Sessão de abertura do Colóquio "Europa: Unidade e Diversidade Cultural" organizado pelo "Carrefour des Littératures"

Bordéus, Château Feydeau
10 de Maio de 2001


Quero começar por agradecer o amável convite que me dirigiram para estar aqui convosco e felicitar o Carrefour des Littératures por mais esta iniciativa também dedicada à literatura portuguesa. Quero manifestar-lhes o meu reconhecimento pelas palavras que tiveram a amabilidade de me dirigir, que tanto me honram e que, sobretudo, honram o país que aqui represento.


Com a minha presença, pretendo testemunhar o meu apreço pela acção desenvolvida, há já mais de uma década, pela vossa Associação, num incansável e continuado esforço, de divulgação da cultura portuguesa em França, especialmente da literatura. Bem hajam os promotores deste desígnio e todos os que concorrem para a sua realização.

Neste dia de aniversário da Europa, é com particular prazer e redobrado simbolismo que participo na sessão de abertura do debate dedicado ao tema “Europa: unidade e diversidade cultural”. Que melhor forma de festejar a grande aventura da construção europeia do que evocar, através do diálogo, os fundamentos últimos em que assenta a viabilidade deste projecto comum ? Que melhor forma de começar a reflectir sobre esta questão do que dar-lhe prévia expressão prática e ilustração viva ?


O facto de estarmos aqui reunidos para dialogar, é um exercício que, por si só, acena a toda a história intelectual do ocidente. O facto de nos propormos reflectir sobre nós próprios, sobre o que nos une e distingue, conscientes de que a nossa identidade é feita do confronto com a alteridade, fala por si. Também o facto de a língua e a cultura serem o que temos de mais próprio revela, já de si, uma matriz comum, pre-figurando a temática que está em discussão e que nos traz aqui.


Que o Tratado de Roma seja omisso quanto a questões culturais e que só em Maastricht, depois de realizado o Mercado Único e de lançadas as bases da União Económica e Monetária, tenha sido introduzido um novo título relativo a esta matéria, composto parcimoniosamente de um artigo único, não nos deve induzir em erro, levando-nos à conclusão precipitada de que a Europa fez tábua rasa da cultura. Penso que, ao invés, a inclusão de matérias culturais no âmbito dos Tratados fundadores apenas numa etapa já avançada da União Europeia só pode ser reveladora do seu carácter absolutamente ímpar.

Por outras palavras, constituiu premissa e condição de possibilidade do projecto europeu a certeza de um património cultural comum, constituído por um conjunto de ideias e valores partilhados. Sem eles, a construção europeia, como a entendemos, seria destituída de fundamento e de horizonte, desprovida de significado.


O elemento mais definido da diversidade cultural europeia é o da variedade de línguas em que os seus povos se exprimem. Mas poderíamos também citar, a título de exemplo, as suas artes e tradições, a sua literatura, a sua gastronomia, a sua organização política, as suas cidades, os seus mundos rurais, a sua identidade, tributária de uma história passada e de um projecto de vida futura.


Foi esta fascinante diversidade, cultivada desde os alvores da história da Europa, e a unidade subjacente, que os autores do Tratado de Maastricht sentiram a necessidade de acautelar, ao introduzir nele a seguinte disposição: ”A Comunidade contribuirá para o desenvolvimento das culturas dos Estados-membros, respeitando a sua diversidade nacional e regional, e pondo simultaneamente em evidência o património cultural comum” (n.º1 do artigo 151.º).


Dois factores explicam a necessidade desta inclusão tardia: por um lado, a aceleração do processo de globalização que, com a sua dimensão planetária e a sua perspectiva economicista, tende a favorecer a uniformização e a massificação em detrimento da diversidade; por outro, a própria realização do Mercado Único no seio da Europa, susceptível de levar ao esquecimento das especificidades dos “bens e serviços culturais” e de conduzir à sua assimilação a uma qualquer outra mercadoria ou actividade terciária.

Todos sabemos que a cultura, sendo criação, pressupõe uma liberdade total, avessa ao dirigismo do Estado. Isto não implica, no entanto, que o Estado não tenha responsabilidades no apoio à cultura. No quadro do projecto europeu, penso mesmo que os Estados nacionais têm obrigação de apoiar iniciativas que fomentem o conhecimento das culturas europeias, promovam a aprendizagem de línguas, estimulem projectos de animação inter-cultural e que ponham em evidência o papel insubstituível da cultura na construção europeia.


Também a este título, a vossa iniciativa, pelos seus propósitos, constitui a concretização de uma certa ideia da Europa e tira partido das potencialidades da sociedade de informação, aproveitando as facilidades que a globalização propicia.

Se a estabilidade da construção europeia depende da nossa capacidade de nos mantermos unidos em torno de um projecto comum, o seu êxito dependerá, em grande medida, da nossa capacidade de conciliarmos esse projecto comum com a nossa própria diversidade.

A história cultural da Europa é uma sucessão de intercâmbios entre os seus povos e de contactos com as civilizações do mundo inteiro que nem os tempos de guerra e conflito conseguiram interromper.


Cultura e comércio foram duas realidades indissolúveis que mutuamente se sustiveram ao longo dos séculos, alimentando a formação da identidade europeia e contribuindo para a sua afirmação.


Vivemos hoje tempos de transformações e mudança. A nossa época é marcada por duas tendências contrárias: por um lado, nunca o acesso aos outros (a outras línguas, outros povos, outras nações) foi tão facilitado, nunca a abertura foi tão grande, graças às potencialidades dos novos meios de comunicação, ao encurtamento das distâncias e à aceleração do tempo; por outro, nunca a galopante afirmação do mesmo, do igual e do uniforme esteve tão massivamente presente.


Há que responder com determinação aos reptos deste tempo novo. Estou convicto de que a época em que vivemos, sendo de charneira, é também de Renascimento.


No século XVI, os portugueses rumaram para o Atlântico e trouxeram o mundo à Europa; depois, ao sabor das viagens marítimas e das descobertas, a Europa foi-se disseminando pelo mundo. Foi pelo mar que a Europa unificou o Mundo e se tornou aquilo que é: universal. Portugal orgulha-se de ter iniciado essa aventura capital da história humana, que fundou a idade moderna.

No século XVIII, os Europeus descobriram a universalidade do Homem, da razão e do saber, erigiram a igualdade e a liberdade em princípios universais. À França coube o papel de mentor desta revolução que conduziu a uma nova ordem económica, social, política e cultural. Foram dois ciclos complementares de “universalização”, de que a nossa aldeia global é tributária. Mas foram também dois momentos excepcionais de transformação e mudança.

Fiel a esta herança, também a Europa precisa de novos lugares de renovação, de foros de discussão e diálogo, de homens de cultura, de mentes visionárias e inovadoras, que, em conjunto, dêem novo rumo e sentido ao seu viver colectivo.


Iniciativas como a que nos traz aqui hoje constituem um promissor contributo para a construção conjunta da Europa que queremos fazer vingar, uma Europa apostada na preservação da diversidade das suas línguas, culturas e tradições, voltada para os contactos e intercâmbios entre os seus povos e cidadãos, uma Europa da proximidade, respeitadora do outro e da sua diferença, consciente do seu património cultural comum, orgulhosa da infinita variedade das suas manifestações.


Por uma feliz coincidência, celebra-se hoje o dia da Europa e o Ano das línguas. Não podia haver melhor augúrio para o sucesso dos vossos trabalhos.


Muito obrigado a todos.