Comemorações do Ano Mundial da Matemática

Palácio de Belém
02 de Outubro de 2000


Quero com esta iniciativa associar-me às comemorações do Ano Mundial da Matemática.

Permitam-me, no início desta intervenção, algumas considerações sobre a importância do papel da matemática no mundo.

As grandes descobertas que serviram de base à construção da modernidade – de novas gentes, de novos céus e novas estrelas – favoreceram uma nova visão do mundo, assente no estudo da transformação e no primado do movimento. E é a ciência moderna o instrumento que permite descrever essa nova atitude perante o cosmos.

O edifício civilizacional que construímos desde então está indelevelmente marcado pela frase lapidar de Galileu, de que “a natureza é como se fosse um livro escrito em linguagem matemática”.

Esta ideia fundadora atravessa todo o raciocínio científico. Da física, à química e à biologia, das novas aplicações até às ciências sociais, o movimento e a transformação são o centro de todas as preocupações societais. Conhecer as leis dessa transformação, do que se conserva e gera a mudança, é o grande objectivo do esforço de investigação científica.

A matemática está pois indissociavelmente ligada ao modo como foi construído o passado recente e o presente das nossas sociedades. E gostaria também de afirmar, sem receio, que a matemática tem que ser assumida como um vector básico da caminhada para o futuro.

A história da matemática no nosso país tem mostrado pela negação a verdade desta afirmação. A um período de florescimento, ligado às necessidades da astronomia para a navegação, seguiu-se um longo torpor, um isolamento de séculos, onde apenas aqui e além despontaram figuras dignas de registo.

Lucidamente, Antero de Quental apontou, nos finais do século passado, como causa principal do nosso atraso a repressão do espírito crítico, experimental, inovador, universalista.

Assim, é fundamental recordar hoje o esforço da notável geração de matemáticos da década de 1940, consciente da situação do país, interessada nos problemas do mundo, empenhada na tarefa de preparar novas gerações de matemáticos em articulação com o movimento matemático internacional.

Foi graças à coragem e ao entusiasmo de grandes figuras como António Aniceto Monteiro, Bento de Jesus Caraça, Hugo Ribeiro, José da Silva Paulo, Manuel Zaluar Nunes, Ruy Luis Gomes, Luis Neves Real, já falecidos, e de outros, felizmente ainda entre nós, como Alfredo Pereira Gomes e José Morgado, que se implantou um processo novo de entender a criação científica, baseada em instituições modernas: centros de investigação, projectos e artigos científicos, organizações e revistas dedicadas à difusão e ao alargamento dos valores e das práticas da comunidade matemática.

A repressão fria e bruta que se abateu sobre este ilustre conjunto de cientistas e investigadores na segunda metade da década de 1940 quase abafou a lufada de ar fresco que o movimento matemático representou no panorama da ciência em Portugal.

Foi graças à capacidade e ao génio de um dos mais notáveis matemáticos portugueses, José Sebastião e Silva, também já falecido, mas então um jovem investigador regressado do estrangeiro, que foi possível reconstituir o Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa. No dizer pertinente de um dos matemáticos resistentes que há pouco mencionei, Alfredo Pereira Gomes, «a semente fora lançada e continuava a germinar».

E foi assim, quebrado o isolamento, lutando contra a arrogância e o obscurantismo, contra o conservadorismo e o horror à mudança, reforçando o exercício do poder democrático, alargando o acesso à educação e ao conhecimento a todos os cidadãos, que chegámos ao presente… um presente com novos problemas e novos desafios, mas para cuja resolução o contributo da matemática é certamente cada vez mais decisivo, cada vez mais imprescindível.

Aprender matemática é, pois, uma tarefa central do presente, de qualquer presente de uma sociedade que a si própria se caracterize como moderna.

Por outro lado a matemática constitui um património cultural da humanidade e um modo de pensar. Devemos por isso proporcionar a sua aprendizagem a todas as crianças e jovens.
Evidentemente, nem todos podem, nem devem, ser matemáticos, ou investigadores. Mas todos podem, e devem, saber matemática. Uma sociedade que se desenvolve e se aperfeiçoa tem de conseguir que todos aprendam matemática.

Daqui os enormes desafios que se colocam no campo da educação. Será este o objecto da segunda parte da minha intervenção.
Aprender matemática é um direito de todos e uma resposta a necessidades sociais e individuais.

Por isso, o apelo que faço hoje aqui é para que se conjuguem os esforços de matemáticos e professores de todos os níveis de ensino para que a aprendizagem desta disciplina mobilize o esforço dos alunos e também a vontade de aprender mais, desenvolvendo o gosto pelo pensamento matemático.

Tradicionalmente sublinha-se muito a dificuldade da aprendizagem e compreensão da matemática dando-se-lhe, mesmo sem o assumir, o papel de um instrumento de selecção social. Trata-se, com efeito, de uma área de trabalho escolar onde a acumulação de dificuldades conduz a processos de abandono e exclusão. Para muitas crianças e jovens a organização da escola não proporciona a recuperação e os apoios necessários para ultrapassarem os obstáculos que vão surgindo. Por outro lado muitas famílias também não podem mobilizar esses apoios.

Todos conhecemos casos de pessoas que não puderam prosseguir nas vias académicas e profissionais escolhidas por terem encontrado dificuldades na aprendizagem da matemática. Ora a “fuga” à matemática, por razões que a maioria das vezes não se prendem com capacidades individuais, mas sim com situações pontuais, não deveria constituir um elemento de orientação vocacional.

As transformações exigidas ao nível dos ensinos básico e secundário constituem hoje um grande desafio, mas apresentam também grandes dificuldades. Permitam-me que recorde que em 1975 havia cerca de 80.000 alunos a frequentar a escola secundária entre o 7º e 11º anos de escolaridade. Hoje, nos mesmos anos de escolaridade, englobando o 3º ciclo do ensino básico e o ensino secundário, estão inscritos cerca de um milhão de alunos. Esta vertiginosa evolução, que deve ser motivo de regozijo para todos nós, torna necessário introduzir mudanças e pesquisar caminhos adaptados a contextos sociais e culturais bem diversos dos que conhecemos.

É necessário que se concilie exigência e esforço com capacidade de produzir respostas adaptadas a diferentes públicos. Temos de ter permanentemente como meta proporcionar um ensino de qualidade, mas não nos podemos abandonar à tentação das interpretações simplistas que ignoram a evolução e a situação das escolas.

Tenho seguido com atenção o esforço que está a ser realizado para melhorar a situação do ensino da matemática em Portugal. Sei que estão a ser acompanhadas no terreno essas transformações. É importante que se produzam avaliações rigorosas sobre as iniciativas em curso, que se analisem com serenidade os resultados e que estes sejam divulgados.

A matemática é, porventura, a área curricular que maiores debates tem suscitado ao longo de décadas. Os desafios em jogo nem sempre são claros para quem está de fora. As análises que se fazem pecam, muitas vezes, por desconhecimento. Há por isso uma pedagogia a desenvolver sobre os desafios colocados no ensino da matemática.

Este é um apelo que aqui lanço a todos.

Visitei hoje duas turmas em que está em curso um trabalho meritório dos seus professores visando num caso evitar o abandono da escolaridade obrigatória e garantir as aprendizagens essenciais num contexto difícil. Noutro caso assisti a demonstrações de um trabalho interessante realizado por alunos do ensino secundário inseridos num meio social e cultural bem diferentes.

O trabalho que presenciei deixa-me esperançado na capacidade de criar respostas quer para um trabalho de democratização das aprendizagens quer para um ensino da matemática mobilizador.

Penso, contudo, que terão de ser desenvolvidos mais esforços em três domínios:

Em primeiro lugar, é necessário um maior empenhamento da sociedade no debate e acompanhamento das reformas e dos problemas do ensino da matemática, não podendo estes ser exclusivamente encarados como uma questão dos alunos e dos pais.

Em segundo lugar, há que melhorar os apoios aos alunos que encontram dificuldades nos seus percursos escolares e também reforçar os meios destinados à orientação pedagógica e educativa.

Em terceiro lugar há que concentrar esforços na formação inicial e contínua de professores. Sei que tem sido desenvolvido um trabalho muito meritório neste domínio e quero felicitar, em particular, a

Associação de Professores de Matemática pelo esforço que vem desenvolvendo neste sentido.

Permitam-me que refira ainda, a propósito da necessidade de proporcionar uma educação de qualidade para todos, a importante função de educar para a cidadania, citando um dos mais ilustres matemáticos portugueses: Bento de Jesus Caraça, segundo o qual o cidadão é o indivíduo culto, que tem a noção da sua posição na sociedade e no universo, que tem a noção dos seus direitos e dos seus deveres, que faz da afirmação da sua cidadania um processo renovado de aperfeiçoamento pessoal.

O quotidiano de um cidadão na época contemporânea é diverso, complexo, multifacetado, tecnológico. Somos chamados a fazer escolhas, a decidir, a criticar, a optar entre caminhos cujas implicações estão muitas vezes ocultas por espessos mantos de incertezas e ameaças. Como proceder, gerando continuamente respostas colectivas adequadas?

As soluções passam por nós, cidadãos, e pelo modo como nos organizamos para as formular. Teremos que saber educar os mais jovens nesta direcção, mas teremos também de tornar a educação ao longo da vida uma realidade.

É neste percurso que se tem que perceber que é despertando a curiosidade que nos habituamos a que as regras mudam. É neste percurso que é preciso entender que a enorme variedade de valores e percepções constitui um inestimável património para basear a nossa ideia de um futuro melhor e mais solidário.
É, assim, neste quadro que a matemática, como ciência, como linguagem, como cultura, nos aparece como essencial na definição do rumo em direcção aos possíveis amanhãs. Não há cidadãos dispensáveis, como não me tenho cansado de afirmar. Não há, pois, tempo a perder.

Quis hoje distinguir o esforço de matemáticos portugueses e professores de matemática que ao longo das últimas décadas se têm destacado ao nível da investigação científica e da formação de matemáticos, ou como professores dos ensinos básico e secundário, ou ainda como formadores de professores. Foi com agrado que encontrei um campo onde existe um grande trabalho associativo e onde muitas pessoas aposentadas continuam a apoiar as escolas e os colegas. Será também homenageada hoje a Sociedade Portuguesa de Matemática pelo trabalho meritório que vem desenvolvendo ao longo dos anos.