Sermão sobre a Política

Palácio Fronteira, Lisboa
27 de Março de 2001


Agradeço muito ao meu querido e velho amigo Dr. Fernando Mascarenhas o convite para estar hoje aqui, a participar nesta segunda série dos Sermões. Esta ideia de convidar pessoas tão diversas para falarem de temas tão diferentes (escolhidos livremente, aliás) é bem interessante. Estimula a reflexão, convida a ouvir (que é, no nosso tempo, uma arte que parece estar às vezes a cair em desuso), incita a comunicar.

Ao receber o convite para vir fazer o meu "sermão", - sermão laico, claro interroguei-me sobre a utilidade que ele podia ter. Não só porque me faltam os dons exigíveis aos pregadores, mas também porque não pude fugir de pensar como as palavras geram hoje desconfiança - muitas, à força de as repetirmos, estão gastas.

Fiquei, todavia, um pouco mais tranquilo quando me lembrei que esta dúvida sobre a pouca eficácia dos discursos não é apenas do nosso tempo. De facto, já em 1655, o maior dos nossos pregadores, genial artista da palavra, o Padre António Vieira, dedicou um sermão - o famoso Sermão da Sexagésima - exactamente aos "poucos frutos" que os sermões produziam.

Grande praticante, da suar arte, Vieira assume-se, neste Sermão, também como teórico dela, passando em revista as circunstância que concorrem para que o sermão seja fecundo: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz.

Depois de as analisar uma a uma, o escritor conclui que não é porque cada uma delas, ou mesmo todas elas, falham que o sermão falha. O sermão falha porque o orador diz, não o que deve dizer, mas o que ele pensa gostarem os ouvintes de ouvir. Aí é que está o engano!

E virando-se para os ouvintes daquele sermão sobre o sermão, afirmou-lhes Vieira: "Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador, agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saíreis muito descontentes de vós".

Estas palavras de Vieira vêm muito a propósito, penso, ao tema de que vos vou falar. Nesta Casa tão bela, que é uma casa carregada de história e que tem sido um espaço de liberdade, mesmo quando o País não era livre, julgo que fica bem falar de política.

Este meu "sermão sobre a política" parte de um ponto: a política como serviço à comunidade deve ser reabilitada. Reabilitada pelos que a exercem, reabilitada pelos que são os seus destinatários e que devem ser participantes dela. A política não é apenas dos políticos - é de todos os cidadãos.

De facto, a exemplo de Vieira, que se interrogava por que razão os sermões não eram eficazes, eu tento procurar as causas que levam tantos concidadãos nossos a virar as costas à política, a descrer da sua eficácia, a desconfiar dos políticos e dos seus "sermões".

Para mim, fazê-lo é um dever que tenho pelas funções que desempenho e pelo mandato que recebi. Mas é também uma interrogação a que não posso fugir pelo meu percurso pessoal e político.

Como para muitos da geração a que pertenço, a minha escola política começou no movimento estudantil, nas lutas académicas dos anos sessenta, que formaram uma primeira linha da oposição ao regime autoritário. A essência desse regime era - não o esqueçamos! - a de negar o valor e a dignidade da política.

O regime salazarista, em coerência com a sua ideologia anti-democrática e anti-liberal, defendia uma cultura política contra a política, segundo a qual a liberdade constituía uma ameaça aos valores nacionais, o pluralismo era sinónimo de divisão do Estado e a modernidade antecipava a decadência de Portugal. Na ideologia do salazarismo, a política tinha um significado claramente depreciativo e chamar a alguém político passava por insulto.

Os movimentos estudantis e a oposição democrática ao regime autoritário foram uma boa escola e um bom começo. Desde logo, ensinaram-nos que a razão de ser da política é a liberdade. A liberdade pressupõe a existência de um espaço público, onde os cidadãos se organizam para defender as suas ideias os seus interesses, onde a comunidade nacional se constitui, formando a sua vontade e os seus projectos assentes num destino comum. Pode dizer-se que, de certa maneira, o movimento associativo, nos seus modos de organização internos, configurou e prefigurou um espaço de liberdade política, negado ao todo nacional por um regime arcaico.

Por outro lado, aprendemos aí a praticar e a reconhecer as melhores qualidades políticas - a coragem, o espirito de serviço, a perseverança. A coragem, que Churchill considerava a primeira de todas as qualidades, por garantir todas as outras, era indispensável, quando o preço da acção política na oposição a um regime repressivo era muitas vezes a prisão, a perseguição, o exílio, o ostracismo.

Do mesmo modo, a natureza do regime assegurava que ninguém podia esperar quaisquer benefícios pessoais - muito pelo contrário - pela sua coerência no combate pela liberdade: só o espírito de bem servir a causa pública justificava a intervenção política, fundamentava a luta por convicções e por ideais, e, antes disso, pelo simples direito de os poder defender - os nossos e os dos outros, em igualdade de circunstâncias.

A perseverança na defesa dos valores e dos ideais políticos, numa visão larga do futuro de Portugal, também se revelou uma qualidade insubstituível, durante o longo combate contra o salazarismo. Durante esses anos de combate e até muito perto do fim, ninguém tinha a garantia de que a sobrevivência do regime autoritário estivesse posta em causa. Sabíamos apenas que, sem o seu fim, não seria possível nem a democracia pluralista, nem o fim das guerras coloniais, nem o regresso de um Portugal adiado ao tempo histórico da modernidade europeia. Não sabíamos, à partida, quanto teríamos de esperar e de continuar a lutar.

Alguns tombaram. Muitos, das mais variadas origens ou ideologias, estiveram presentes.

A lição que tiro desses tempos é esta: a adversidade, o isolamento e a duração da nossa luta contra um regime decadente impuseram-nos uma ética de responsabilidade na acção política. Essa ética é inseparável dos valores do serviço, da integridade e da probidade.

Se me alonguei um pouco nesta reflexão sobre o meu próprio percurso é por pensar que dela podemos tirar ensinamentos ainda válidos para os dias de hoje e sobretudo para o futuro.

Penso que a política tem de recuperar o sentido desinteressado e austero de serviço à comunidade. Só esse sentido é capaz de assegurar a confiança dos cidadãos, através de práticas políticas, e de administração rigorosas e exigentes. Moldado por esta escola cívica, tenho e tive sempre muita honra em ser político. Considero, como sempre considerei, nos bons e nos maus momentos, um dever da cidadania exercer os meus direitos ao serviço da política. E também o direito a ser respeitado e o dever de aceitar a crítica, mesmo que para a discutir a seguir.

Contudo, tenho obrigação de saber - e sei - que os meus concidadãos se sentem, por vezes, desiludidos com a nossa vida política democrática, alheados, indiferentes e distantes de quem os representa - pessoas e instituições. Não é difícil observar os sinais de uma crescente despolitização, expressa na abstenção eleitoral, numa certa anemia dos partidos políticos e das associações de interesses económicos e sociais.

Embora, em Portugal o fenómeno apresente, no pormenor, alguns aspectos particulares, expressa no geral uma tendência que se acentuou em toda a Europa, sobretudo na última década. Com a queda do muro de Berlim e o fim da guerra fria, a democracia foi aceite, pelo menos teoricamente, em todo o lado. Desapareceram as alternativas, com um mínimo de credibilidade, ao modelo ocidental que concilia a democracia pluralista, o Estado de direito e a economia de mercado. A vitória dos valores da liberdade na luta ideológica que atravessou o século XX é um momento maior na História. Porém, sem os adversários clássicos, os regimes democráticos tornaram-se mais vulneráveis aos seus problemas, conflitos e tensões internas e ficaram expostos a um aumento das expectativas, muitas vezes desproporcionado em relação à sua capacidade de resposta e aos recursos disponíveis.

O maior perigo que a democracia enfrenta é o do conformismo, que destrói as qualidades da auto-exigência que garantiram a sua vitória e o seu aperfeiçoamento. Sem oposição clara, a política democrática tende a tornar-se demasiado amorfa, cinzenta, desinteressante e instalada, desaparecendo o espirito de afirmação e a necessidade de que seja permanentemente renovada a luta pela liberdade.

Embora não seja uma singularidade portuguesa, alguns sinais existentes que podem prefigurar uma crise de motivação, ou mesmo uma crise de legitimidade, devem merecer uma reflexão profunda e uma resposta decidida, tanto dos responsáveis políticos, como dos cidadãos no seu conjunto.

Não se trata de questionar os fundamentos da democracia nem sequer de procurar uma perfeição que sabemos sempre humanamente inalcançável. Há, isso sim, que procurar os modos de a tornar mais viva e enraizada na sociedade e nas pessoas enfrentando, com confiança, as dificuldades da sua evolução neste tempo de tantas e tão radicais mudanças. A proximidade, a descentralização.

A esse propósito, gostaria de referir três temas que considero cruciais. São eles a participação política, os meios de comunicação de massa e as instituições representativas.

Tenho reiterado, frequentemente, a minha preocupação com o aumento da abstenção, de eleição para eleição, tendência que urge inverter. O declínio da participação cívica e política dos cidadãos tem também, entre outros efeitos, uma expressão particularmente séria na perda de capacidade de intervenção, de mobilização e de renovação dos partidos políticos, traves mestras da democracia representativa. Houve tentativas de delegitimação, de denegrimento institucional, mesmo de convite à abstenção que foram claras.

É importante recordar que a fundação da democracia portuguesa é inseparável da luta dos partidos pela institucionalização de um regime constitucional assente no pluralismo político, contra certos projectos revolucionários que o queriam subordinar a concepções organicistas. Nesse sentido, ao contrário de outras transições, a nossa obrigou os partidos políticos a passarem por provas muito difíceis. Foram questionados e forçados a conquistar a sua posição, lutando para dar ao regime post-autoritário e post-revolucionário os princípios e as regras de uma democracia moderna. O sucesso deste combate tornou possível a integração de Portugal na Comunidade Europeia e a adopção de uma estratégia de modernização sustentada e coerente.

Hoje, toda a gente - a começar pelos seus próprios dirigentes - reconhece a necessidade de uma reforma dos partidos políticos, demasiado pesados e fechados sobre si próprios. É necessário garantir uma maior transparência no seu financiamento e mais clareza nas suas relações com os grupos de interesses. É necessária uma mudança nos modos de funcionamento, que justifiquem e tornem interessante uma maior participação dos cidadãos nas suas iniciativas e na sua vida interna. É necessário encontrar as formas de os abrir mais à
sociedade, às outras associações cívicas, aos movimentos sociais e culturais portadores de temas inovadores, como a ecologia ou a defesa dos direitos humanos. É necessário actualizar os programas e as estratégias, quando as velhas clivagens deixaram de ter sentido e as antigas divisões se tornaram supérfluas ou objecto de arqueologia política.

Políticas de quotas, a paridade, a chamada de novos temas e novos públicos, a flexibilidade na condição de militante, apoiante no simples interessado.

Apesar dos grandes e complexos desafios que têm de ser enfrentados, tenho confiança na capacidade dos partidos se reformarem a si próprios. A força que demonstraram na fundação do Portugal democrático é penhor das suas qualidades profundas. Não tenho dúvidas de que a sua centralidade na vida democrática torna imperativa essa tarefa. Não há democracia sem partidos, nem democracias fortes sem partidos fortes.

Do mesmo modo, não há regimes de liberdade sem liberdade de imprensa, nem liberdade de imprensa sem meios de comunicação de massa fortes e prestigiados que garantam o seu pleno exercício. Também nesta matéria a nossa transição revolucionária, com os casos do República e da Rádio Renascença, demonstrou o valor insubstituível da liberdade de imprensa e do pluralismo nos meios de comunicação. O tema da comunicação de massas é, no nosso tempo, um tema fundamental da democracia. Por força do rapidíssimo desenvolvimento tecnológico e, entre nós, depois de ultrapassado o monopólio estatal, a televisão passou a ocupar o lugar primeiro entre os meios de comunicação de massa e, como tal, a dominar a comunicação política.

Em si mesma, essa mudança abriu possibilidades extraordinárias para garantir uma informação completa e, em tantos casos, imediata e directa, sobre a vida política nacional e internacional.

Paralelamente, a multiplicação dos meios de comunicação e a sua internacionalização, representam obstáculos formidáveis a quaisquer tentativas de censura sistemática.

Dito isto, que é o essencial, não deixa de ser menos verdade que a emergência da "videopolitica" - para usar uma fórmula conhecida de Giovanni Sartori - tem, contudo, afectado a qualidade da comunicação e do debate político. Sobre isso, darei o meu testemunho. O sistema mediático vem, hoje, concorrenciar o sistema pedagógico. O nosso
espaço público é hoje o do audiovisual. Isto acentuou ou radicalizou o fenómeno da mediatização da comunicação política, com a passagem de uma opinião pública "sujeito" para uma opinião pública "objecto".

Por defeito meu, certamente, que fui educado na leitura de jornais, continuo a achar impossível sintetizar uma ideia, uma posição, uma proposta política em trinta segundos, numa frase apelativa que resuma toda a sua complexidade.

Por defeito meu, seguramente, pois prezo a sobriedade e o rigor, continuo a achar incompreensível que muitos problemas e temas dos quais depende o nosso futuro, mas que não são susceptíveis de sensacionalismo fácil, só tenham lugar na informação televisiva depois de esgotados todos os casos de violência e brutalidade, todos os protestos e manifestações do dia.

Por defeito meu, sem dúvida, convencido que estou das virtudes da privacidade e do respeito pela dignidade do ser humano, continuo sem conseguir entender os méritos da exploração desenfreada dos sentimentos, tantas vezes misturada com reflexos populistas anti-políticos e mesmo anti-democráticos.

A democracia é o regime da razão. Talvez por isso seja cada vez mais difícil desenvolver uma cultura de liberdade e de tolerância em competição com a tentação permanente de manipular as emoções até ao limite do insuportável. E, todavia, são os jornalistas os primeiros a querer e a exigir que essa cultura de liberdade e de tolerância exista e se aprofunde. É preciso encarar esta contradição contando, naturalmente, com o empenho dos responsáveis políticos, dos jornalistas e de todos os profissionais da comunicação, dos cidadãos.

Como diz Ferri, a questão não é já a da liberdade de imprensa (como a conhecemos) contra a tutela do Estado mas a de saber como promover a autonomia dos cidadãos face ao poder dos medias.

O terceiro tema a que me refiro é o das instituições representativas. Essas instituições e, desde logo, a Assembleia da República, devem ser fortalecidas e prestigiadas. Muitas vezes, o parlamento e os deputados são os primeiros alvos de uma critica difusa contra a política e os políticos. A velha cultura autoritária não desapareceu inteiramente, o populismo mais ou menos latente exprime-se, preferencialmente, contra a representação nacional, enquanto símbolo principal da democracia pluralista. E não são o populismo - "a culpa é dos políticos" - é uma grande e facilitada frase unificadora das paixões, frustrações com desilusões ou dramas.

Tive a honra de ser deputado na Assembleia da República e aprendi a reconhecer a importância decisiva, na vida política, do parlamento, que muitos procuram, nem sempre com plena consciência do que estão a fazer, diminuir. É claro que a Assembleia da República deve ser um exemplo na eficácia da sua acção, na dedicação dos deputados, na defesa dos valores republicanos. Deve ser uma escola da democracia. Para tanto, deve fazer-se um esforço continuado para garantir nela a presença dos melhores, dando-lhe condições de trabalho adequadas. Só assim o Parlamento pode ocupar, como lhe compete, o centro dos debates políticos nacionais.

A impopularidade de discutir os meios para conseguir os melhores.

Só que não se pode acusar a Assembleia da República de uma coisa e do seu contrário. Até há pouco tempo, dizia-se dela que não tinha iniciativa, nem inovação, nem antecipação, nem arrojo, que não era capaz de captar os grandes temas do futuro. Agora, começaram a aparecer vozes a dizer que as suas preocupações estão desfasadas das preocupações dominantes dos portugueses.

Entendo que a Assembleia da República tem responsabilidades crescentes perante uma realidade social, cultural, económica e jurídica cada vez mais complexa. Assim e por exemplo, a transferência externa de um número importante de competências nas políticas económicas e monetárias, bem como nas políticas de segurança e defesa, exige mecanismos reforçados de controle político parlamentar e uma prática efectiva de prestação regular de contas do Governo perante a Assembleia da República. Considero ambos essenciais para garantir a continuidade estável do Estado democrático. Sem renovação gradual das instituições a democracia estagna e perde a confiança dos cidadãos. Só que estes não se podem alhear desta necessidade, como se ela não lhes dissesse respeito. A sua participação é fundamental para que a renovação se dê.

Quis partilhar convosco algumas das minhas preocupações. Sei que a resposta a elas exige uma acção que tem de ser constante, gradual e aperfeiçoável. Sou, por isso, prudente nas minhas expectativas. Tenho, contudo, uma profunda confiança na democracia, na sua capacidade para se reformar e ultrapassar todas as crises e todos os aparentes impasses.

Essa confiança resulta da minha experiência como político, e também da avaliação que faço da próxima geração, a geração que se formou com a democracia, a geração da liberdade.

Esses jovens têm uma enorme tarefa sobre os ombros. A de conciliar a herança que recebem com as exigências de um Mundo que todos os dias nos surpreende. Esses jovens têm, pelas suas experiências pessoais, clara noção disto mesmo. Não me canso de falar com os meus filhos e com os seus amigos sobre estes assuntos. Noto neles uma abertura de espírito e uma ambição para Portugal que são a condição para que a democracia se actualize. São eles os desejáveis portadores da inovação. Espero que, como aconteceu comigo quando tinha a idade deles, eles vejam na política uma nobre função, aquela que, desde os gregos, lhe foi destinada: a de um serviço à polis, à cidade, visando o bom governo, a liberdade, a justiça e a equidade. Nesse sentido, política e cidadania são inseparáveis.

Espero - com muita confiança - que a geração dos meus filhos, que começa a assumir responsabilidades relevantes na vida democrática, possa ter, mesmo sem as lições da adversidade, a mesma confiança na política e na liberdade que me motivou a mim, e a tantos como eu, a querer compreender, a agir a ser solidário com os outros.