Sessão comemorativa dos 25 Anos do Poder Local Democrático

Coimbra
20 de Maio de 2001



O poder local é um elemento constitutivo da Democracia Portuguesa, em cujo processo de formação interveio. Está na sua génese, ofereceu-lhe legitimidade e capacidade realizadora, garantiu-lhe estabilidade.

Este papel só foi possível graças ao contributo dos partidos políticos e do generoso empenhamento pessoal de milhares e milhares de portuguesas e portugueses em todos os níveis da actividade autárquica, da freguesia ao município. Nunca será de mais prestar-lhes este reconhecimento, hoje como no passado. Faço-o também em termos de agradecimento pelo muito que, independentemente das sua convicções políticas, fizeram no decurso do meu primeiro mandato, de cooperação efectiva com o Presidente da República.

Quero também saudar a Associação Nacional de Municípios Portugueses, promotora desta sessão, cumprimentando os seus corpos dirigentes e de forma especial o Eng.º Mário de Almeida que tem presidido aos seus destinos na última década.

Quero pôr em destaque, como por diversas vezes o tenho feito, e em diferentes qualidades, o trabalho altamente meritório da Associação em defesa dos municípios portugueses, do seu lugar na democracia portuguesa e do seu papel no desenvolvimento do País. Deu-lhe em devido tempo o meu contributo, quando, como eleito local, procurei dar ao desenvolvimento local um sentido estratégico polarizador do desenvolvimento urbano, essencial para o país.

É sempre com o maior prazer, como sabem, que participo nas celebrações da Associação Nacional de Municípios, que constituem oportunidades para reflectir convosco sobre os desafios do poder local. Respeitarei, se me permitem, essa tradição.

Senhoras e Senhores Presidentes de Câmaras,

O poder local esteve na primeira linha do combate ao atraso económico, formou e integrou quadros políticos, criou uma instância nova de administração pública. A autonomia local inscreveu-se, como referi, no património da democracia, ao qual juntou factores de eficácia e de consenso.

Existe hoje uma consciência generalizada de que o poder local entrou numa nova fase de responsabilidades, a que alguns têm chamado tempo do “software”, do qualitativo. Não direi que é uma fase mais exigente, porque sei quanta tenacidade e engenho despenderam os autarcas nas infra-estruturas, no “hardware”. Mas há mudanças que estão em curso tanto nos objectivos como nos instrumentos e estratégias do poder local.

Novas competências surgem no horizonte da acção municipal, implicando capacidades também novas - financeiras, humanas, técnicas e logísticas. Um novo rigor no planeamento torna-se condição fundamental. Uma nova ousadia é requerida também na concretização da complementaridade e partilha de recursos e equipamentos. Há que adequar a orgânica do município e reforçar as suas relações com os munícipes. Finalmente é preciso olhar de frente para o problema do ordenamento que, se não for resolvido rápida e satisfatoriamente, compromete o presente e o futuro da nossa sociedade.

Abordarei estes desafios, seriando questões a partir de um tema cada vez mais reconhecido como uma prioridade – a descentralização – ou seja: as novas competências para os municípios; os meios da acção municipal; a racionalização dos equipamentos; a estrutura dos órgãos do município; a atenção ao território.


A prioridade da descentralização

Todos as análises e discussões travadas em torno da reforma do Estado convergiram na crítica a uma Administração excessivamente pesada e centralizada. O debate em torno da regionalização teve como resultado uma generalizada convicção de que a descentralização tem de constituir uma prioridade nacional, um dos vectores essenciais da Reforma do Estado para uma República Moderna.

A Administração Central tem de dar o exemplo, de forma decidida. É necessário adoptar um plano coerente de desconcentração e de racionalização dos serviços periféricos. Mas descentralizar é mais do que isso, é transferir competências para outros órgãos, mais próximos dos problemas e dos cidadãos. Certamente para os municípios, mas também para o plano da associação de municípios, ou para um escalão intermédio que recolha tanta experiência e racionalização acumuladas.

Esta operação, cada vez mais sentida como decisiva, tem que ser organizada de forma concertada. É possível que tenha que se avançar por pequenos passos, de forma gradual, mas o que não se pode é ficar paralisado ou tomar medidas descentralizadoras de forma avulsa. Por isso se torna mais imperioso avaliar a experiência adquirida e ensaiar soluções mais ousadas.


Novas competências para os municípios

Dispomos de um compromisso político muito amplo no sentido de que a descentralização deve prosseguir. Está igualmente consagrado um princípio fecundo, para reger a descentralização, o princípio da subsidiariedade.

Os municípios (e as associações de municípios) estão hoje confrontadas, cada vez mais, com a necessidade de intervirem em áreas de tipo qualitativo, indispensáveis para a qualificação dos seus territórios, que precisam de ganhar inteligência e competitividade. Só um novo quadro de responsabilidades pode permitir realizar este novo patamar de exigência.

Cabe então perguntar: porque é que a descentralização não avança? Porque a Administração Central resiste a alienar competências? Porque as próprias Câmaras municipais temem as transferências de competências, procurando acautelar os meios financeiros correspondentes?

Esta é sem dúvida uma precaução compreensível. Considero que o reforço da capacidade financeira dos municípios deve ser um processo gradual e natural, tendente a aproximar a parte dos municípios na despesa pública dos níveis de outros países europeus, e a sanear a actual estrutura da receita muito dependente da tributação do imobiliário e dos fundos comunitários.

Mas não são apenas os meios financeiros que estão porventura ou provavelmente em causa no aparente pouco entusiasmo dos municípios em receber novas competências.

Meios financeiros que, sejamos claros, não poderão ser cada vez mais para o mesmo.

Isto leva-me a uma nova questão.


Meios humanos e modelo de gestão

Todos os indicadores apontam para um nível elevado de carências de qualificação no potencial humano das Câmaras. Certamente que há vários factores acumulados que explicam que as autarquias tenham chegado aos dias de hoje com um quadro de funcionários relativamente extenso para um nível de qualificação médio relativamente baixo.

Mudar esta situação impõe um esforço enorme na formação do pessoal existente, no recrutamento de quadros e provavelmente também no modelo de gestão do próprio município.

Falo-vos com a autoridade retirada da experiência: a legitimidade e a responsabilidade políticas dos autarcas, recebidas das eleições, não se transmutam em capacidade de gestão. Com dedicação, empenhamento pessoal, alguma imaginação e, ao fim de algum tempo, prática do dia a dia, podem os autarcas suprir carências e assegurar com maior ou menor êxito a estabilidade do barco municipal. Mas quem garante que não há métodos de navegação menos dispendiosos e mais eficazes e expeditos?

A rotina é, em muitos aspectos, pesada de mais. O salto indispensável, que só a inovação permite, exige que se dê entrada nos municípios à auditoria sobre gestão administrativa, a exemplo do que sucede não só nas empresas e noutras organizações privadas como nalguns institutos públicos. Todos teremos a aprender com a radiografia da situação e propostas de mudanças, abrindo as máquinas municipais ao diagnóstico especializado, como já tem acontecido.

Este tema da racionalização do funcionamento da máquina municipal leva-me a ponderar uma 3ª questão.


A racionalização dos equipamentos

São os Senhores Presidentes de Câmara quem mais tem presente a necessidade de aproveitar bem a oportunidade dos fundos comunitários para o desenvolvimento. Sabemos que eles podem ter um limite temporal, pelo menos no volume actual. Esse facto também deve intervir no cálculo do investimento a concretizar. Porque, como os Senhores tão bem sabem, há despesas de manutenção no futuro. Mais do que nunca, não podemos deixar de fazer contas.

Fazer contas é planear, meus amigos. É racionalizar o investimento, é acordar com os outros municípios (ao nível da NUT, da associação de municípios) os equipamentos que só são rentáveis a partir de um certo número de utentes potenciais. Em suma, fazer contas, é ganhar escala, pensar ao nível da rede, pensar e agir no arquipélago e não apenas na ilha.


Senhoras e Senhores Presidentes de Câmara

Gostaria, por fim de abordar, também de forma sintética, uma 4ª questão.


Orgânica municipal

A Assembleia da República interrompeu a apreciação desta questão, depois de ter verificado a existência de divergentes perspectivas, que aliás já se tinham manifestado na revisão constitucional de 1998. É provável que na decisão de adiar o prosseguimento da discussão e a busca de um consenso tenha pesado o facto de uma alteração tão substancial no regime de eleição, como a que era proposta, não dever repercutir-se na eleições a realizar no mesmo ano.

Independentemente da solução que vier a ser adoptada – manutenção das eleições separadas da Câmara e da Assembleia ou eleição directa só da Assembleia, a exemplo do que já se passa para a eleição dos órgãos da freguesia – entendo que há que proceder a uma clarificação e reforço dos poderes da Assembleia, sobretudo no que respeita às suas atribuições de fiscalização do órgão executivo.

De facto, alguns dos seus poderes são hoje formulados de forma pouco precisa e a capacidade de os deputados municipais tomarem iniciativas são muito limitadas, o que afecta também a capacidade propositiva do órgão deliberativo.

Por incómodo que possa parecer aos Executivos, a dignificação do papel das Assembleia Municipais só pode constituir um factor de reforço da credibilidade e transparência dos municípios e com repercussões positivas na valorização pelos cidadãos do governo local.

Finalmente, e a propósito do envolvimento dos cidadãos na vida municipal, importa reflectir sobre alguns sintomas de afastamento, no quadro de uma atenção redobrada sobre o sistema político e a sua relação com a sociedade em geral. Sou dos que entendem que é fundamental reforçar o papel dos órgãos de intermediação, como sucede de forma exemplar nalguns países europeus, designadamente, as associações voluntárias que nos domínios cultural, social, económico e desportivo intervêm nos planos local e regional.

Gostaria, por fim de referir uma questão integradora que constitui hoje sem dúvida um dos mais sérios desafios ao poder local.


O ordenamento

Portugal precisa de espaços urbanos equilibrados, com as suas áreas rurais circundantes revitalizadas, em suma territórios atractivos, quer em termos de qualidade de vida, quer em termos estritamente económicos. É por isso que a questão do ordenamento é inadiável.

Preocupámo-nos com a habitação. Era evidentemente necessário. Mas temos que nos preocupar com a logística, com a implantação dos equipamentos utilizados pelas indústrias e serviços.

Ora, devo dizer-vos a este respeito que por vezes me parece que uma perspectiva de pura competição entre regiões não foi ainda abandonada, com o que só perdem os territórios a sua capacidade competitiva.

Neste domínio mais do que nunca é visão estratégica que se pede aos autarcas, como aliás se pede ao Governo Central e às instâncias europeias, porque a valorização dos territórios impõe uma articulação consistentes entre estes vários níveis.


Em síntese, e é a altura de a fazer Senhoras e Senhores Presidentes de Câmara, meus amigos (é um amigo que vos fala), eu gostaria de deixar aqui sublinhado quanto importa:

Primeiro – é preciso reforçar a capacidade institucional dos territórios. De facto precisamos de organizações municipais e intermunicipais que assegurem uma intermediação consistente com o Centro do sistema administrativo e político. Precisamos de instituições que saibam realizar consensos, ultrapassar divergências e promover a racionalidade das decisões.

Segundo - é necessário reforçar a capacidade de inovação dos territórios. Não me refiro apenas á modernização tecnológica, mas sobretudo à capacidade de antecipar a mudança, de correr riscos, de aprender uns com os outros, daquilo a que podemos chamar “inteligência colectiva”.

Terceiro – é incontornável a necessidade de reforçar a identidade do território. Mais do que vender uma imagem, que em muitos casos já não quer dizer muito, há sobretudo que saber cuidar das heranças integradas em novas realidades e reforçar o sentimento de pertença e de partilha e a auto-estima regional.

Qualquer destes caminhos só pode ser trilhado com as autarquias.

Os problemas que temos pela frente se não forem resolvidos - a meu ver de forma mais participada e legitimada - pelos actores locais, terão de ser resolvidos de fora para dentro e de cima para baixo. Ora, há todos os motivos para acreditar que há capacidade para propor e ensaiar soluções ajustadas e concertadas, de baixo para cima e de dentro para fora.

Este é um ano de eleições autárquicas, uma ocasião também para avaliar percursos e fazer apostas no futuro. Desejo a todos e aos respectivos concelhos as maiores felicidades. Espero sinceramente que dos confrontos que irão ter lugar possam resultar perspectivas inovadoras sobre os desafios desta agenda que está hoje sobre a mesa dos municípios portugueses.

Viva o poder local.

Viva Portugal.