Vida política precisa de modernizar-se


24 de Abril de 1999



Vida política precisa de modernizar-se

FREDERICO MARTINS MENDES
JOSÉ LEITE PEREIRA
LUÍS FOLHADELA


Jorge Sampaio começava uma semana decisiva. Iniciou a sua manhã lendo todos os despachos sobre a situação em Timor-Leste, teve um almoço de trabalho com Jaime Gama, ouviu partidos sobre as negociações de Nova Iorque, reuniu o Conselho de Estado, para o qual convidou o chefe da diplomacia, e o Conselho Superior de Defesa Nacional sobre a questão balcânica. Nessa maratona do passado dia 19, teve ainda tempo para fazer ao JN o balanço dos três anos de mandato (que completou em 9 de Março) e explicar as suas acções no passado próximo e as suas preocupações presentes e futuras. Tudo com grande clareza, a contenção que advém da sua leitura dos poderes presidenciais e o rigor do jurista. Jorge Sampaio diz compreender a emoção, mas considera que o Presidente não pode perder a serenidade, porque o referencial que representa e a relação de confiança com os portugueses é a garantia última do sistema.

Rejeita qualquer tipo de diplomacia paralela e sublinha que as suas inúmeras viagens de Estado têm sido sempre articuladas com o Governo, prefere uma visão cooperante dos poderes de Estado às guerrilhas institucionais, deixa transparecer a sua preferência por processos políticos claros com objectivos definidos, de poderes fortes mas dialogantes. Aponta que Portugal deve estar preparado para tudo no que respeita a Timor-Leste, e mostra preocupação sobre a desvalorização das Nações Unidas como grande instância internacional de resolução de diferendos. Quanto a direitos de ingerência, a existirem, considera que urge regulamentá-los, sob pena de cair na regulação impositiva do mais forte. Para a questão balcânica propõe um "pacto de estabilidade" e a reunião de uma conferência sobre a Europa do Sudeste.

JN- As últimas duas semanas terão sido as mais perturbadoras, as mais dramáticas, as mais terríveis e porque não as mais dinâmicas dos seus três anos de mandato?

Jorge Sampaio - Não usaria a expressão terrível. Portugal tem hoje responsabilidades internacionais que não tinha há 25 anos e essas responsabilidades convergiram, neste momento, de uma forma muito intensa. Há que lhes dar resposta.

Por um lado, pertencemos à Aliança Atlântica, condição que implica deveres e obrigações num contexto de extrema dificuldade. Em Macau, temos muita responsabilidade mas, felizmente, o processo de transição está a correr bem. E há a dramática situação de Timor. Portugal é a potência administrante, com responsabilidades perante as Nações Unidas , no contexto internacional, e também no plano ético e moral. Há, ainda, a negociação permanente no seio da União Europeia e o fecho da Agenda 2000. Portanto, um pequeno país como Portugal, pelo facto de se ter desenvolvido, do ponto de vista das relações internacionais - sequência natural do seu próprio desenvolvimento político interno, económico e social, tem subitamente um grande conjunto de responsabilidades. Há que lhes responder na medida do possível, e o melhor que for possível.

- Mas, para além das preocupações de natureza internacional, houve também episódios nacionais...

- Foram três situações distintas. Desde logo, a questão da justiça. Finalmente, demo-nos conta, de uma forma clara, de que há problemas que têm muitos anos e que não tinham concitado interesse como agora. Tenho dito sistematicamente que a grande questão reside na credibilidade das instituições investigatórias e judiciárias perante os cidadãos. É necessário que os cidadãos percebam que o sistema funciona ao encontro das suas expectativas, que têm justiça pronta, rápida e eficaz.

Segundo aspecto: não devemos de maneira nenhuma, nem por uma vírgula, pôr em causa a arquitectura constitucional de rigorosa separação de poderes e independência das magistraturas. É uma criação do nosso regime constitucional, um sistema que tem, a meu ver, as garantias indispensáveis que asseguram aos magistrados independência e que asseguram aos cidadãos os direitos que daí decorrem.

E, em terceiro lugar, temos algumas manifestações de protagonismo dos agentes do sistema. Preferiria que estivéssemos mais preocupados com a forma de resolver as questões colocadas pelos cidadãos.

Em quarto lugar, há uma nova criminalidade e o país, subitamente, questiona-se se teremos, neste momento, meios suficientes, ou capacidade suficiente para responder àquela grande e grave questão que se coloca hoje às democracias: responder à nova criminalidade, a do branqueamento de capitais, às transferências volumosas de recursos financeiros no contexto desse branqueamento. Temos, aí, um défice que está a ser rapidamente suprido, mas existe uma desproporção, em Portugal, entre a preocupação com a pequena traficância, que enche os nossos tribunais criminais, e a ausência visível de resultados que eram indispensáveis em relação ao tipo de criminalidade económica a que me referi, mas que não se podem obter com facilidade e, para os quais, só mais recentemente há meios disponíveis. Esse é o coração da questão democrática, para mim.

O resto são equilíbrios entre poderes. E talvez uma nova função da Assembleia da República de "accountability" do próprio sistema jurídico. Tudo isso está equacionado. Agora, não nos esqueçamos que as nossas democracias hoje, se pensarmos nos capitais da droga, na economia paralela, nos chamados crimes de colarinho branco, têm graves questões diante de si. Essas questões, hoje, são as essenciais. E concluo quanto à Justiça: vigora no nosso sistema, o Princípio da Legalidade, segundo o qual há que proceder contra todas as infracções, desde a pequena contravenção à grande criminalidade. Como resultado, grande percentagem do tempo útil é ocupado com as pequenas coisas. Isso consome meios e tempo necessários para maior eficácia na grande criminalidade. Outros países, igualmente com Estado de Direito, dizem que não é necessário o Princípio da Legalidade, e vigora, na sua vez, o Princípio da Oportunidade, como em certos regimes anglo-saxónicos.

Essa discussão, gradualmente, vai ter que se fazer um dia em Portugal, porque é a única maneira de libertar o sistema das chamadas bagatelas que o entorpecem e o deixam com poucas possibilidades de responder.

Equilíbrio de poderes continua a ser o correcto


- Do seu ponto de vista, os equilíbrios de poderes estão garantidos e a polémica entre a Magistratura Judicial, Ministério Público e Polícia Judiciária está deslocada?

- Os princípios e o sistema estão correctos. São o produto de uma evolução constitucional portuguesa consensual nos últimos 10/15 anos. E, por isso, a escolha de um director-geral da Judiciária é uma escolha da estrita competência do Governo e de mais ninguém. E não deve ser vista em Portugal como algo de transcendente. É, sem dúvida, importante, do ponto de vista da confiança, da resposta de uma instituição, mas não pode aparecer no debate político como se o director da Judiciária fosse uma peça indispensável no equilíbrio dos poderes em Portugal. Não podemos passar a vida a falar sobre o que se passa neste ou naquele processo, temos que ter a contenção necessária. Há questões de equilíbrio muitíssimo importantes a desenvolver em Portugal. Espero que a evolução deste debate leve a uma maior responsabilização de alguns dos seus intérpretes e intervenientes. Não podemos ler nos jornais a descrição detalhada das investigações. É péssimo para os direitos individuais e para as investigações. Este equilíbrio é difícil de obter. Há que dar garantias às pessoas de que o seu nome não aparece quando não acontece nada nem se prova coisa nenhuma. Isso também perturba um processo investigatório. É a questão tradicional do processo penal - onde está a eficácia e onde está a defesa dos direitos individuais?

- Sobre esse ponto de vista, a posição do Conselho Superior da Magistratura foi uma questão meramente corporativa?

- O Conselho Superior da Magistratura tem uma determinada competência, que é a de saber se do ponto de vista funcional, a pessoa em causa faz falta ou não faz falta no serviço que lhe está distribuído. Não pode fazer uma pronúncia sobre a bondade do sistema, porque a lei diz que, de facto, o director da Judiciária pode ser ou juiz ou um magistrado do Ministério Público. A independência do Conselho Superior da Magistratura é total e deve manter-se contra tudo e contra todos, mas não pode extravasar daquilo que são as suas atribuições. E essa é uma apreciação funcional, e não uma apreciação política.

- Há, em parte da opinião pública, a ideia de que falta credibilidade aos políticos e de que os magistrados são pouco trabalhadores...tem sentido essas insatisfações?

- Noto, efectivamente, insatisfação. Quanto à questão política e à questão dos políticos, não há dúvida que há um estado de espírito na vida portuguesa e na cultura portuguesa e na história portuguesa - basta ler o século XIX - para se perceber que há uma distância entre o que é a vida política protagonizada pelos políticos e a vida participativa dos cidadãos. A opinião pública sobre a vida política tem altos e baixos. Há momentos grandiosos em que essa aproximação se faz, há outros em que ela se afasta. Julgo que as democracias europeias vivem um momento difícil em matéria de democracia representativa e de credibilidade do seu funcionamento e da credibilidade do sistema político. Eu coloco-me, naturalmente, dentro do sistema. O discurso que fiz em 5 de Outubro foi talvez o mais significativo em relação a alguns desses problemas: não era um discurso de quem que populisticamente se colocava fora do sistema. Coloco-me dentro do sistema e acho que o sistema funciona e tem virtualidades muito grandes. A grande maioria dos seus agentes actua devoção e com seriedade. Essa batalha da credibilidade do sistema junto dos cidadãos, é uma batalha que não está ganha e tem que ser de aperfeiçoamento permanente, de transparência, de explicação, pedagogia e de convicção. A democracia é um processo sempre em construção. Temos de ter a noção de que o processo político precisa de modernização. Começa com certeza nas instituições, nos partidos. Os tempos são outros, os desafios são muito mais complexos. Nós temos que saber discutir o futuro, os valores, os objectivos; temos que consolidar a sociedade portuguesa nos seus pilares e, ao mesmo tempo, sermos capazes de mostrar abertura e flexibilidade. Isso significa que temos que ter uma grande consciência crítica da nossa própria actuação. Devemos isolar aqueles que não fazem como devem e não se comportam como devem. Para isso há mecanismos que espero que funcionem sempre que é necessário.

Portanto, quanto a esse défice de credibilidade, há que travar uma batalha permanente. Felizmente, estou convencido que a grande maioria das pessoas é séria.

- Tem saudades da advocacia?

- Não. Cada coisa no seu momento. Eu continuo a dizer que a minha profissão é de advogado, embora não exerça seguramente há dez anos. Tenho a melhor impressão das magistraturas, com as quais sempre tive uma relação de confiança e de abertura, seriedade e transparência. O que não quer dizer que hoje não tenhamos novos problemas. Temos que saber distinguir entre aquilo que é substantivo - e que são as garantias do sistema constitucional português - independência da magistratura, independência da sua auto-organização, inamobilidade, impossibilidade de serem responsabilizados nas suas decisões; e as questões adjectivas - eficácia e simplificação processual. Também aqui o Conselho Superior da Magistratura e o Conselho Superior do Ministério Público têm um papel fundamental. Podem desenvolver um trabalho importante, na medida em que sabem como as coisas decorrem na prática. O que espero é que a auto-regulação, que é uma garantia constitucional a meu ver incontornável e inamovível, funcione também para a correcção do sistema.

Não tenho da vida, nem das organizações ou sectores profissionais, a ideia de que todos somos puros. Sei que há do melhor e há do pior. A média, porém, é boa. Há gente que se orgulha de fazer o que tem a fazer e o faz bem. Pelo contrário, há pessoas que não fazem o que devem ou são corruptas. Condeno, no entanto, os que passam a o tempo a dizer que há corrupção e depois nada provam. Isso é muito grave para o sistema. Se há pessoas que sabem coisas em concreto, então que ajudem a que este sistema se torne mais transparente. Devem assumir as responsabilidades, das suas denúncias. Falar sem provas é um elemento perturbador do sistema que não adianta nada para a sua transparência.

- Há juízes que se queixam de não terem os meios para fazerem uma justiça mais transparente e mais célere. Mais: há bloqueios, desde logo quando as operadoras de telemóveis com um grande volume de processos, bloquearam todas as instâncias. Porque não reage a Justiça e a estes este bloqueio que conduz a situações perversas?

- Há uma nova utilização dos tribunais, que tem a ver com os novos hábitos de consumo, e isso exige medidas, algumas das quais estão a ser tomadas. Por exemplo, nós também temos que ter a chamada responsabilidade bancária. Julgo que há certas pessoas que não podem ter um livro de cheques ou um cartão de crédito. O sistema tem obviamente que funcionar com várias plataformas e normas de segurança.

Na questão da justiça temos de fazer uma simplificação que conjugue a confiança e a rapidez da resposta. É esse o espírito, por exemplo, da Loja do Cidadão. Vamos viver esta realidade, com alguns problemas, bastante tempo, o que é comum a muitos países europeus. Procuro que ela se não dramatize e que haja espaço para a sua evolução modernizadora.

- Sente-se mais à vontade agora que no início do exercício deste mandato? Exerce com prazer a sua função pedagógica?

- A minha leitura e interpretação globais da Constituição permanecem as mesmas. Não há qualquer mudança. Publiquei na campanha um documento em que se explicita qual é a visão que o presidente tem sobre os equilíbrios constitucionais. Mantêm-se actual. É evidente que o exercício é fundamental, e que o conhecimento do sistema e das funções presidenciais são naturalmente mais notórios.

O sistema político português tem três órgãos de poder distintos, ou se quiser, com legitimidades e competências que convergem, mas que não podem ser confundidas: o Presidente da República, o Governo e a Assembleia da República. Toda a prática constitucional vive, naturalmente, do equilíbrio destes poderes.

Estou aqui para assegurar a estabilidade das instituições, o seu regular funcionamento, para perspectivar os grandes desafios que se põem a Portugal, e para garantir o funcionamento democrático. Dialogar com o Governo, com as oposições, com os agentes políticos, de modo a exercer uma função moderadora no sistema, aparecendo como uma referência de estabilidade. Não podemos pôr em causa o equilíbrio destes poderes e temos que assegurar aquilo por que eu me bati sempre, desde a primeira hora, que é a chamada cooperação institucional, evitando fazer de tudo uma batalha política pública.

O sistema ainda tem fragilidades e, portanto, o meu papel é o de fazer valer os factores de coesão, valorizando as nossas qualidades. Quando faço uma campanha contra a lamúria ou procuro evidenciar os exemplos melhores, não é porque desconheça que há coisas que estão a funcionar deficientemente em Portugal, que há coisas más e difíceis. Tenho presente que as dificuldades existem, mas quero demonstrar que há pessoas, entidades, instituições e múltiplas iniciativas que as superaram. Estou satisfeito porque foi possível assegurar a estabilidade, manter um diálogo activo com todos os partidos, em condições de maioria relativa, que são diferentes das de uma maioria absoluta, mesmo que a orgânica constitucional seja a mesma.

A situação política de hoje não é, naturalmente, a mesma ou sequer idêntica às dos mandatos dos meus ilustres antecessores. É diferente. Dentro da margem que a Constituição nos dá, assegurámos estabilidade e isenção perante os agentes políticos. Admito que prefiram eu falasse muito mais mas não creio que o povo português aprecie bagatelas ou diferendos institucionais gratuitos e constantes. Evitando-os, pretendo sempre credibilizar as instituições.

Viagens são concertadas com o Governo

- Foi militante e dirigente do PS jogou na equipa política e hoje assume a função de árbitro a que a Oposição recorre frequentemente. Em que papel se sentiu melhor?

- Ao fim de três anos, estou tranquilo, quanto ao modo como actuo na vida portuguesa. E não o faço a contra-gosto. A militância política foi partidária até um determinado momento. O que é preciso é ser capaz, qualquer que tenha sido a origem ou actividade partidária, de ser isento na apreciação das situações e na acção. Pode ser-se fiel a convicções ideológicas, de que ninguém se separa, sem que isso impeça de responder às exigências da função em que se está investido. É a minha atitude. Não escamoteio a minha história, construída num percurso de que tenho muita honra Hoje, porém, as exigências da minha da função são outras.

- O coração, por vezes, não empurra a razão?

- Não. É-se fiel a um conjunto de valores. Ninguém me pode pedir que vá contra o que entendo serem valores fundamentais da sociedade portuguesa ou que actue contra os meus próprios valores fundamentais. Isto não quer dizer que não haja controvérsia sobre actos ou iniciativas em concreto. A verdade é que assumi uma responsabilidade colectiva muito maior do que a maioria que me elegeu, o meu compromisso é com todos os portugueses.

- Dá-se bem com o Governo do PS?

- Tenho relações com o primeiro-ministro que são pessoais e antigas e que, agora, também são políticas e institucionais. Devo dizer que sempre, desde o primeiro dia, respeitámos as competências mútuas mas também melhorámos o nosso conhecimento mútuo, o que tem sido altamente positivo para a democracia portuguesa. O que não quer dizer que não tenha, neste ou naquele momento, de afirmar o meu ponto de vista ou ouvir a afirmação de outro ponto de vista. Temos, ambos, contribuído para a descrispação das relações entre o Presidente e o primeiro-ministro, o que só é bom para o país, sem que nenhum de nós se negue a si próprio ou às competências que tem.

Há dados novos nesse relacionamento que têm sido de extrema importância. É fundamental haver, no contexto dos poderes da Constituição, um afinamento muito grande, em matéria de responsabilidade na política externa, entre o Presidente da República, o Governo e o Parlamento. Temos dois dossiers, que desde a primeira, hora foram uma pedra de toque desse relacionamento institucional aprofundado. O presidente tem, nas suas responsabilidades constitucionais, o exercício da representação externa e o direito a ser informado. No entanto, como sou totalmente contra qualquer diplomacia paralela, desde o primeiro momento, nas iniciativas que tomei, nomeadamente quanto a Macau e Timor, foi sempre consultado o Governo, através do primeiro-ministro ou do ministro dos Negócios Estrangeiros. É a minha leitura dos poderes constitucionais e do interesse nacional.

As diligências que se têm feito sobre Timor, as conversas com o secretário geral das Nações Unidas, ou com os representantes dos países que se têm interessado pela questão, ou sobre Macau - em que o presidente da República tem os poderes de nomear o governador e de acompanhar a sua acção - tem havido uma concertação institucional permanente.

Só assim podemos valorizar o nosso sistema constitucional. Não há nenhuma viagem de Estado que desde a primeira hora não seja anualmente planeada com o Governo. Há uma concertação de acções para prosseguir os objectivos nacionais. É norma que deve haver, anualmente, uma visita a uma instituição da União Europeia, a um país candidato e a um país membro da UE, conjuntamente, e a um país PALOP e, naturalmente, depois a um país fora destas áreas. Temos a Cimeira Ibero-Americana que já nos levou ao Chile, à Venezuela e depois do Porto, este ano, nos levará a Cuba. É possível, ainda, uma visita ao México. Tudo para potenciar os nossos interesses externos e tem havido também uma vertente económica importante, no contexto da internacionalização da nossa economia.

- A opinião pública dizia que Mário Soares, como presidente, viajava muito, que era um «globetrotter» mundial e que, agora, o senhor já lhe ganha em termos de deslocações...

- A questão não pode ser colocada assim. Trata-se, apenas de fixar os objectivos funcionalmente necessários e de os atingir. Por exemplo, visitei todas as instituições europeias, só faltando o Tribunal de Contas da União. Foi importante, do ponto de vista da visibilidade portuguesa e de afirmação da nossa perspectiva no contexto das negociações em curso. É importante que um pequeno país como Portugal, potencie a sua voz sobre o futuro da Europa. Sobre o futuro do alargamento, da Política Externa e de Segurança Comum. Sente-se que o pilar europeu é absolutamente indispensável no contexto da Aliança Atlântica. Portanto tenho procurado, também, em concertação com o Governo, evidenciar estes grandes e fundamentais eixos, os nossos interesses e também as nossas preocupações.

- Há meses, defendeu o alargamento da Aliança, sustentando a ideia de que a OTAN devia dar muita atenção não só aos problemas da Bósnia como aos da Albânia. Foi uma premonição ou um sentido da estratégia europeia?

- Sou um português de vocação europeia, tenho grande interesse no que pode ser a construção de um projecto europeu forte, uma União Europeia forte. Quando me referia ao alargamento, referia-me ao alargamento da União Europeia. Julgo que tal é indispensável para a consolidação do processo de desenvolvimento económico e democrático dos vários países da Europa central e oriental.

Sem dúvida que a reforma institucional que vai começar a ser discutida nos próximos tempos, tem em vista o alargamento e será uma reforma que deve ser discutida muito aprofundadamente. Portugal tem de se preocupar fundamentalmente com os objectivos finais da União Europeia, com o princípio da igualdade dos Estados e com a coesão económica e social. Muitas soluções são possíveis. Temos que preservar, em alguma instituição o princípio da igualdade dos Estados. A reforma institucional é uma exigência colegial, que Portugal, aliás, valorizou muito bem na maneira como discutiu a Agenda 2000. Não só a discutiu na perspectiva dos interesses portugueses como na perspectiva europeia. A diplomacia portuguesa foi extremamente eficaz na defesa dos interesses portugueses e conseguiu, ao mesmo tempo, encontrar plataformas que serviram, também, a própria visão global do projecto europeu, harmonizando perspectivas individuais de cada Estado. Por outro lado, quando falo na necessidade de um pilar europeu da OTAN, associo-me ao debate em curso, sobre a valorização dos meios e dos interesses europeus num contexto renovado da Aliança Atlântica. A dimensão da participação europeia deverá ser maior o que implica também outras responsabilidades. O alargamento da OTAN, como tive ocasião de ver é uma aspiração dos eslovenos, da Roménia, da Bulgária, como o foi da Hungria, da Polónia e da República Checa, até, porque é mais fácil começar por aderir à Aliança do que à União Europeia. O processo comunitário é muito mais complicado, e estes países têm todos expectativas sobre um novo alargamento. A situação, nessa região da Europa, vem na sequência da crise do Kosovo, é inseparável, a prazo, da questão do alargamento. Por outro lado, ainda, não podemos pôr em causa os dez anos de diálogo com a Rússia. Teremos que fazer tudo para, respeitando os interesses respectivos, não afastarmos a Rússia deste diálogo estratégico, capaz de poder introduzir racionalidade nalguns dos conflitos existentes. A Rússia é para mim um parceiro crucial.

Jacarta tem de aceitar a autodeterminação

- O futuro milénio não será um apocalipse? Não aparecerá um Milosevic africano? Como vê os surtos de integrismo islâmico, de nacionalismos e de xenofobia?

- Há três grandes questões globais que se projectam no próximo século. Uma é a dos fundamentalismos, sejam eles de que crença forem, o que, portanto, implica o combate pelo melhor conhecimento dos outros e de nós próprios.

Mas há também outra questão, que é o papel do ecossistema, da capacidade de avaliar as suas alterações com grande incidência do papel da educação e da cultura científica. Só podemos ser respeitados nesse futuro se, de facto, a nossa cultura científica for significativa.

A terceira grande questão é a de saber como se concebe a solidariedade, a luta contra a exclusão e contra as desigualdades. Com ela se liga o próprio funcionamento de um sistema equilibrado de relações internacionais que implica reforçar e revalorizar as Nações Unidas, um adequado reforço das possibilidades de acção do seu secretário-geral, possibilidades efectivas para a intervenção das Nações Unidas em operações de «peacekeeping» e «peace enforcement», por exemplo. Por outro lado, o Mundo de 1946/47/48 não corresponde de todo à situação actual. O Brasil, a Índia, a Alemanha ou o Japão, para citar apenas alguns países, interrogam-se e esforçam-se com muitos outros, e Portugal também, por uma reforma da ONU. Precisamos de um mecanismo de regulação tradicional dos conflitos. A sociedade internacional tem de consolidar um sistema de regulação pelo direito internacional. Sabemos que é muito difícil, sabemos que muitos países não aceitam sequer esse primado, mas nem por isso devemos afastar-nos dessa necessidade. Também há que regular o que significa o direito de ingerência em questões humanitárias e como se equilibra esta evolução com os mecanismos tradicionais de direito internacional. É um fantástico desafio, no imediato e deve ter resposta sob pena resvalarmos para uma regulação impositiva do mais forte que é, obviamente, um mau caminho a prazo.

- A questão de Timor-Leste entra numa fase decisiva. que podemos esperar?

- O caso Timor-Leste é muito complexo e o drama requer, neste momento, um grande conhecimento por parte da comunicação social portuguesa, sobre o que é possível, e sobre o que é necessário.

É fundamental haver o reconhecimento de que Timor-Leste precisa de ver assegurado o seu direito à autodeterminação, porque está definido pelas Nações Unidas, mas não está aceite pela Indonésia. E esse ponto é central. Não haverá nenhuma intervenção das Nações Unidas contra a Indonésia. O secretário-geral das Nações Unidas está fortemente empenhado numa solução para Timor, mas também tem de considerar a posição indonésia. É preciso assegurar o exercício do direito de voto sobre o futuro e que esse voto seja exercido em condições de liberdade e de segurança que obviamente não existem. Precisamos desse acordo porque, para além do projecto indonésio de autonomia, há o acordo-base, que reconhece o direito à autodeterminação e ao voto e que estabelece o modo como será exercido, as perguntas colocadas e a fiscalização. A assinatura do acordo é a única via para que a ONU coloque observadores internacionais no território. Já dissemos às Nações Unidas: Portugal está, depois, disponível para tudo, no quadro das Nações Unidas. O Governo está a esse respeito a trabalhar no sentido exacto de que deve estar preparado para esse efeito. Portugal tem que estar preparado para tudo, enquanto for potência administrante. Neste momento é indispensável para assegurar que o exercício livre do direito à autodeterminação se efective.

Até lá - é indispensável ter a noção das realidades -, não temos outro meio que não seja a sensibilização da opinião pública internacional e dos dirigentes políticos internacionais para que façam pressão sobre a Indonésia.

- Como avalia a acção dos diplomatas portugueses em Jacarta?

- A Secção de Interesses tem desempenhado uma função de grande importância, nomeadamente junto dos países que estão representados em Jacarta. Há que saudar a diplomata Ana Gomes e o seu colega pela sua determinação e pela sua coragem. Há que ter esperança.

- A opinião pública está desequilibrada emocionalmente devido às imagens que chegam. Portugal aceitaria, que os timorenses optem, por maioria, pela integração na Indonésia?

- Compreendo a emoção. Mas não posso perder a serenidade. Não nos podemos deixar invadir pela emoção, embora ela seja legítima e justa. O que é fundamental para Portugal, que não tem nenhum interesse específico nessa área, é que, afinal de contas, possa ser exercido pelo povo timorense, sem pressões e em liberdade, o seu direito de expressar o sentido do seu destino, o seu direito à auto-determinação. Qualquer que seja a resposta. Queremos construir com as Nações Unidas e com a Indonésia uma solução que resulte na expressão da vontade dos timorenses.

- Sobre Macau, vai à entrega da última jóia da coroa?

- Temos de fazer um esforço, nesta fase final, para procurar encontrar os novos equilíbrios necessários em função da declaração conjunta. Refiro-me à questão das tropas e aos dossiers que estão em cima da mesa.

Não vamos chorar por Macau

- Sobre Macau, vai à entrega da última jóia da coroa?

- Temos de fazer um esforço, nesta fase final, para procurar encontrar os novos equilíbrios necessários em função da declaração conjunta. Refiro-me à questão das tropas e aos dossiers que estão em cima da mesa.

- Há divergência de leituras no que respeita à declaração conjunta?

- Entre a minha recente visita a Macau e a próxima estadia do ministro Jaime Gama em Pequim, em Maio, decorrerá um espaço de tempo que pode ser muito produtivo. Nos próximos meses, em que vai surgir novo chefe de executivo da Região Administrativa Especial de Macau, vão certamente acelerar-se alguns dossiers ao nível bilateral e no Grupo de Ligação Conjunto. É um tempo para procurar, em relação às questões antigas e às novas que estão em cima da mesa, os equilíbrios que a declaração continha quando foi feita há dez ou 12 anos. A nossa posição é a seguinte: A declaração, é um tratado. Se há coisas novas nós estamos disponíveis para as regular, até politicamente, mas também dentro dos princípios fundamentais de equilíbrio que ali estão consignados. Dentro de pouco tempo, espero, se verá, mas a visita do ministro dos Negócios Estrangeiros a Pequim, poderá consolidar esta ponta final.

Sobre a minha presença futura, a que alude, não quero que ela apareça nem como condicionante do que quer que seja, nem que esteja dependente do que quer que seja. Ela está só dependente de uma avaliação que obviamente se fará. As autoridades chinesas ao mais alto nível conhecem o meu ponto de vista.

Eu disse, no último dia da minha visita a Macau, num encontro com a comunicação social estrangeira que "we are entitled to an explanation" (sentimo-nos credores de uma explicação). Os dirigentes chineses também perceberam isso.

Quanto ao futuro, recuso-me sempre a olhar para Macau na base de uma hipotética choraminguice. Foi muito positivo como encontro de civilizações e pode ser muito positivo no futuro, precisamente nessa grande questão do próximo século, que é obviamente o relacionamento da China com os Estados Unidos e com a União Europeia.

- Está optimista?

- Estou optimista quanto à possibilidade de garantir a especificidade da região administrativa especial de Macau. Mas no Natal deste ano, devemos ter uma avaliação mais correcta. O acordo não é para um dia seguinte, é para 50 anos.

- Na sequência do caso do funeral do Rei Hussein dirigiu uma mensagem ao Parlamento que motivou alguma polémica...

- Tenho o apanhado de todas as viagens de Mário Soares e de todas as minhas viagens e, de facto, sempre que foi possível obter em tempo útil - excepto uma ou duas vezes a autorização parlamentar. Não quero polémica nenhuma. Sugeri na minha mensagem, sem revisão constitucional, que, é possível encontrar uma solução no contexto das normas taxativas que a Constituição implica. É à Comissão Permanente ou ao plenário que compete dar a necessária autorização.

- O SIS está de novo sem Conselho de Fiscalização. vai instar os deputados a repor o normal funcionamento das instituições democráticas?

- É absolutamente indispensável que no regime democrático haja um conselho de fiscalização do SIS, com meios de funcionamento, o mais depressa possível. A credibilidade do sistema necessita que este sistema de fiscalização funcione. Estou convencido que o SIS faz o que deve, mas acho absolutamente crucial que esse conselho de fiscalização exista. As pessoas têm que ter confiança. Precisamos de Serviços de Informações que terão de ser controlados. Criou-se, para isso, o conselho de fiscalização. Ele tem que existir, não podemos esperar quatro anos para que ele seja de novo constituído.

- Está completada a reestruturação das Forças Armadas?

- Estamos numa fase complexíssima da passagem do serviço militar obrigatório para a profissionalização. Atenção! Demora tempo, custa dinheiro. E também, naturalmente, temos que rever o nosso sistema de forças para as finalidades deste princípio de século. E há que ter em conta a área em que estamos incluídos e as funções novas que têm sido solicitadas ao país para prosseguir a sua política externa. Preparemo-nos para que haja, também aqui, um debate muito aprofundado. É assim que tem que ser, numa sociedade democrática.

- Vai promover a feitura de livros brancos sobre determinadas áreas?

- Não são brancos, mas têm sido publicados com capas verdes e azuis. Tenho promovido debates que têm dado origem a publicações. Sobre a droga, o desenvolvimento do interior, a educação. Seguir-se-ão outros. Esse trabalho e esse esforço vai continuar até ao fim do mandato. As "Presidências Temáticas" foram um esforço de aprofundar determinados temas.

- No rescaldo do referendo sobre regionalização continua por fazer a descentralização administrativa e a reforma da Administração Pública...

- Existe um problema de descentralização que permanece. A regionalização era uma forma de lhe responder, que foi inviabilizada por referendo.

Mas o problema persiste. Vai voltar a pôr-se, como do costume, de uma forma indirecta perante o futuro quadro comunitário de apoio. As verbas que ele trás, a sua aplicação, a sua coordenação, vão obviamente implicar problemas de natureza administrativa da maior importância. A democracia portuguesa terá de encarar essa questão. Eu espero, por isso, que a própria aplicação do quadro vá, obviamente, implicar um novo arranque para um sistema corrente de descentralização.

- Defendeu a necessidade de ambientalizar a economia e economizar o ambiente?

- A frase não é certamente só minha, mas economizar o ambiente e ambientalizar a economia são objectivos cruciais. Uma grande questão do próximo século é a do ecossistema. Precisamos de combinar uma visão ambiental com o realismo e com a ausência de qualquer tipo de fundamentalismo, e portanto todas as políticas têm que ser impregnadas por essa preocupação.


São cruciais os estímulos à clínica geral

- Um aspecto curioso nas questões ambientais é que todas as populações rejeitam democraticamente as lixeiras e se trata de um problema passível de referendos locais. Como vê este impasse?

- Não podemos, continuadamente, adiar soluções. Uns e outros têm de ser chamados à responsabilidade. As questões ambientais comportam decisões difíceis, sem dúvida, e que não se compreenderão nunca sem a dose necessária de solidariedade nacional. É necessária a maior participação, mas é preciso também ter sustentabilidade depois tomadas as decisões. É necessário chamar aos processos ambientais, de uma vez por todas, e de uma forma responsável, as pessoas, em geral, e, em especial, as comunidades intelectuais e as comunidades científicas. No processo das incineradoras só se fez apelo público às comunidades científicas depois da decisão do Governo. Não ouvimos as comunidades científicas pronunciarem-se sobre ele durante os dez anos em que foi debatido. Não há soluções nesta matéria que não tenham alguns riscos. Não há soluções assépticas. A verdade é que continuam os mesmos problemas por resolver. No futuro, espera-se que coexista a dimensão necessária de solidariedade, a ausência de caciquismo e a democracia, erradicando um certo protagonismo pseudo-populista que em certos casos também não é isento de graves dogmatismos.

- Está em preparação a reforma do Sistema Nacional de Saúde... Foi uma das áreas em que serviu de mediador entre os médicos e o Governo...

- O Serviço Nacional de Saúde foi uma grande conquista. Melhorou significativamente os sistemas, as estatísticas e a qualidade de vida dos portugueses. Tem, obviamente, e neste momento, impasses. Por exemplo, nos tipos de gestão e, por exemplo, em matéria da chamada conjugação dos sistemas, público e privado e nas carreiras dos respectivos profissionais. Espero que deixemos de estar continuadamente virados para dentro, a discutir os protagonistas deste sistema e as suas dificuldades, e passemos a estar virados para fora, com elasticidade e maleabilidade. Por exemplo:, poderemos ter gestões privadas em hospitais públicos. Está a caminho a avaliação do que foi a experiência, até agora, no Amadora-Sintra. Vamos ver qual é a experiência de Vila da Feira. Naturalmente, os estímulos aos médicos de clínica geral são cruciais para o sistema. É necessário que a política de Saúde tenha cada vez mais reforço, com eficácia, sem desperdício e com contenção orçamental. Não quero nem devo entrar em detalhes. O que me parece é que o sistema tem de estar virado cada vez mais para fora, como o da Justiça. Não podemos passar a vida a discutir os problemas dos agentes sistema - por mais importantes que sejam - esquecendo os problemas dos utentes do sistema. Obviamente que continuamos a ter um sério problema de acesso à Saúde.

Vai promover alguma nova iniciativa sobre a toxicodependência?

- O mais importante é percebermos que, quanto à grande maioria dos consumidores, não há criminosos, o que há são doentes. Criminosos são, obviamente, os traficantes. Portanto, temos de ter uma política social preventiva. Isso é uma exigência que não se esgotará com certeza. Temos de ter uma política de redução de riscos, como agora se faz, como os riscos de saúde pública. Em Portugal começa-se a evoluir fortemente neste domínio, o que é um avanço. Como já disse ao Governo, e os outros partidos também comungam nisso, Portugal pode ter uma iniciativa importante quanto ao lançamento necessário de uma política europeia sobre esta matéria. Há política europeia sobre a Agricultura. Há políticas europeias sobre variadíssimas coisas. Também aqui não podemos ter sistemas muito diferentes de país para país. Temos de ter sistemas semelhantes, onde o espaço europeu possa enveredar pelos mecanismos de tratamento e de experiência que os técnicos muitas vezes recomendam. Quero que este debate prossiga. Aplaudo as recentes iniciativas do Governo. Não me venha perguntar se sou a favor da liberalização. A questão da toxicodependência é uma questão civilizacional seriíssima. Não é apenas preciso fazer uma redução da procura. Também é necessário combater a oferta. Portanto, tenhamos todos os mecanismos a funcionar e uma política aberta a várias realidades em simultâneo. Acentuemos a prevenção, o trabalho com jovens, acentuemos a política social preventiva, façamos todos quanto é possível para solidificar a auto-estima das pessoas, façamos reentrar as famílias nas discussões centrais deste processo. O urbanismo e a localização dos bairros sociais também começam a ser elementos decisivos. A maneira como se fazia a habitação social há 30 anos não pode repetir-se agora. Temos cidades no país onde estas questões são da maior complexidade. Tenhamos também uma actuação descentralizada neste domínio. As câmaras municipais têm feito experiências. Os chamados concelhos municipais, dedicados a todas as actividades, quer da toxicodependência, quer da droga, quer de segurança, desempenham hoje um papel de promotores das iniciativas descentralizadas.

- Como vê o país no novo milénio?

- É preferível dizer como é que cada um de nós gostaria o de ver. Eu gostaria de uma sociedade fortemente democratizada, onde os níveis de analfabetismo estivessem reduzidos drasticamente, onde a preparação ao longo da vida fosse algo profundamente importante, onde o insucesso escolar fosse muito menor, onde o acesso aos cuidados de saúde fosse uma rotina, onde o diálogo intergeracional fosse um elemento muitíssimo importante do nosso quotidiano e onde a dificuldade do primeiro emprego, por causa do insucesso escolar, tivesse sido francamente menorizada, um país desenvolvido, com os problemas de a exclusão a diminuir e onde o desenvolvimento fosse mais equitativo, mais racional e mais integrador. Um país activo no quadro da União Europeia, da CPLP, da América Latina, com grande internacionalização da sua economia que permitisse uma melhor distribuição, uma fiscalidade mais justa e uma sociedade também profundamente mais justa, mais participada e mais solidária.

- São as linhas programáticas para um segundo mandato?

- Essa questão não está decidida. É uma questão para a qual tenho disponibilidade, mas que requer uma avaliação objectiva e subjectiva. Será feita na altura oportuna. Não posso adiantar mais do que isto, neste momento, até porque não tenho pensado nisso. O que posso dizer é que este mandato continuará a desenvolver-se como eu acho que se deve desenrolar. Não o cumpro em função de um eventual segundo mandato. Ajo em função do meu compromisso com os portugueses e das responsabilidades que eles me confiaram ao elegerem-me, por cinco anos, como seu representante.

Confiança dos portugueses no Presidente não pode ser beliscada

- A intervenção do Presidente da República sobre a questão jugoslava teve aspectos aparentemente contrastantes e, à contenção inicial, seguiu-se, depois das declarações de Mário Soares e Almeida Santos, uma minuciosa explicação dos aspectos jurídico-políticos. quer explicar?

- A questão política de fundo que a intervenção na Jugoslávia suscita é da maior gravidade, complexidade e delicadeza, tanto no plano das relações internacionais entre os Estados quanto no plano nacional. Qualquer precipitação ou menor rigor na formulação de juízos ou opiniões pessoais pode assumir consequências negativas significativas para o país e para os interesses que importa preservar. São essas circunstâncias, aliadas a uma consciência precisa, no plano internacional, do peso relativo da participação portuguesa e, no plano nacional, das exigências da separação de poderes e do respeito pelas funções específicas de cada um dos órgãos de soberania, que justificam a sobriedade e a contenção que têm caracterizado as declarações que o Presidente da República tem feito neste domínio. Não tenciono alterar esta orientação. Mas, nem por isso o Presidente da República deixou de tomar, desde a primeira hora, uma posição pública clara quanto ao sentido da posição portuguesa.

Começou a generalizar-se a tendência para, em vez de afrontar as questões de fundo e sobre elas tomar uma posição política clara, preferir centrar o debate nas pretensas inconstitucionalidades que teriam sido cometidas, designadamente da parte do Presidente da República. Foi contra isto que reagi e, hoje, estando perfeitamente claro que não houve incumprimento da Constituição, o debate pode ser recentrado nas questões verdadeiramente importantes. Tudo o que fiz foi contribuir para desobstruir os canais da discussão política dos pretensos escolhos jurídicos.

- As acusações que lhe foram feitas por Mário Soares e Almeida Santos levaram-no a reagir durante uma viagem de Estado à Hungria. Ficou ferido na sua susceptibilidade?

- Uma coisa é a livre expressão da opinião de cada um sobre os mais diversos temas, políticos ou jurídicos. O Presidente da República acompanha com o maior interesse esse debate, mas nem deve nem tem que esgrimir, na praça pública, argumentos políticos ou jurídicos. Quando da transcrição de declarações de personalidades com a estatura política de Mário Soares ou a posição institucional de Almeida Santos, directa ou indirectamente, se pode inferir uma sombra de desconfiança sobre a constitucionalidade de procedimentos do Presidente da República, as eventuais críticas são amplificadas a um nível qualitativamente distinto. Ora, numa questão tão delicada e com a gravidade desta, e mesmo sem considerar as circunstâncias concretas em que me encontrava no estrangeiro em deslocação oficial, não podia subsistir a mínima dúvida de natureza jurídica a ensombrar a legitimidade da posição portuguesa.

Os portugueses mantêm uma relação de confiança com o Presidente da República baseada na convicção de que este cumpre estrita e escrupulosamente a Constituição. Esta relação de confiança não pode ser beliscada.

Próximas iniciativas temáticas

Para este ano, o Presidente da República tem previstas quatro iniciativas temáticas.
"Solidariedade entre gerações" (idosos) deverá decorrer, em princípio entre 2 e 7 de Maio próximos. Jorge Sampaio irá contactar com instituições e idosos activos, e com iniciativas e organizações relevantes no domínio da solidariedade entre gerações e no apoio a pessoas idosas. Serão ouvidos especialistas portugueses e estrangeiros, como Anthony Giddens, nos domínios do envelhecimento e da reforma do Estado-Providência.

"Política e cidades" é a segunda iniciativa, prevista para 20 a 24 de Junho. Trata-se de suscitar a análise das situações e a discussão dos problemas sobre a política das cidades e acerca da coordenação do governo das aglomerações urbanas policêntricas.

Na segunda quinzena de Outubro, deverá decorrer o debate sobre as florestas e sua importância económica e social.

Em Novembro, a Presidência promoverá o debate sobre os desenvolvimentos recentes do diálogo social na Europa.

Jorge Sampaio viveu assim «a noite da claridade»

Militante convicto do 25 de Abril, seu advogado de sempre e apologista impenitente e universal das virtudes da democracia, como viveu Jorge Sampaio essa noite de claridade na vida nacional? Foi assim, pelo punho do próprio presidente:

«Fui acordado por um telefonema do César Oliveira, sempre activo e sempre atento, que me deu conta do que se estava a passar. Embora houvesse indícios fortes e sinais claros de que, desta vez, é que poderia ser de vez, fiquei no estado de excitação que se imagina, uma excitação feita de alegria e de ansiedade.

Durante o dia não parei de seguir, minuto a minuto, os acontecimentos, usando todos os meios de que pude dispor: amigos, conhecidos, conhecidos de amigos, amigos de conhecidos...

Estive no meu escritório, na Rua Duque de Palmela, e não resisti a dar um salto ali ao lado, ao Expresso, para colher mais informações, saber mais pormenores, ouvir mais opiniões.

Ao fim do dia, quando se percebeu claramente que a Revolução era vitoriosa e qual o seu sentido, foi possível sentir aquela mistura insólita de tranquilidade e de euforia. Esses momentos foram únicos e quem os viveu não os esquece. Ao lembrá-los ainda me sinto percorrido pela esperança daquele dia e por aquela energia de futuro. Foi verdadeiramente a festa de um sonho.

No dia seguinte, havia que agir. Fui a Caxias, para tratar da libertação dos presos políticos, entre os quais estavam amigos e companheiros de sempre, como o Nuno Teotónio Pereira. Revi, há pouco tempo, no arquivo da RTP, as imagens dessa ida. Apareço nelas com o Francisco Sousa Tavares, o Pereira de Moura, o José Cardoso Pires e voltei a sentir o sobressalto desse tempo tão intenso e tão fraterno.»

Presidente clarifica saídas para a crise do Kosovo

Sobre a delicada questão balcânica, Jorge Sampaio preferiu apresentar ao JN uma declaração escrita:

"Como disse na minha declaração de 24 de Março, era necessário prosseguir, paralelamente às operações militares da OTAN, um esforço político e diplomático para resolver os problemas que estão na base da presente crise. Não escondo a minha mais viva preocupação face ao agravamento da situação humanitária, ao número crescente de vítimas inocentes, à aparente ausência de uma via política para a resolução da crise, quase quatro semanas após o início das acções militares da OTAN.

À violência tem de se responder necessariamente com a força; mas a utilização da força só tem sentido se for prosseguida não só com objectivos militares claros mas também com objectivos políticos claros.

Parece-me indispensável prosseguir, com grande determinação, uma solução política; para impedir o agravamento de uma situação humanitária que é já uma verdadeira catástrofe, para fazer cessar a brutalidade inqualificável das forças militares e policiais sérvias contra os albaneses, para impedir um rol crescente de vítimas inocentes, para restabelecer a autonomia do Kosovo dentro das fronteiras da República Federal da Jugoslávia, para permitir o regresso dos refugiados, para garantir também a protecção dos habitantes do Kosovo que não são de origem albanesa. São estes os objectivos da União Europeia e da Aliança Atlântica e com os quais estamos solidários.

Creio que é necessário congregar os esforços de todos; da União Europeia, da Aliança Atlântica, da Rússia, dos restantes membros da OSCE e, particularmente, dos países da região, das Nações Unidas e do seu secretário-geral que têm uma responsabilidade central em termos de garantir a paz e a segurança internacionais, para conseguir esse acordo político. É bom que o Presidente Milosevic se compenetre da determinação da Comunidade Internacional e que colabore, activamente e de boa fé, na busca de uma solução política que prossiga os objectivos que enunciei.

Creio que, neste quadro, existirão condições para a suspensão das acções militares e para um compromisso político. Creio igualmente que a União Europeia poderá e deverá assumir um papel central numa negociação política cada vez mais urgente. Acabo de regressar de dois países da região; em ambos é sensível uma grande preocupação, nomeadamente quanto aos efeitos desestabilizadores da crise em outros países da região, nomeadamente na Macedónia, na Bósnia e no Montenegro. Existem mais de 350 mil cidadãos sérvios de origem húngara, tal como existem minorias albanesas também na Bulgária e no norte da Grécia.

Para além da resolução política da situação do Kosovo, julgo que se impõem medidas globais para a estabilização e segurança do sudeste europeu, que passam pela consolidação de regimes democráticos, pela protecção eficaz das minorias, pelo desenvolvimento económico e social.

Os Balcãs não podem continuar a ser uma região adiada, excluída do concerto europeu, dos benefícios da paz, da segurança e do progresso. A União Europeia tem, nesta matéria, uma especial responsabilidade, e seria sem dúvida útil avançar-se com um "pacto de estabilidade" entre os países da região, baseado em elementos políticos e económicos, tal como seria indispensável reforçar a perspectiva de uma aproximação crescente deste países à União num tal contexto. A reunião de uma conferência sobre a Europa do Sudeste seria, sem dúvida, muito oportuna.

Tropas no terreno

Há que distinguir duas situações: a colocação de uma força de interposição internacional, no quadro de um acordo político - parece-me um elemento indispensável para garantir o regresso dos refugiados e a protecção dos habitantes do Kosovo, quer sejam de origem albanesa, sérvia, muçulmana, ou de qualquer outra. Trata-se de uma exigência da Aliança Atlântica e da União Europeia; Portugal está disponível para participar nessa força.

A segunda situação tem a ver com a colocação de uma força de intervenção no terreno, fora do contexto de um acordo político e, consequentemente, num ambiente hostil. Não se encontram em preparação, por parte da OTAN, planos para uma tal eventualidade, nem Portugal foi solicitado para o efeito."

Véspera da minha operação foi um dia dos diabos

A entrevista ao Presidente da República ofereceu também ocasião para colocar a Jorge Sampaio outro tipo de tipo de questões mais pessoais.

- O momento mais feliz da sua vida política?

- Ao ter de escolher um, um apenas, escolho o mais simbólico de todos, o da eleição presidencial, pela responsabilidade e pela grande honra que me foi dada pelos portugueses de os representar. Mas não esqueço outros, menos visíveis, mas também importantes: aquele momento em que se acaba uma obra que mereceu o nosso empenhamento e o nosso esforço; aquele em que, após uma derrota, se recebeu o gesto solidário dos que não desertaram; aquelas ocasiões em que, numa visita, oiço uma palavra sincera de queixa ou de estímulo, uma palavra forte que nos marca e nos faz perceber que a política só vale se tiver um sentido de proximidade às pessoas concretas e aos seus anseios.

- O pior dia de vida do presidente?

- Não costumo lembrar particularmente os dias maus e tento colher sempre algum ensinamento e proveito do que é mais desagradável. Se tiver de referir alguma coisa, talvez refira a véspera da intervenção cirúrgica que sofri. Não que a tenha vivido com particular dramatismo. Mas foi um daqueles momentos que não esquecemos.

- Político que mais admira?

- Entre outros nomes possíveis, posso referir a minha admiração por Olof Palme, Willy Brandt, Nelson Mandela ou Martin Luther King. Todos eles deram à política um sentido mais alto do que o das pequenas disputas pessoais. Todos eles deixaram marcas e mudaram as coisas no sentido de maior dignidade humana. Dos mais recentes, não posso esquecer a acção persistente e tão lúdica de Helmut Khol em defesa do projecto europeu.

- Melhor obra do milénio?

- Olhando para tudo o que os homens fizeram de grandioso ao longo de mil anos, as escolhas são muito difíceis. Da obra de Galileu à descoberta da electricidade, das prodigiosas criações de Leonardo da Vinci à Lei da Gravidade de Newton, das Descobertas Portuguesas à vitória dos Aliados na II Guerra Mundial, da Declaração Universal dos Direitos do Homem à Queda do Muro de Berlim, das peças de Shakespeare à música de Mozart, da filosofia de Kant aos filmes de Eisenstein - muitas e prodigiosas são as obras que atestam a aventura humana sobre a Terra neste segundo milénio da nossa era.

- Melhor livro de sempre?

- Citar alguns é sempre esquecer muitos outros. Mas arrisco a citação de livros que me marcaram: «O Estrangeiro», de Camus, «Os Cem Anos de Solidão», de Garcia Marquez, «O Delfim», de Cardoso Pires, «Os Maias», de Eça de Queiroz, a «Poesia», de Fernando Pessoa, o «Hamlet», alguns livros de Faulkner ou de Steinbeck e tantos outros.

- E o melhor filme? Melhor actor? Melhor realizador?

- Já citei, entre os filmes da minha vida, o «Citizen Kane» ou o «Leopardo», mas poderia acrescentar outros de Woody Allen ou de vários realizadores. Entre eles, para além de Wells e Visconti, John Ford, John Houston, Fellini. Os actores: Laurence Olivier, John Gielgud, Dustin Hoffman, Al Pacino, Vivien Leigh, Lauren Bacall, etc., etc..

- Melhor compositor? E melhor intérprete? Obra preferida?

- Bach, Mozart, Beethoven, Brams, Wagner, Chostakovitch, Stravinsky. Os intérpretes podem ser, por exemplo, Karajan, Oistrach, Abbado, Maria João Pires, Pollini, Brendel, Alfredo Krauss.

- Escritor do século? Cientista? Economista?

- Escritores: Pessoa, Thomas Mann, Proust, Kafka, Joyce, Yourcenar, Borges. Cientistas: Niels Bohr, Heisenberg, Einstein, os Curie. Economistas: Keynes.

- Maior defeito?

- Peço ao Jornal de Notícias que responda a essa pergunta.

- E a grande virtude?

- Não sou bom juiz em causa própria.

- A maior tragédia?

- Há tantas no nosso tempo, graves, visíveis e invisíveis. Mas não esqueço o contacto directo que tive, não há muito tempo, com as tragédias que foram o terramoto dos Açores e as cheias da Ribeira Quente ou essa tragédia disseminada que é a droga.

- A maior dor?

- Na minha vida, foi a morte do meu pai.

- Prazer de viajar: de avião, de carro, de barco?

- Gosto de viajar de carro, pela liberdade que dá.

- Maior ambição?

- Fazer de Portugal um país mais solidário, mais desenvolvido, com maior nível de educação, de cultura, de desenvolvimento científico, melhor preparado para enfrentar o futuro, com cada vez maior afirmação na Europa e no Mundo.

- E o melhor amigo?

- Tenho muitos amigos, pois sempre cultivei a amizade. O melhor amigo é aquele que nos ajuda a ser melhores e que está sempre presente quando precisamos dele, mesmo quando não o vemos há muito tempo.

- E a melhor recordação de infância?

- Uma viagem que fiz pela Europa, quando tinha doze anos, com uma larga estadia em Londres. As férias que passava no Minho, na região de Guimarães.

- Local preferido para férias?

- Sintra, o Minho, um lugar onde haja um campo de golfe perto.

- Restaurante favorito? E prato especial?

- O lugar onde mais gosto de comer é em minha casa. Gosto de um bom bife, feito de várias maneiras, ou de um peixe grelhado, fresco.

- Que livro tem à cabeceira?

- Neste momento, a «História do Kosovo», de Miranda Vickers.