinado a assinalar o centenário da morte do grande escritor, um dos acontecimentos mais relevantes e decerto um dos mais fecundos.

De facto, penso ser esta a pergunta que devemos fazer, a propósito da passagem de uma efeméride como esta: que fica das comemorações quando acabam? Delas, o que deixamos às gerações seguintes?

E podemos dizer que as comemorações valeram a pena se, a esta pergunta, respondermos: resultou um maior e mais amplo conhecimento do escritor e uma vontade renovada de leitura dos seus livros; aumentou o interesse para aprofundar o estudo da sua obra, abrindo novas perspectivas de abordagem e iniciando caminhos inovadores de análise. É isso que mostra a actualidade de um escritor e que torna viva a homenagem que lhe prestamos.

Sei que este Congresso tem este grande objectivo: abrir a obra queirosiana ao nosso tempo e abrir o nosso tempo à obra do grande romancista.

Com efeito, cada época tem, de um artista e da sua obra, uma visão que lhe é própria, valorizando aquilo que corresponde aos seus interesses e preocupações.

Perguntemos, pois: que Eça é o nosso e de que modo ele é diferente do Eça dos que nos antecederam? Como o viram eles e como o vemos nós? Que Eça é o nosso, neste ano 2000 e num país democrático e europeu? Em que medida ele é diverso, por exemplo, do Eça, das comemorações do centenário do seu nascimento, celebradas nesse ano de 1945 em que a Guerra terminou, e em que, num país isolado e oprimido, havia a esperança de uma abertura, que, afinal, não se veio a verificar?

Ao reflectir sobre as “continuidades do legado queirosiano na língua e na literatura portuguesa”, ao avaliar “a sua fortuna cultural: traduções e interpretações”, ao deter-se sobre as suas “representações: no cinema, no teatro e na televisão, nas artes plásticas e na banda desenhada”, o Congresso vai, de certa maneira, responder às perguntas que referi, na busca de conclusões actualizadas. Se, no final, Eça de Queiroz surpreender o próprio Congresso que reúne os seus especialistas, essa é a melhor prova da sua vitalidade e da sua riqueza. Como já tive ocasião de dizer, Eça seria o primeiro a recusar que o sepultassem na sua glória póstuma.

Este Congresso congrega cerca de 400 participantes, muitos vindos de diversos países, como é natural, uma vez que a obra do autor de “Os Maias” não tem cessado de alargar a sua irradiação. Essa irradiação, sendo embora assinalável, merece ser maior, pois penso que os seus romances e os seus outros escritos, pela sua superior realização artística e pelo alcance da sua visão, constituem um património de toda a humanidade.

Quero ainda assinalar o facto de, entre os congressistas, estarem muitos professores do ensino secundário. Considero isso um bom sinal. Como tive ocasião de dizer recentemente, pela experiência que tive com os meus próprios filhos, não tenho dúvidas de que o papel dos professores é fundamental para suscitar o interesse por uma obra literária.

Quase sempre são os professores os responsáveis por que se fique atraído e ligado para sempre a uma obra ou, pelo contrário, que, passada a obrigação do seu estudo curricular, nunca mais se regresse a ela. Essa responsabilidade torna a presença dos professores aqui muito importante. A continuidade de uma obra no tempo, assegura-se pela passagem do testemunho de umas gerações para as outras.

Estamos em Coimbra, “na encantada e quase fantástica Coimbra”, nesta Universidade onde Eça, os seus companheiros e muitas das suas personagens estudaram. E não estudaram, apenas: amaram, estroinaram, fizeram revoluções, desafiaram convenções, sonharam o futuro.

Coimbra e a sua Universidade têm, na obra do autor d’ ”O Primo Basílio”, uma importância capital – para o bem e para o mal. Creio que ainda é pedagógica para todos a leitura das páginas que Eça consagra a Coimbra, quer n’Os Maias, quer nas Notas Contemporâneas (nesse testemunho extraordinário sobre Antero, intitulado “Um Génio que era um Santo”), quer ainda n’A Ilustre Casa de Ramires” ou n’A Relíquia.

Podemos dizer que a geração de Eça foi uma geração pioneira das lutas académicas, visando melhorar a Universidade. Mas a sua ambição, como a de outros mais tarde, foi maior: era de melhorar o País que se tratava. Oiçamos Eça: “A Universidade era, com efeito, uma grande escola de revolução: - e pela experiência da sua tirania aprendíamos a detestar todos os tiranos, a irmanar com todos os escravos”. Muitos de nós, poderíamos, noutros tempos que felizmente passaram, ter feito nossas estas palavras de Eça.

Ao traçar o retrato de Antero, Eça diz: “ninguém resumia com mais brilho os defeitos e as qualidades daquela geração rebelde a todo o ensino tradicional, e que penetrava no mundo do pensamento com audácia, inventividade, fumegante imaginação, amorosa fé, impaciência de todo o método, e uma energia arquejante que a cada encruzilhada cansava. Coimbra vivia então numa grande actividade, ou antes num grande tumulto mental”.

Este texto resume o que Portugal deve a esta geração que inquietou e que nos fez mais modernos. Quase todos eles acabaram por declarar-se “vencidos”. Podemos, hoje, dizer, que, feitas as contas, o não foram, pois o que nos legaram foi imenso e constituiu semente de futuro. Está agora nas nossas mãos fazer com que não se considerem mais vencidos aqueles que, no nosso tempo, continuam a luta pelas grandes reformas que podem fazer de nós um país mais europeu, como queriam Eça e Antero.

Grande artista, escritor dos maiores da nossa língua, homem que olhava para o futuro, Eça de Queiroz deixou-nos uma mensagem de inconformismo e de exigência.

Ao terminar estas palavras que vos dirijo, desejando os maiores êxitos a este Congresso e saudando todos os participantes, deixo uma reflexão do escritor que homenageamos. Creio que a devemos ter como uma actualíssima mensagem dirigida a nós, homens e mulheres do Portugal democrático do ano 2000: “Uma nação vale pelos seus sábios, pelas suas escolas, pelos seus génios, pela sua literatura, pelos seus exploradores científicos, pelos seus artistas. Hoje, a superioridade é de quem mais pensa, antigamente era de quem mais podia”.