Comemorações do 90º Aniversário do 5 de Outubro

Lisboa
05 de Outubro de 2000


Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores,

Comemoram-se hoje noventa anos sobre a data da implantação da República e a Câmara Municipal de Lisboa quis, uma vez mais, assinalar esse acto organizando as Comemorações Oficiais que celebram essa data histórica.

Quero, por isso, agradecer-lhe, Senhor Presidente da Câmara, o empenho e a atenção que colocou na organização desta cerimónia. Conheço bem a natureza profunda dos seus sentimentos republicanos. Eles são o garante de que consigo, e com toda esta Câmara, a tradição desta cerimónia perdurará, cabendo a todos nós reunir esforços para saber encontrar as formas necessárias à sua revitalização.

O simbolismo deste dia centra-se neste Edifício onde se proclamou um regime político, fundado em novos valores e apostado em alterar profundamente as relações entre o cidadão e a política.

Os anos iniciais do regime republicano foram particularmente difíceis. As realizações, apesar de muitas, ficaram ensombradas pela instabilidade política e militar. A ditadura veio, depois, interromper esse projecto e, sem alterar a sua simbologia republicana, mais não era do que um regime autoritário, apoiado nas forças armadas, sustentado pela repressão das polícias, onde não existia o respeito por direitos e liberdades individuais.

O verdadeiro programa republicano só se pôde concretizar com o 25 de Abril, em muitos dos seus aspectos essenciais. E naquilo que é a sua essência profunda, estará sempre inacabado, e por isso tem de ser constantemente aprofundado.

A República propôs-se fundar uma nova relação entre os cidadãos e entre estes e a vida da comunidade em que se inseriam. Estimulou o sentimento de entreajuda e de solidariedade. Promoveu a participação política e fomentou o associativismo. Mobilizou e viveu da mobilização das populações urbanas. Muitas das suas melhores realizações, nas áreas da educação, do associativismo e do assistencialismo, nascem desses propósitos. Muitos dos seus excessos foram fruto da incapacidade do Estado em articular os grupos de interesses, ora cedendo perante uns, ora reprimindo outros.

Mas de todo esse período creio que é hoje muito importante fazer ressaltar uma preocupação dominante do ideário republicano: A República deve ajudar as pessoas a pensar sobre a sociedade e os valores fundamentais. Deve promover uma cultura de conhecimento e debate sobre as escolhas que definem o nosso futuro colectivo.

O Senhor Presidente da Câmara, sugeriu que este ano pudéssemos dedicar este dia ao tema da solidariedade como pilar essencial do ideário republicano, convidando, quer os históricos centros republicanos, como símbolo dessas mais antigas formas de sociabilidade que se preocupavam e intervinham na vida da Cidade, quer as novas Instituições Públicas de Solidariedade Social, Organizações não Governamentais, organizações de voluntariado e clubes recreativos. Felicito-o por isso, pois assim se simboliza a importância perene desses valores republicanos e também a nossa responsabilidade e dever de assegurar a necessária passagem de testemunho entre gerações.

Presto o meu testemunho a uns e a outros, pelo seu esforço e dedicação e associo-me com gosto ao gesto simbólico desta Câmara. Sinto que é preciso reforçar o nosso empenho na passagem de testemunho do valor da solidariedade, da atenção permanente aos carenciados e aos mais desfavorecidos e sublinhar, com o vosso exemplo e o de tantos outros em todo o Portugal, que essa não pode nem deve ser apenas uma preocupação do Estado.

É preciso explicar às novas gerações que não é apenas necessário que o Estado se preocupe connosco, mas que é tão ou mais importante preocuparmo-nos uns com os outros e que cada um de nós esteja disponível, na respectiva geração, para dar o seu contributo de solidariedade à comunidade em que vivemos. Por vezes pedimos demais ao Estado e pouco a nós próprios no que podemos fazer pelos outros.

Reconheço que a cultura material e esta euforia consumista em que vivemos, e que há muito tenho vindo a criticar, transformou a posse de bens num valor superior a todos os outros.
Mas será que um bom republicano - se me permitem que use esta expressão antiga e porventura desusada – será que um bom republicano não se deve interrogar sobre o caminho que toma uma sociedade onde os pais não têm tempo para os filhos, onde os filhos não têm tempo para os pais e por isso os colocam cada vez mais e cada vez mais cedo em lares e onde os cidadãos não têm tempo para dedicar à vida da sua comunidade e do seu país.

Os partidos à esquerda e à direita têm sem dúvida propostas para lidar com estes problemas que concretizam quando estão no poder. Mas nenhum Estado, governado seja por que partido for, poderá algum dia tomar conta de todos os nossos filhos, tomar conta de todos os nossos pais e assegurar uma democracia de que os cidadãos se alheiem cada vez mais.

Ao Estado é necessário que se exija, e tenho insistido neste ponto, cada vez mais rigor, cada vez mais transparência, uma boa administração, ou seja uma administração próxima e eficaz a que os cidadãos têm acesso e cuja fundamentação das decisões podem e devem conhecer. Rigor na administração fiscal porque sem justiça fiscal não há confiança no Estado. Rigor na gestão orçamental, porque sem ela não há boa administração.

Mas a República não pode ser feita só pelos outros nem só pelos governos. A República ou é feita por todos nós, assumindo as suas responsabilidades e deveres para com a sociedade, para com a democracia e para com a família, dando com isso corpo aos valores humanistas que fundamentaram a sua implantação. A não ser assim um dia estaremos confrontados com uma sociedade de pessoas desvinculadas do sentimento de pertença a uma comunidade, desinteressadas da vida política e portanto do debate pelo futuro do seu país, sem solidariedades familiares nem outros interesses que não sejam alcançar depressa e por qualquer meio o maior bem estar material possível.

Sei que não estamos perto disso. Mas sei também que se nada se fizer estaremos a caminho disso. Os sinais estão aí e todos os conhecem. É preciso fazer mais para evitar esse caminho. Em nome da República. Em nome de uma concepção humanista do homem e da sociedade. Em nome de valores fundamentais. Mas, para isso, é preciso passar o testemunho às novas gerações, não apenas em cerimónias como esta, plenas de significado simbólico, mas nas políticas que se promovam e, sobretudo, no debate que se realize em torno do futuro de Portugal.

A República sucumbiu à sua instabilidade política e militar. Incapaz de gerar governos estáveis, e de com isso garantir condições para lidar com os problemas económicos e sociais do país, estava condenada a ser derrubada por um golpe militar de cariz autoritário.

A obra que realizou foi muito grande. Alguma foi revista e destruída pela ditadura. Mas os seus grandes princípios sobreviveram ao regime autoritário. Muitos de nós, que nos formámos politicamente na luta contra a ditadura, guardamos como referência fundadora o combate de há noventa anos pelos direitos e liberdades fundamentais e pela construção de um Estado republicano. Republicano nos valores e laico na sua relação com as igrejas. Nos princípios, naturalmente, mas também nas práticas porque respeitamos todos por igual

É para homenagear esses homens e mulheres que com coragem e determinação implantaram a República que nos encontramos hoje aqui.

Ainda bem!

Viva a República.