Sessão de Abertura do Seminário sobre "Participação dos Escalões Infra-estatais na Governância Europeia"

Centro Cultural de Belém
23 de Julho de 2000


Quero em primeiro lugar agradecer o convite para participar na abertura deste seminário.

Acompanho de forma interessada o debate sobre o tema da descentralização das tomadas de decisão política, que tem hoje em toda a Europa uma importante dimensão. É um debate que se inscreve no tema geral das dificuldades e desafios da governação em democracia, cuja actualidade é reconhecida tanto por estudiosos académicos como por decisores institucionais.

Quero igualmente saudar esta iniciativa da Conférence des Régions Périphériques Maritimes d’Europe, realizada em Lisboa, no âmbito da presidência portuguesa da União Europeia.

Representa um apelo oportuno, que me apraz sublinhar, no sentido de reflectir sobre a experiência da descentralização territorial dos diversos países europeus e de lançar um olhar prospectivo sobre o lugar das instâncias locais e regionais na construção da Europa alargada.

Esta saudação é naturalmente extensiva a todos os participantes e convidados desta “Jornada de Reflexão”.

Novos dados da discussão relativa ao binómio centralização/descentralização

Proponho-me, nesta breve intervenção, reflectir sobre o binómio centralização/descentralização, em dois movimentos. O primeiro convoca aspectos da discussão em curso sobre o futuro do Estado-Nação para equacionar o papel que às instâncias locais e regionais lhe pode ser reconhecido. No segundo movimento, tentarei exemplificar as mudanças que é necessário introduzir nesse quadro, tomando como referência os modelos de políticas sociais.

A crescente mundialização dos sistemas produtivos e dos mercados introduziu novos dados no debate.

Numa perspectiva que poderíamos denominar de optimista, há quem entenda que a lógica de rede, que tende a substituir o princípio da soberania, é favorável à afirmação do espaço local e regional como espaço de desenvolvimento de novas identidades e de novas solidariedades. A crise do Estado-Nação teria assim como contrapartida a reemergência de processos de raíz local e regional os quais surgiriam, inevitavelmente, como parceiros da decisão e da acção políticas.

Para outros esta situação representa um grave risco. Nesta perspectiva, os Estados-Nação e respectivos Governos, condicionados por factores supra-nacionais e por impulsos localistas, vêem ameaçada sua capacidade de elaboração de estratégias minimamente coerentes. O jogo de forças contraditórias impediria uma governação fundada em objectivos democraticamente sufragados, consistente, e capaz de se auto-reformar.

Há que reconhecer aos mais pessimistas alguma pertinência nos seus argumentos. Mas também é verdade, que a definição de estratégias políticas sempre teve que atender aos dois condicionamentos, de natureza supra-nacional e de natureza local e regional. Sempre houve que enfrentar constrangimentos exógenos e pressões locais e regionais no processo de governação. Por outro lado, a experiência acumulada das últimas décadas em diversos países da Europa revelou novas modalidades de associação das instâncias locais e regionais ao processo de decisão pública, e que podem ser avaliadas e aprofundadas. Existem muitas soluções para adequar as políticas de base nacional aos novos contextos de globalização, por um lado, e de localismo, por outro.

Arriscar-me-ei a dizer, a este propósito, que as mudanças em curso exigem de nós acima de tudo que tenhamos presente as exigências da democracia. Em última análise o que há que defender é a participação dos cidadãos na definição das políticas, e, nesse sentido, há certamente adequações importantes a promover.

A internacionalização das economias e o policentrismo das sociedades introduziu uma complexidade acrescida na vida dos povos. É então indispensável que os governos e os Estados nacionais aperfeiçoem alguns instrumentos da sua intervenção, tornando claros os novos compromissos públicos a que se obrigam, isto é, os próprios fundamentos da sua legitimidade democrática.
Havendo, além disso, novas exigências de adequação das políticas às condições concretas de base local e regional em que decorre a vida dos cidadãos, importa saber encontrar instrumentos de acção descentralizados, e que não prescindam igualmente de uma base de legitimação clara.

Conseguir um equilíbrio flexível entre acção governativa do poder central e das instâncias da administração pública local e regional parece-me ser uma das chaves para uma política adequada às dinâmicas de mundialização e de integração supranacional com que estamos confrontados.

Trata-se, por uma lado, de dar corpo a destinos e projectos colectivos que o Estado-nação foi, é, e será capaz de definir melhor do que qualquer outra instância. E trata-se, por outro, de saber catalizar iniciativas, conhecimento sobre as situações concretas, e energias colectivas que as populações, nos seus espaços vitais e de afirmação identitária, vão elegendo como estratégias concretas de desenvolvimento.

Um exemplo: o binómio centralização/descentralização nas políticas sociais

Gostaria de concretizar este ponto de vista, invocando o caso das politicas sociais que hão-de enfrentar as novas desigualdades que decorrem precisamente das novas condições da concorrência económica.

De facto, a coesão social sofre o efeito perturbador de factores que directa ou indirectamente resultam de pressões competitivas da economia internacional.

Refiro, a propósito, e apenas para ilustrar o essencial, a desestabilização imposta às estruturas económicas nacionais pelas lógicas de um mercado financeiro escassamente regulado e condicionado por movimentos eminentemente especulativos. E assinalo, por outro lado, a ameaça de deslocalização que perturba tão seriamente o horizonte existencial de tantos cidadãos, incluindo parte significativa das gerações mais jovens.
Cabe aos governos nacionais, neste contexto, uma missão fundamental: a de adequarem com oportunidade e rigor as suas políticas económico-sociais, incluindo as que mais directamente influenciam o emprego e as que pugnam pela reinserção social de cidadãos marginalizados pelo rigor da competitividade.

O que se tem verificado, entretanto, é que algumas das fórmulas mais inovadoras em matéria de combate ao desemprego, à pobreza, aos círculos viciosos do subdesenvolvimento têm sido desenhadas e levadas a cabo por instâncias descentralizadas da Administração Pública, muitas vezes, aliás, em parceria com actores colectivos da sociedade civil.

Quase insensivelmente, o velho Estado de Bem-estar foi sendo realimentado e renovado por iniciativas de âmbito local e regional, e dando lugar a redes de protecção social de tipo novo, cuja vitalidade resulta em grande parte de acolherem, mais genuinamente do que outrora, a própria participação dos cidadãos implicados.

Outros contributos positivos da descentralização para a modernização e eficácia das políticas públicas

Outro bom exemplo das virtualidades de uma articulação sensata entre a acção do Estado Central e da Administração Pública descentralizada diz respeito aos problemas da dinamização económica e ordenamento do território, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável.

Estão, hoje, felizmente, ultrapassados os modelos centralistas de planeamento do desenvolvimento regional. Verificou-se, na verdade, que eles foram demasiadas vezes responsáveis pela criação ou agravamento de injustas assimetrias regionais, que nem sempre souberam respeitar equilíbrios ambientais, que raras vezes se preocuparam, como se impunha, com a preservação de patrimónios culturais e arquitectónicos riquíssimos.

A inflexão das estratégias de desenvolvimento regional no sentido de um maior envolvimento e participação das populações e dos seus eleitos locais e regionais tem permitido dar outra autenticidade, eficácia e sentido de equidade social às intervenções para o desenvolvimento.

Este retorno ao território, ao local, não está, ele próprio, isento de dificuldades – e a maior delas será, por certo, a de poder implicar alguma perda de eficiência, por adiamento de investimentos estruturantes de âmbito supra-regional, pelo emergir de corporativismos e regionalismos de vistas curtas, por ausência de escala de actuação adequada.

E aqui está como, também neste caso, volta a impor-se a obtenção de equilíbrios entre práticas descentralizadoras e a intervenção reguladora e orientadora do poder central.

Termino, afirmando a minha convicção de que o aperfeiçoamento de tais equilíbrios constituirá no futuro uma peça-chave da gestão da complexidade imposta pela crescente globalização das actividades económicas e dos modos de vida.

Estou certo, além disso, que este é um domínio em que as potencialidades das novas tecnologias da informação e da comunicação mais eficazmente poderão ser colocadas ao serviço dos cidadãos, e de cidadãos cada vez mais conscientes e participativos.

Eis uma razão mais para reflectirmos com profundidade sobre o tema da descentralização política em contexto democrático.

É um tema que tanto importa ao Estado, e à sua eficiência, como aos cidadãos, e à sua participação na vida colectiva.