Intervenção de Sua Excelência o Presidente da República na sessão solene da sua posse

Assembleia da República
09 de Março de 2001



As minhas primeiras palavras dirijo-as aos portugueses, com quem quero partilhar este momento. Deles recebi legitimidade e confiança; a eles se destina a minha acção. Peço, neste dia, a todos os portugueses que reafirmemos juntos o amor que temos a Portugal, que reiteremos a vontade de reforçar os vínculos que nos unem e nos tornam uma comunidade nacional viva, solidária e voltada para o futuro. Dessa comunidade sou símbolo activo e da sua unidade continuarei a ser o garante.

É na certeza de interpretar o sentimento de toda a comunidade que exprimo o meu profundo pesar pela tragédia de Castelo de Paiva, renovando as minhas sentidas condolências às famílias dos que morreram. Devemos à memória dos mortos e ao sofrimento dos vivos o apuramento rigoroso da verdade daquilo que aconteceu.

Agradeço-lhe muito, Senhor Presidente da Assembleia da República, a sua saudação. Moldada como é por uma larga experiência política, por um elevado sentido de serviço à República e por um laço de estima pessoal, recebo-a como estímulo que me honra e responsabiliza.

Nos termos da Constituição, o Presidente da República dirige-se à Assembleia por direito próprio. Permita-me, contudo, Senhor Presidente, que, em vez desse direito, invoque a praxe parlamentar, por mim tantas vezes aqui usada num passado cuja recordação me é tão grata, e lhe peça licença para falar a esta Câmara, sede da representação plural da Nação, saudando todos os senhores deputados com respeito e apreço.

Quero também manifestar, como é de inteira justiça, reconhecimento a todos os que apresentaram e defenderam as suas candidaturas às eleições presidenciais, num espírito de serviço ao País e à democracia. Essa expressão de reconhecimento alarga-se àqueles que deram o seu contributo cívico à campanha eleitoral.


Portuguesas, portugueses

No momento em que inicio um novo mandato, reitero os meus compromissos essenciais: prosseguirei uma magistratura de moderação e de equilíbrio, no escrupuloso respeito pela separação de poderes e empenhado na cooperação institucional com os restantes órgãos de soberania; defenderei o interesse nacional e darei atenção permanente às questões da presença portuguesa na Europa e no Mundo; terei uma preocupação redobrada com os desafios da modernidade, da cidadania, da solidariedade e da coesão nacional; desenvolverei uma acção próxima dos portugueses, dos seus problemas e das suas expectativas.

Estes são compromissos fundamentais, que decorrem da Constituição e da experiência histórica da função presidencial na Democracia Portuguesa. A eles tenho emprestado, naturalmente, a minha interpretação, de acordo com a análise que faço da situação do País e com a antecipação, que também me cabe fazer, das questões decisivas para o futuro dos portugueses.

O eleitorado sufragou, de forma inequívoca, o exercício do meu primeiro mandato, nomeadamente o entendimento consistente das funções presidenciais e o método utilizado para lhes dar corpo; sufragou as metas enunciadas e as áreas de intervenção prioritárias; sufragou, finalmente, o meu propósito de congregar os portugueses e de dinamizar o Estado e a Sociedade.

A renovação da confiança do eleitorado significa, antes de mais, que devo prosseguir o caminho traçado, dando à função presidencial o carácter de vértice estabilizador do sistema político. Interpretei-a sempre no sentido de prevenir bloqueios artificiais e inúteis, de estimular e apoiar as reformas necessárias. Assim continuarei a fazer, pois esse é o interesse do País.

Por isso, a renovação da confiança impõe, igualmente, o exercício de uma magistratura activa, atenta e vigilante que dê voz às necessidades de mudança, que aponte orientações nacionais de modo a garantir aos portugueses desenvolvimento, justiça, segurança e igualdade de oportunidades. E que tenha como causa a dignificação permanente da República, entendida tanto nos seus valores éticos de sempre, como nos valores modernos da promoção da liberdade e da tolerância, da integração social e da abertura cultural.

Cidadão escolhido pelos cidadãos para os representar todos, devo ser o cidadão mais atento, mais exigente, mais responsável, mais solidário. Que fique claro: o sufrágio universal confere ao Presidente da República capacidade moderadora e magistério de iniciativa. Intérprete das expectativas dos cidadãos e da vontade colectiva, sem deixar de ser o garante do regular funcionamento das instituições, cabe-lhe exprimir um impulso transformador e reformista, pois só ele permite manter viva a ambição de um Portugal dinâmico, competitivo e solidário.

Esse impulso é hoje indispensável, todos o reconhecem. Estou atento às preocupações que perpassam na sociedade portuguesa e tenho o dever de ajudar a vencer os desafios nelas contidos. Quero garantir aos portugueses que mobilizarei as vontades necessárias e estimularei todas as competências e todas as capacidades de que dispomos para lhes dar respostas.

Sendo certo que todos, mas todos, temos responsabilidades, que cada um assuma integralmente as suas, sem transferência nem desculpa! Os portugueses sabem que eu assumirei as minhas. Por isso me reelegeram. Considero que a primeira dessas responsabilidades é contribuir para que se ganhe consciência clara dos problemas e dos desafios, pois esse é o primeiro passo para os enfrentar, assumir e resolver. É disso que vos falo, agora.


Um primeiro conjunto de desafios a que temos de fazer face respeita ao crescimento económico.

Tem-se multiplicado, nos últimos tempos, os avisos sobre a situação económica portuguesa. Lembrando traumas antigos, algumas realidades, como o défice comercial e a subida das taxas de juro, geraram pessimismo.

A economia portuguesa conheceu, nas ultimas décadas, transformações profundas e logrou uma integração europeia bem sucedida. Encurtou-se substancialmente a distância entre o nível de vida dos portugueses e a média da União Europeia. Portugal integrou o pelotão da frente da moeda única e o Euro defendeu-nos já de sobressaltos que foram correntes no passado. Esses factos não devem, todavia, servir para ocultar os problemas que persistem.

No curto prazo, Portugal terá de corrigir alguns factores que afectam o equilíbrio da sua economia, nomeadamente no que respeita ao rápido crescimento do endividamento externo, à inflação e às subidas de custos superiores à média da zona Euro e, por conseguinte, à despesa nacional, com particular destaque para as despesas públicas e para a taxa de poupança das famílias.

Mas é no médio e no longo prazo que se joga o crescimento sustentado. Aqui, todo o esforço tem de ser dirigido para aumentar a competitividade e a capacidade produtiva da economia nacional.

Uma viragem impõe-se neste aspecto de forma absolutamente decisiva. Há que libertar recursos para os sectores produtivos, privilegiar o investimento em vez do consumo, fomentar o desenvolvimento industrial, difundir as novas tecnologias e melhorar a gestão empresarial, reabilitar – com sentido ecológico – a agricultura, renovar o tecido urbano, corrigir assimetrias regionais.

Embora as dificuldades a vencer sejam grandes, há que prosseguir e intensificar reformas estruturais em áreas como a da equidade fiscal, da racionalização das despesas públicas, a do aumento da eficiência dos serviços públicos de saúde, justiça e outros, a da melhoria da qualidade do ensino e da formação profissional, a da subida da produtividade na maior parte das actividades produtivas, a do desenvolvimento de uma política mais eficaz de defesa da concorrência no mercado interno e a da atracção do investimento estrangeiro produtivo.

Os sectores produtivos da nossa economia, a indústria sobretudo, não desempenham o papel que deviam desempenhar. O investimento industrial tem de ser mais encorajado, através de uma política selectiva de apoios financeiros e da criação de estímulos à inovação científica e modernização tecnológica.

É igualmente crucial obter uma articulação mais exigente entre os sistemas de ensino, os centros de investigação e as empresas. A nossa sociedade tem de ser mais aberta à inovação e ao risco, mais apta a valorizar a qualidade e a aceitar a mudança.

A competitividade da economia portuguesa, em concorrência global, coloca também um desafio à nossa capacidade de reinventar o pacto social. A renovação do pacto social significa que a sociedade é capaz de se fixar objectivos de médio prazo para criar mais valor acrescentado e gerar emprego de qualidade através de uma relação contratualizada entre os diversos sectores e interesses sociais. É um imperativo a que patrões e sindicatos dinâmicos não devem furtar-se, pois só ele garante sustentabilidade económica e coesão social.

Outros avisos têm surgido alertando-nos sobre a possibilidade de crescermos menos do que a média europeia. Não podemos ser precipitados nesta matéria e admito que uma divergência temporária não deva ser tomada como um desfasamento duradouro. Mas quero expressar a minha profunda convicção de que Portugal e os portugueses não se resignariam se, a prazo, a convergência real em relação à Europa não prosseguisse a ritmo sustentado e significativo.

Se a tendência de crescimento que animou a esperança dos portugueses estiver ameaçada, é necessário, sem demora, tomar as medidas que garantam uma mudança de orientação.

Trata-se de um desafio para o Governo, sem dúvida, mas também para todos os parceiros sociais, para todos os responsáveis políticos, para os técnicos, para o mundo das empresas, para o sistema de ensino, e – convém não esquecermos – para os cidadãos em geral.

Esta é uma meta que só pode ser atingida com trabalho, disciplina e rigor, mas também com imaginação, criatividade, visão e ousadia.

A integração europeia e o crescimento económico coincidem num grande desígnio nacional que é precisamente o de atingirmos os padrões da Europa mais desenvolvida. Em nome desse desígnio demos vigor a um notável esforço colectivo que não pode ser desperdiçado.

A recuperação do atraso tem de continuar, a bom ritmo, em nome de uma solidariedade entre gerações que é o cimento mais forte de uma comunidade que partilha valores históricos e projecta o seu futuro.


Um segundo desafio que quero assinalar respeita ao lugar de Portugal na Europa depois de Nice.

O alargamento da União Europeia às novas democracias da Europa Central e Oriental é indispensável e justo. No entanto, é um processo que exige de nós especial atenção, para prevenirmos os riscos e aproveitarmos as oportunidades que contem.

A negociação do Tratado de Nice mostrou que a perspectiva do alargamento da União tende a agravar as tensões entre os interesses próprios de cada Estado Membro e o interesse comum de todos eles. Ninguém põe em causa, todavia, que o interesse nacional tem de ser hoje concebido também no quadro de um destino comum, do qual a União Europeia é o mais ambicioso intérprete.

Participar nesse projecto implica compromissos, por vezes mesmo sacrifícios, que são a contrapartida da segurança, prosperidade e união das democracias europeias, num mundo cada vez mais globalizado.

Feito o balanço, a União Europeia tem sido um insubstituível factor de prestígio, credibilidade e projecção internacional de Portugal, e tem representado uma oportunidade única de desenvolvimento, que é nossa obrigação, face às gerações futuras, consolidar e aproveitar plenamente.

Para conseguirmos percorrer este caminho, beneficiámos, até agora, de um amplo acordo nacional sobre o sentido e o alcance da nossa participação na construção europeia. É indispensável que ele possa ser sempre assumido e invocado.

O tratado de Nice não pôs em causa os fundamentos desse acordo, mas, reconheçamos, também não os solidificou. Suscitou mesmo algumas dúvidas e apreensões. Importa, pois, reflectir em conjunto sobre a marcha do projecto europeu, de modo a renovar o consenso em torno de uma estratégia nacional que constitua suporte e orientação para a nossa acção política e diplomática no âmbito da União. Não tenho dúvidas de que esse consenso é do interesse nacional. Darei o meu empenhado contributo no sentido de o confirmar e consolidar.

Duas questões fundamentais avultam nessa reflexão. A primeira: como garantir condições para que Portugal continue no caminho da convergência com os países mais desenvolvidos da União? A segunda: como defender os interesses e a posição do Estado no modelo institucional reformado que a Europa do alargamento adoptará?

Temos uma contribuição própria a dar para a definição do futuro comum. Seja qual for a direcção que o debate venha a tomar entre os Estados Membros, temos, desde já, de evitar dois riscos: por um lado, a ilusão de que outros, melhor do que nós próprios, defenderão os nossos interesses; e, por outro, o engano de que, isolados, estaremos melhor defendidos.

Projecto que assumimos e que queremos aprofundar, a União Europeia não esgota, porém, o âmbito da nossa afirmação internacional. Assim, a nossa posição na União será sempre valorizada pelo reforço das alianças e da cooperação externa do País com o resto do Mundo. Devemos também continuar o esforço de projectar melhor a nossa cultura e a nossa língua. Portugal será tanto mais respeitado na Europa quanto souber cumprir a sua vocação histórica universalista.

A nossa afirmação na Europa e no Mundo passa igualmente pela capacidade de contribuirmos para a defesa comum e para a segurança colectiva, para o que precisamos de Forças Armadas modernas e adaptadas às necessidades do nosso tempo.

Também aqui o impulso reformista não pode abrandar. À democracia compete actualizar os objectivos estratégicos da defesa nacional e os meios para os realizar.

Como Comandante Supremo, quero saudar todos os militares portugueses, manifestando-lhes o reconhecimento do País pelas missões que têm desempenhado com tanta eficácia e dedicação, prestigiando a Nação e reforçando a sua posição internacional.


Um terceiro desafio que temos de ter presente é o que resulta da disseminação de factores de insegurança e risco na nossa sociedade.

Nas sociedades modernas, a segurança tem de ser encarada como uma dimensão da cidadania. Ao cidadão, o Estado tem de garantir tanto o acesso a patamares de dignidade e bem estar, como a segurança pessoal e patrimonial.

Sabemos que as causas da insegurança são diversificadas, múltiplas, pouco controláveis e que simplificar os dados do problema não ajuda a resolvê-lo. A violência que existe nas nossas sociedades é, em parte, resultado de uma sociedade que é desumana, agressiva e em que os factores de exclusão social se acentuaram, provocando rupturas e antagonismos graves.

Mas reconhecer que a violência tem causas complexas não significa desculpá-la nem impede que o programa de combate seja claro, actuando-se sobre as causas profundas e sobre os efeitos imediatos.

É preciso, nesta matéria, adequar as capacidades do Estado, tornar mais eficazes as acções de prevenção e dissuasão, prestigiar o papel social das forças de segurança, assegurar a cooperação entre o Estado central e as autarquias, obter a colaboração das organizações de solidariedade social, incluindo o voluntariado. É ainda fundamental ser firme na repressão das novas formas de criminalidade, pois, como sabemos, também o crime hoje está globalizado.

Mas, para além da violência, existem na nossa sociedade novos factores de risco, ligados a mudanças de tipo civilizacional, que geram também inseguranças de outro tipo.

Alguns deles vêm de trás, como os que resultam das assimetrias regionais e das dificuldades do mundo rural em modernizar-se. Outros são consequência dos impactes, por vezes brutais, de uma competição económica e social sem regras, que precariza o emprego, enfraquece as estruturas sociais, a começar pela família, ou ainda do individualismo exacerbado que mina a responsabilidade colectiva. Por isso, tenho apelado incessantemente ao reforço da cidadania e da coesão social. Continuarei a fazê-lo.

O papel das famílias é essencial para este objectivo da coesão e da integração, não podendo ser transferido. Deve, por isso, promover-se uma articulação mais consistente entre a escola e as famílias, desde o pré-escolar. A escola não pode ser vista como uma oportunidade de transferir responsabilidades que cabem à família, mas como um assumir dessas responsabilidades num quadro mais amplo. O apoio à família implica igualmente políticas novas em domínios como o da fiscalidade, da diversidade de horários de trabalho do homem e da mulher e da partilha de responsabilidades familiares entre os seus membros.

Por outro lado, o sentimento de insegurança acentua-se ainda porque se rompem equilíbrios ecológicos e biológicos e se utilizam processos e materiais que representam perigos sérios para a vida e para a saúde humana. As mutações e as inovações surpreendem, abrem horizontes, mas também provocam inquietação e temor.

Precisamos de estar mais atentos a estes temas dos quais depende o futuro. Portugal tem de dispôr de um aparelho técnico-científico sempre muito apto, que proporcione informação, conhecimento rigoroso e pontual em áreas estratégicas, como a agro-alimentar, a saúde pública, o ambiente e o clima. O país não pode prescindir de dispositivos de fiscalização e controlo devidamente creditados dos ecossistemas e das intervenções que neles são operados pelas obras públicas e implantação de equipamentos sociais.

Essa é uma exigência do nosso tempo. Se podemos e devemos aceder à investigação europeia e mundial, isso não pode, em caso algum, servir de pretexto para descurarmos os nossos próprios meios materiais, sobretudo, as nossas qualificações humanas nesses campos.

As Universidades e os Politécnicos têm aí um contributo fundamental a dar. Só assim, aliás, se pode cumprir cabalmente a responsabilidade que o Estado e os seus serviços têm perante os cidadãos.

Sabemos que, actualmente, a segurança e a tranquilidade dos portugueses dependem muito da credibilidade do Estado e da eficácia da Administração Pública. Só com rigor e a transparência asseguraremos essa credibilidade; só com qualificação, modernização, racionalização de meios, garantiremos esta eficácia. Esta é uma batalha que não podemos perder.


Por isso, o quarto desafio que importa referir diz precisamente respeito à reforma do Estado.

Como tenho repetidamente afirmado, há, em muitos domínios, uma descrença nas capacidades do Estado em servir os portugueses. Essa desconfiança é, aliás, crónica entre nós.

De facto, é frequente apontar-se situações em que o Estado falhou por inoperância ou falta de meios aptos. Mas ainda há casos em que cedeu a grupos de pressão ou assumiu ele próprio uma lógica corporativa, onde devia ter assumido uma ética de serviço público. Quando age assim, o Estado torna-se parte, e parte do problema, em vez de árbitro, e parte da solução.

Este é um tema fundamental de cidadania. Penso que não deve ser aprisionado na luta político-partidária. É um imperativo da democracia, pois a democracia exige um Estado democrático forte, justo, eficaz, imparcial e prestigiado.

Para isso, precisamos de restaurar a confiança na relação entre o Estado e os cidadãos. Precisamos de uma nova atitude, que vença suspeitas e rotinas que se vêm arrastando. Necessitamos de um Estado democrático moderno e reformista.

Como tenho dito, precisamos de serviços públicos que sejam verdadeiramente o que são: serviços e públicos. Serviços, porque estão ao serviço dos cidadãos; públicos, porque não estão ao serviço de interesses ou conveniências privadas, em detrimento do interesse geral e do bem comum.

Necessitamos de maior igualdade regional na oferta e na utilização dos serviços e dos recursos. Necessitamos de assegurar o acesso e a utilização efectiva dos serviços, e serviços descentralizados, por parte das pessoas a quem se destinam. Só assim garantiremos a educação, a saúde, a justiça a que os portugueses têm direito. Só assim o Estado será um instrumento de progresso e de desenvolvimento da sociedade e da economia - e não um peso, uma inércia, um factor de asfixia e de opacidade das decisões.


Refiro, por fim, como quinto desafio, que se prende com este, o da reforma do sistema político.

É hoje patente, no comportamento dos cidadãos face à política, aquilo que vários observadores vinham diagnosticando: o risco de um divórcio entre os cidadãos e a política. De facto, sinto desencanto e por vezes até desinteresse dos meus concidadãos pela vida política. Há sinais de desmotivação e de despolitização que me preocupam, que preocupam todos os que querem uma democracia viva e dinâmica, uma República moderna e solidária.

Não esqueçamos que a liberdade e a democracia nunca estão adquiridas definitivamente. Temos de cultivar os seus valores, o seu espírito, os seus ideais, os seus princípios: a autoridade democrática, a igualdade dos cidadãos perante a lei, o pluralismo, a participação, a tolerância e a fraternidade.

Temos de fortalecer as associações cívicas e políticas, a começar pelos partidos políticos, tornando-os mais abertos e mobilizadores. Temos de prestigiar as instituições representativas que devem demonstrar mais eficácia e prestar contas da sua acção em defesa do interesse público. Temos de impor uma ética da responsabilidade na vida democrática e na acção política, subordinando os interesses pessoais ao interesse colectivo.

A vida parece correr à margem do sistema político. Por isso temos também que fortalecer todas as formas de associativismo social, o voluntariado, as organizações dinâmicas da comunidade.

Uma das causas do afastamento dos cidadãos está provavelmente na convicção de que o poder político está longe dos problemas e é pouco eficaz na sua solução. Esta questão põe às instituições da vida democrática, designadamente aos partidos, os mais sérios reptos.

Temos que criar organizações menos fechadas e mais abertas à cidadania. Esta é a razão porque, em democracia, não é adequado falar-se em “classe política”. Os políticos não podem nem devem constituir uma classe assente numa qualquer solidariedade corporativa de interesses ou privilégios. O exercício de funções políticas, sempre transitório, é um serviço prestado à comunidade, de quem se recebe legitimidade e a quem se tem de prestar contas.

Temos de ser capazes de quebrar o ciclo vicioso que leva os cidadãos a distanciarem-se da política porque a acham pouco influente, contribuindo, com esse mesmo afastamento, para a perda de influência da política. Quebrar o circulo vicioso implica garantir que o cidadão tem a palavra, que o seu voto conta, que a sua participação é querida e respeitada.

Temos também de aperfeiçoar o recenseamento eleitoral, realizando com determinação uma mudança profunda no actual sistema.

Durante o meu primeiro mandato, chamei a atenção do País e dos responsáveis políticos para a necessidade de uma reforma do modo de fazer política. Num mundo que mudou tanto, só a política parece ter mudado pouco, ficando agarrada a formas de intervenção pouco motivadoras.

Algumas alterações foram, no entanto, experimentadas. A campanha eleitoral das presidenciais decorreu já sob uma nova lei de financiamento das campanhas eleitorais que contem aspectos positivos. Com a experiência entretanto adquirida, julgo estar em condições de sobre ela me pronunciar, o que farei proximamente em mensagem a esta Assembleia.

A desconfiança que, por vezes, se manifesta em relação à política e aos políticos tem de ser contrariada, não apenas com palavras, mas com actos, com rigor nos comportamentos e com exemplos de dedicação à causa pública. Falo à vontade, pois penso – e tenho-o dito – que os portugueses devem muito aos eleitos que os representam e servem nas mais diversas instâncias, desde as Juntas de Freguesia e Câmaras Municipais, até às Regiões Autónomas e à Assembleia da República. Esse reconhecimento é devido e não será regateado, se mostrarmos capacidade de vivificar o poder local, de aprofundar as autonomias, de aproximar os representantes dos representados.


Senhor Presidente

Senhores Deputados,

Os desafios que enumerei decorrem, como disse, de preocupações que sinto presentes na sociedade portuguesa. Decorrem também das ambições e expectativas dos portugueses. Ambições e expectativas naturais. A sociedade portuguesa é hoje menos resignada e mais crítica. Ainda bem que o é.

Não podemos, por isso, ficar surdos perante as críticas, quando justas, e inertes perante as exigências, quando legítimas. Pior do que uma resposta, mesmo incompleta, é a indiferença, o deixa andar. Os portugueses sabem que não terei nunca contemplação com a desatenção, com a falta de empenhamento na solução dos problemas, com o arrastamento das decisões. A minha única ambição é Portugal - e quero que Portugal seja digno da ambição dos portugueses. Os desafios de que vos falei devem ser tomados como metas:

A meta do crescimento económico, da convergência real com os padrões europeus e da competitividade da economia nacional.

A meta de um Portugal forte numa União Europeia alargada e num Mundo globalizado.

A meta de um Portugal seguro, coeso e solidário.

A meta de um Estado responsável e responsabilizado.

A meta de uma República moderna e participada.

Pela minha parte, quero transmitir ao Estado e à sociedade os impulsos transformadores e modernizadores que no âmbito da minha magistratura considero prioritários: – na formação, no ensino, na cultura e na ciência; – na vida empresarial; – na justiça; – na saúde; – nas Forças Armadas e de segurança pública; – na vida política.

Trabalharei com todos os órgãos, instituições e partidos, no apreço e respeito pela diversidade plural de opiniões de que se faz a democracia. Agora como no mandato anterior serei fiel aos princípios que regem o exercício da função em que fui investido: isenção, imparcialidade, cooperação institucional.

Sei que há capacidades e vontades que se podem congregar, mobilizando os portugueses residentes no Continente e nas Regiões Autónomas, e em ligação com os portugueses que se encontram emigrados em vários países do Mundo. A todos saúdo afectuosamente neste dia.

Saúdo também os imigrantes que vivem entre nós, acatando as nossas leis e contribuindo com o seu trabalho para o nosso desenvolvimento. Dirijo-lhes uma palavra de solidariedade nas suas dificuldades de integração.

Considero meu primeiro dever impulsionar e unir os portugueses para mudarmos o que está mal, consolidarmos e ampliarmos o que conseguimos, prosseguirmos a modernização e o desenvolvimento do País. Não podemos realizar este objectivo sem um clara visão global. Os problemas que temos de enfrentar têm uma natureza e uma dinâmica que não é estritamente nacional. O mesmo se pode dizer das respostas a esses problemas.

Chegámos ao século XXI com alguns problemas velhos, mas tendo como fundo um Mundo que é novo. Nele, os velhos problemas mudam a sua dimensão e a esses juntam-se novos problemas. Não há mais lugar para receitas gastas ou soluções de facilidade. A chave que nos abriu a porta do novo milénio não é a das certezas, é a das interrogações.

A história ensina-nos, contudo, que, se estas são épocas de riscos, são também de exaltante invenção de novas possibilidades de viver e de construir um Mundo melhor. Nos tempos de grandes mudanças, apareceram algumas das obras mais admiráveis criadas pelo génio humano. A obra de Camões, por exemplo, é de um tempo de mudança, incerteza e globalização. É disso que nos fala.

Não devemos, pois, ficar paralisados pelo medo ou pela descrença. Nem assustados pela grandeza da obra a fazer. Ousemos, norteados por valores que, sobretudo nas épocas de crise, nos devem dar ânimo. Esses valores traduzem-se na responsabilidade de sermos mais humanos e na convicção de que só a liberdade é criadora e apenas a justiça funda o que é duradouro.

Foi em nome dessa responsabilidade e dessa convicção que, desde a Universidade, me empenhei no combate político. Continuo fiel a esse mandamento interior.

Diferentemente de alguns a quem a passagem dos anos ou a vida desiludiu, afundando-os num cepticismo cínico ou resignado, a que às vezes chamam pragmatismo, eu mantenho intacto e actualizado o sonho da minha juventude. Ao contrário deles, a experiência dos homens e das situações confirmou-me no essencial das minhas convicções.

Acredito com a mesma força de então que é possível, necessário e urgente lutar por um Mundo de maior dignidade para todos os seres humanos, por um Portugal mais solidário e mais equânime, com menos discriminações entre homens e mulheres, entre filhos de ricos e filhos de pobres, entre habitantes do interior e do litoral, entre jovens e mais velhos.

A possibilidade de concretização desse sonho de um país livre e justo, abriu-se para nós em 25 de Abril de 1974. Quero evocar com emoção essa data fundadora do novo Portugal democrático. Lembro todos os que, durante décadas de coragem e de dádiva pessoal, lutaram pela liberdade. Presto homenagem aos capitães de Abril que, nesse dia em que “a poesia estava na rua”, nos fizeram reencontrar o futuro.

Para sermos fiéis ao inicial, grande e generoso impulso transformador do 25 de Abril, temos o dever de estar à altura da esperança dos portugueses.

É chegada a hora de vencermos a desconfiança secular por nós próprios, de sacudirmos o pessimismo, a resignação, “o meu remorso de todos nós”, de que falava, com tanta inteligência crítica, Alexandre O’Neill. É chegada a hora de ultrapassarmos aquela atitude mental que nos faz apontar os males, arranjando logo alibis, desculpas e explicações para a sua continuação. O meu apelo é este: Sejamos exigentes connosco, sejamos ambiciosos com Portugal.

Viva a República!

Viva Portugal!