Visita ao Hospital Miguel Bombarda

Lisboa
16 de Maio de 2001


A minha presença neste prestigiado Hospital pretende ter um duplo significado: por um lado contribuir para a sensibilização das questões relacionadas com a saúde mental, por outro, dar conta de algumas reflexões sobre a Saúde em Portugal.

Em primeiro lugar gostaria de deixar um expressivo sinal de reconhecimento público pela intervenção das pessoas e das entidades responsáveis pela melhoria do sistema de saúde mental.

É o caso deste Hospital que, há mais de século e meio, desempenha um papel central na prestação de cuidados.

Compreendo, porém, a insatisfação de muitos técnicos e investigadores, e também das famílias, perante os progressos limitados que se verificam, em especial na integração destes cuidados no âmbito geral dos serviços de saúde e na sua relação com a comunidade.

Penso que o tema da saúde mental é, provavelmente, dos mais dramáticos e, também, dos mais fascinantes, que seduziu outros saberes, como as ciências sociais e as jurídicas.

As últimas décadas do século XX trouxeram-nos progressos decisivos no esclarecimento e no tratamento de doenças chamadas físicas.

Observámos melhorias significativas na luta contra o cancro, avançou vertiginosamente o conhecimento da genética, os ganhos em saúde pública são visíveis nos países desenvolvidos, embora tenham surgido novos desafios, sendo o mais expressivo e dramático o Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.

A chamada doença mental, também ela com novos problemas, como os decorrentes da toxicodependência, permanece como uma das áreas da ciência e do conhecimento mais complexas.

Pela multiplicidade dos seus aspectos, esta área obriga-se a combinar valores éticos e culturais, a estudar as mudanças socio-demográficas e o processo de transformação do papel protector e socializador dos mecanismos tradicionais de integração social, a compreender os factores de fragilização que ameaçam grupos mais vulneráveis, a conhecer a complexidade jurídica das situações.

Tudo isto a par, naturalmente, da evolução da ciência básica. Temos todos de reconhecer que não é fácil a vossa missão.

Quando, num gesto que se tornou num símbolo e que V. Exas. bem conhecem, Pinel desce às celas de Bicêtre e desacorrenta os loucos, o significado foi de libertação, mas também de exibição. Desde então, a ciência procura dissecar e explicar o enigma da loucura, que nos interpela nos limites da natureza humana.

E, se no princípio do século XX, o doente mental era atirado para o asilo psiquiátrico, cem anos volvidos, persiste ainda algum estigma social.

Constato, porém, que vários acontecimentos o pretendem saudavelmente esbater: debates envolvendo profissionais, doentes e famílias; experiências inovadoras em saúde mental, nomeadamente na reabilitação psicossocial; projectos de formação profissional, para além, naturalmente, dos valiosos contributos dos congressos científicos.

Outra tendência que segui atentamente foi a que se expressou na convicção, que dominou muito do pensamento nos anos 70, de que o problema se resolveria com o encerramento dos hospitais psiquiátricos.

Penso que a integração social forçada leva a novas formas de exclusão, por vezes bem mais dramáticas e discriminatórias.

Socorro-me a este propósito, se me permitem, de um psiquiatra italiano que dizia que os doentes saíram pela esquerda - os hospitais públicos - para entrarem pela direita - as clínicas privadas.

Os mecanismos de rejeição social começam, muitas vezes, pelos familiares mais próximos e, quantas vezes, somos confrontados com casos de terríveis dramas familiares, pela ausência ou debilidade de alternativas institucionais adequadas.

Por isso me parece muito interessante a experiência deste Hospital, de desenvolvimento de alternativas à hospitalização, de diálogo interdisciplinar, de forma a permitir o estudo e o tratamento clínico de cada caso específico.

Aprecio, ainda, a vossa atenção pelo desenvolvimento científico nestas áreas, bem como as vossas iniciativas, nomeadamente os cuidados e as cautelas com os doentes crónicos e com a desinstitucionalização.

Penso que é legítimo esperar que o século XXI vença a incompreensão e a opacidade da doença mental, e que a ressociabilização atravesse todos os sectores da sociedade, desde a pobreza até aos agora chamados doentes mentais. Como é legítimo esperar, também, que melhore o desempenho do nosso sistema de saúde.

Não escondo o interesse e a preocupação com que sigo os problemas relacionados com a Saúde em Portugal. Ao longo dos últimos anos visitei muitos hospitais, centros de saúde, unidades de investigação e de ensino, ouvi os profissionais e, naturalmente, os destinatários do sistema de saúde.

Constatei, aliás, nessas ocasiões, ouvindo os especialistas, que não havia significativas diferenças de opinião quanto ao caminho a seguir na modernização do sistema de saúde.

Disse, então, que era chegado o momento de utilizar os diagnósticos técnicos preparados com elevada qualidade e consenso.

A complexidade dos problemas, que eu sei reconhecer, exige, por isso mesmo, uma forte sustentação para a mudança.

E aqui requer-se, talvez ainda mais do que em outros áreas, uma grande clareza e uma grande responsabilidade.

Uma grande clareza que permita criar, ou reforçar, uma relação de confiança muito forte e muito alargada, que faça de cada cidadão um saudável cúmplice da política de saúde.

Uma grande responsabilidade, porque manifestamente esta não é uma matéria que se esgote no Governo e no curto prazo.

É uma responsabilidade que deve ser partilhada, que não prescinde dos partidos, naturalmente, mas ainda das associações de doentes, dos movimentos de cidadãos, de organizações não governamentais.

Porque, quando estudamos as políticas de saúde dos últimos vinte e cinco anos assistimos a alguns sucessos e a muitos fracassos, o que nos deve levar a uma lição de modéstia e de determinação, sem nunca esquecer o que aconteceu e porquê.

Permitam-me que destaque apenas dois aspectos presentes nesse conjunto de reflexões: as expectativas dos cidadãos e a efectividade das políticas.

Em primeiro lugar, as expectativas dos cidadãos.

Quando, em 1979, se deu corpo normativo ao Serviço Nacional de Saúde, ele era já o resultado de contribuições técnicas e políticas muito significativas que vinham, pelo menos, desde a instauração da democracia em 1974.

Esse primeiro ciclo de política de saúde permitiu, a par com o desenvolvimento económico e social, um conjunto de realizações notáveis na saúde dos portugueses, através do crescimento da cobertura da população, da melhoria do acesso e do aumento do número de profissionais de saúde.

Mas o sistema de saúde não tem estimulado uma cultura de maior proximidade e responsabilização dos cidadãos.

Para tanto, é necessário que os princípios orientadores e a principal preocupação dos decisores políticos se devam situar no estudo e na resolução dos principais problemas dos cidadãos que têm necessidade de aceder aos cuidados de saúde.

Depois, os cidadãos necessitam de informação para que, de uma forma responsável, possam escolher, sem barreiras injustas, os serviços de saúde. Mais do que em qualquer outra área, na Saúde, a provedoria ou a representação e a satisfação dos consumidores são instrumentos fundamentais de cidadania.

Os problemas centrais do sistema de saúde situam-se, não só na sua própria organização, mas também na sua relação com os cidadãos. Por isso, repito que, para além dos mecanismos de acompanhamento já iniciados, a intervenção das autarquias pode ser determinante para o êxito de um processo de mudança.

As autarquias, em geral, possuem um conhecimento adequado das realidades locais, uma ligação muito próxima com a comunidade e com as suas instituições sociais. Podem, assim, contribuir para soluções de maior efectividade, num sector onde, cada vez mais, são necessárias escolhas.

A segunda reflexão diz respeito à efectividade das políticas.

O sistema de formação tarda a responder às reais necessidades de técnicos do país. Este é um problema da maior gravidade, que resulta da debilidade das políticas de ensino e de formação, em especial no planeamento das necessidades de recursos humanos para o Serviço Nacional de Saúde. Debilidade de quem realiza o planeamento e de quem o influencia.

Não quero, porém, deixar de assinalar os passos positivos que, nas escolas médicas, de enfermagem e de tecnologia, estão a ser dados para minimizar, a prazo, a dimensão deste problema.

Quero, aliás, repetir que esta situação representa também um inqualificável cerceamento de direitos, ao frustrar, pelo numerus clausus, a expectativa de milhares de jovens, a quem é extraordinariamente dificultado o acesso a cursos na área da saúde.

Em relação ao planeamento dos investimentos, mantém-se a situação penosa que se verifica, em especial, nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, quer em relação ao acesso, quer em relação às condições físicas de atendimento e de exercício profissional.

As escolhas, aqui também, devem basear-se na racionalidade que, em particular, os estudos epidemiológicos e económicos nos fornecem, e não em injustificadas pressões locais.

Um outro aspecto da efectividade das políticas diz respeito à modernização da administração pública da saúde, que deve constituir um passo fundamental das mudanças necessárias.

Frequentemente vemo-nos confrontados com uma constrangedora realidade dual: pólos de inovação tecnológica e entidades prestadoras de cuidados de visível qualidade convivem com modelos de organização hospitalar burocráticos e centralizadores.

Algo de semelhante se passa em outras unidades do Serviço Nacional de Saúde, com deficientes processos de responsabilização das hierarquias técnicas e da gestão e da confiança e motivação dos profissionais.

Embora as dificuldades a vencer sejam muitas, estou certo do que vamos intensificar o nosso trabalho para que os grandes valores que estiveram presentes na criação do Serviço Nacional de Saúde - em especial a equidade no acesso e na utilização de cuidados - se tornem efectivos.

Por isso, o apelo que tenho feito mantém-se: sejamos exigentes connosco, sejamos ambiciosos com Portugal.