Homenagem Nacional a Amália Rodrigues

Lisboa
08 de Julho de 2001


Cumpre-se, hoje, a decisão tomada, por unanimidade, pela Assembleia da República de conceder honras de Panteão Nacional a Amália Rodrigues. Esta é uma grande homenagem nacional, prestada em nome do Povo português, que reconheceu em Amália a altura de um símbolo colectivo.

A voz de Amália, essa voz criadora, transformou-lhe a vida em destino. Amália fez da sua voz uma pátria, um bilhete de identidade, dela e nosso, um passaporte que a levou, que nos levou, a todo o lado. Extraordinária vida a dela, a primeira mulher a entrar no nosso Panteão, que alcançou ser ouvida em todo o Mundo.

Iniciada num bairro popular de Lisboa, com raízes beirãs, a sua biografia é a história da fidelidade ao coração, à voz, à vocação, ao fado. Talvez por isso ela gostasse tanto de acentuar o que havia de involuntário e, por isso mesmo, de fatal no que lhe foi acontecendo. Isso que prodigiosamente lhe foi acontecendo constituiu a sua carreira, que durou mais de cinquenta anos e foi das mais gloriosas do século XX.

Amália conheceu o sucesso absoluto mal começou a cantar em público – primeiro, em Portugal; depois, no estrangeiro. Cantou nas mais míticas salas de espectáculo de todos os continentes. Deu ao Fado uma ressonância universal. Foi aclamada, idolatrada, comparada aos maiores nomes de sempre. Tudo o que fez, marcou, mesmo no cinema ou no teatro. Há versos da sua autoria que são belíssimos. Quem alguma vez viu Amália num palco não esqueceu mais o seu carisma, a sua entrega total ao público, feita de mistério, de generosidade, de dádiva.

No Retiro da Severa ou no Café Luso, em Tóquio ou em Paris, em Nova Iorque ou em Moscovo, em Telavive ou em Beirute, no Rio de Janeiro ou em Roma, por onde passou, foi provocando adoração.

Houve gente que aprendeu a falar português apenas para entender as palavras dos seus fados. Figuras tão prestigiadas e diferentes como Orson Welles, Yehudi Menuhin, Marguerite Yourcenar, Sofia Loren, Vinicius de Moraes, Rodolf Nureyev, Pedro Almodóvar falaram dela com um apreço excepcional. Recebeu, ao longo dos anos, os mais prestigiados prémios e as mais altas condecorações. Nos anos 70, a Unesco editou um disco com interpretações de Amália, Maria Callas e John Lennon.

No entanto, e apesar desta carreira internacional única, sentimos que, ao falar de Amália, estamos a falar de alguém que permaneceu sempre próximo de nós. Na casa da Rua de S. Bento, no campo onde colhia flores, nas ruas de Lisboa, encontrávamos a Amália de sempre, com a sua grande inteligência intuitiva, a sensibilidade apuradíssima, a sua naturalidade desarmante, a fidelidade à amizade, o seu bom gosto.

Nos momentos de glória ou nos momentos difíceis, vimo-la sempre igual a si mesma – livre, simples e subtil, cultivando uma irónica distância em relação a si própria, mas possuindo a consciência exacta de quem era e do que representava.

A obra que nos legou é, ao mesmo tempo, popular e erudita, antiga e moderna, portuguesa e universal. Quando escutamos o “Ai, Mouraria”, com música de Frederico Valério, ou o “Com que Voz”, com música de Alain Oulman; quando a ouvimos cantar os poemas de D. Dinis, Camões, Junqueiro, Régio, O’Neill, Homem de Mello, Mourão-Ferreira, Manuel Alegre, Ary dos Santos e os dela própria, damo-nos conta dos múltiplos e assombrosos recursos do seu talento, das metamorfoses do seu génio trágico. Como todos os autênticos criadores, foi por vezes incompreendida.


Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Estamos aqui reunidos, familiares, amigos, admiradores, músicos que a acompanharam, para honrar a memória de Amália. Fazêmo-lo, com a saudade que ela disse ser toda dela, com gratidão, com reconhecimento.

Saudade da sua presença tão forte. Gratidão, pelo que nos deu – nos continua a dar - de encantamento, de beleza, de revelação. Reconhecimento, pelo muito que prestigiou Portugal e projectou a nossa cultura no Mundo.

A Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, que, em vida, por ocasião da homenagem prestada na Expo’98, lhe anunciei, e com que agora a condecoro, a título póstumo, é um testemunho desse reconhecimento.

Neste fim de tarde de Julho, o mês do seu nascimento, não muito longe do rio que foi espelho da sua voz, frente a este Panteão que ficará depositário da sua memória, de uma memória que não pertence a ninguém, particularmente, porque é de todos, neste momento de homenagem, temos uma certeza.

A certeza de que os grandes artistas como Amália não morrem. Vivem pela e na obra que legam. Quando, nas gravações que nos deixou, ouvimos a voz genial de Amália, sentimos de novo a sua presença, com uma força e uma intensidade que a tornam viva. Por isso, podemos dizer que a sua lembrança prevalecerá sobre o esquecimento, pois, como a sua voz, pertence ao futuro. Ao entregá-la a este templo civil da memória, é às gerações futuras que a entregamos. O canto de Amália será sempre um apelo, uma descoberta – a nossa própria descoberta. Em nome de Portugal, obrigado, Amália!