X Congresso das Comunicações "A Concorrência e a Economia Digital"

Fil - Junqueira
07 de Novembro de 2000


Esta conferência é dedicada à Economia Digital e, como foi referido pelos organizadores, este é o momento de proceder a uma reflexão sobre o tipo e a dimensão das mudanças que as tecnologias de informação e comunicação estão a introduzir nas diferentes esferas da nossa sociedade e da sociedade global em que participamos.
Embora não me considere um especialista em tecnologias de informação e comunicação, tenho vindo nos últimos anos a dedicar uma crescente atenção a este sector e à necessidade, julgo por todos vós sentida, de questionar que tipo de sociedade queremos construir no quadro de um espaço social baseado na informação e como podemos criar as competências necessárias à sua realização.
Julgo que, em abono da verdade, ainda existem muitas incertezas sobre o grau e tipo de mudanças a que iremos assistir. Mas, importa constatar que o ponto agregador dessa mudança parece ser a Internet e que a sua importância não se reduz ao mero plano tecnológico.
A Internet, tal como o surgimento da fábrica há cerca de dois séculos, representa uma alteração da forma de organização social, cujos impactos vão muito para além da economia e do trabalho e incidem sobre esferas tão diversas como a família, a cultura ou a política.
Tendo presente essa leitura das mudanças em curso, irei centrar a minha intervenção em torno de um tema que considero como fundamental para a construção de uma sociedade mais justa, uma sociedade onde o acesso ao conhecimento e à informação são factores quer de igualdade de oportunidades quer de maior justiça na repartição da riqueza.
Esse tema é o da Liberdade e como as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação nos colocam, no campo das organizações e dos indivíduos, novos, e por vezes velhos, desafios.
A descoberta da liberdade económica tem dois séculos de vida e nasce a partir do momento em que se sintetizaram um conjunto de princípios assentes na ideia do mercado e do seu papel dinamizador das sociedades.
O princípio base era o da existência de operadores iguais em que nenhum pudesse exercer um papel dominante, em que o risco não podia ser dominado e por consequência nenhum poderia impor a sua vontade aos restantes.
Isto é, nenhum dos concorrentes detinha capacidade de acesso e análise da informação para obter posições dominantes. Esta é a lógica da mão invisível do mercado em que o inimigo da liberdade era identificado no poder que alguém detinha e os outros não.
Esse é o sistema económico em que vivemos ao longo dos últimos séculos e cujas imperfeições e crises, ao nível nacional, tivemos de combater através da regulação e da acção política no campo da concorrência.
Será que na Era da Informação a economia digital nos coloca novas questões no campo da liberdade de actuação das organizações?
Serei tentado a afirmar que sim. O facto de actuarmos em mercados à escala global e em novas unidades de tempo, quase instantâneas, coloca novos desafios à nossa capacidade de intervenção.
A acumulação de informação e o decorrente exercício do poder que essa acumulação confere, a alguns poucos, deve-nos levar a interrogar se a liberdade no campo concorrencial poderá ser apenas assegurada pelo exercício da política na esfera nacional ou se cada vez mais o espaço político de regulação da igualdade de oportunidades ocorrerá em espaços políticos supranacionais e em redes entre Estados.
Para todos aqueles que pretendem estar, ou já estão presentes, no campo da economia digital, casos como as tentativas de aliança entre as grandes companhias ligadas ao entretenimento e à informação com os fornecedores de acesso à Internet, os processos em curso entre a Administração Norte-Americana e grandes empresas de software ou os acordos e litígios ainda existentes entre editoras e as novas distribuidoras de música na Internet são situações que devem merecer toda a nossa atenção.
Isto porque, sendo Portugal um país possuidor de um mercado de pequena intensidade, muito do nosso sucesso empresarial passa na nova economia, tal como na velha, pela presença global e aí é condição de sucesso o preservar da liberdade concorrencial.
Mas o digital não se circunscreve às organizações. Também na esfera individual novas configurações e desafios se colocam. Nunca é demais insistir na urgência da criação de condições de acesso a este novo espaço social que é a Internet.
É fundamental garantir uma igualdade de oportunidades no quadro da Sociedade de Informação, quer dentro de cada Estado quer entre Estados.
Mas creio, igualmente, que não existe uma só solução para a generalização do acesso e que o único caminho é o explorar das diversas opções disponibilizadas por Operadores de telecomunicações, Internet Service Providers e pelo Estado.
A generalização do acesso é uma tarefa que nos deve preocupar a todos, pois quantos mais houver com acesso também maior será a falta de liberdade para todos aqueles que ficarem de fora.
No entanto, o acesso não é um fim em si para os cidadãos. Da utilização destas tecnologias devem resultar novas formas de exercício da liberdade e não uma potencial restrição da mesma.
De facto, nos últimos anos, tem aumentado a preocupação dos cidadãos face à relação entre novas tecnologias e privacidade. Por exemplo, no âmbito do comércio electrónico é quase unânime a vontade de políticas de privacidade mais respeitadoras dos direitos dos consumidores.
Alguns poderão objectar a afirmação da necessidade de manutenção da privacidade com a constatação de que o sistema dos media, como um todo, é cada vez mais percebido como um lugar onde não faz sentido falar de vida privada. Pois, câmaras de filmar em páginas pessoais na Internet ou programas que relatam a vida íntima são exemplos da voluntária exposição pública.
Mas importa aqui relembrar que o problema essencial não é o da exposição voluntária ao olhar do público, mas o assegurar do exercício da legítima recusa de divulgação de um “olhar indesejado ” sobre a vida de cada cidadão.
O uso maciço de tecnologias com capacidade de registo e, consequentemente, de vigilância coloca sempre em perigo esta liberdade existencial, à qual se ligam a espontaneidade dos gestos da vida quotidiana e a livre construção da personalidade.
As nossas sociedades não devem, em condição alguma, transformar-se em sociedades da identificação forçada das pessoas ou da sua classificação analítica.
Por muito que as possibilidades nos sejam oferecidas pelas tecnologias a sua utilização em definitivo depende não da necessidade económica ou burocrática, mas sim das escolhas partilhadas pelas sociedades.
E a sociedade em que vivemos é uma sociedade que valoriza o direito a ser “deixado em paz” a par do direito de controlar o uso da própria informação como forma de não ser simplificado, objectivado e avaliado fora de contexto.
Liberdade concorrencial, liberdade de acesso e privacidade são conquistas fundamentais das nossas sociedades.
Na Era da Informação existem desafios herdados, novos desafios e outros permanentes como a defesa da liberdade.
A experiência de séculos, sobre a qual construímos a convivência humana, diz-nos que são necessárias regras. Pois atrás do grande horizonte da liberdade de tantos continua a esconder-se a possibilidade do poder de poucos.
Importa, assim, lembrar que não basta exercer a liberdade, mas igualmente defendê-la, pois só assim poderemos assegurar uma real igualdade de oportunidades e essa é uma tarefa partilhada por Cidadãos, Estado e Organizações.