Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão de Abertura do Seminário Internacional "Culturas e Segurança"

Lisboa
08 de Outubro de 2001


Quero, em primeiro lugar, agradecer o amável convite para participar na sessão de abertura deste seminário internacional sobre o tema “Culturas e Segurança”, que aceitei com muito prazer.

Quero também cumprimentar a Inspecção Geral da Administração Interna e, em particular, o Dr. António Rodrigues Maximiano, pela sua iniciativa, que considero tão interessante e cuja oportunidade está agora ainda em maior evidência.

Com efeito, o choque brutal dos sinistros atentados terroristas contra o World Trade Center e o Pentágono trouxe para o centro das nossas preocupações, tanto na política internacional, como na política interna, os problemas da segurança e, de certa maneira, também os do convívio plural das culturas.

Desde logo, devemos reconhecer que os atentados, com uma escala e uma violência sem precedentes, provocaram um sentimento difuso de ansiedade, ao qual devemos dar uma resposta firme. Essa resposta passa não só pelo nosso empenho redobrado na luta contra o terrorismo internacional, lado a lado com os Estados Unidos e todos os nossos aliados, como por uma acção decisiva contra a complacência e o laxismo, intoleráveis no domínio da segurança. Essa resposta deve responsabilizar todos, o Estado e a sociedade, conscientes da ligação indissolúvel entre a liberdade e a segurança.

Do mesmo modo, os atentados de Nova York e de Washington podem criar tensões com as minorias e com outras culturas. Não devemos esconder que a finalidade última desses actos bárbaros quer provocar uma oposição total e criar um fosso irreparável entre culturas e religiões. Essa polarização extrema teria como consequência a guerra, no plano internacional, e a perseguição das minorias, no plano interno. Sob pena de nos enredarmos na teia que o terrorismo tece, temos de recusar, sem reservas, essa lógica divisionista e opor à cultura de violência do terrorismo, a cultura de tolerâncias das democracias modernas.

É nossa obrigação impedir que se instale, na nossa sociedade, um circulo vicioso. O terrorismo provoca maior insegurança, a qual, por sua vez, se traduz num atitude de receio e hostilidade perante as minorias, cuja crescente exclusão as pode, como sabemos, atrair para o extremismo e a violência.

Esse circulo vicioso, tão perigoso para a coesão social, como para a nossa liberdade e a nossa segurança, pode entrar em movimento a partir da insegurança, da perseguição das minorias ou da sua exclusão. Não podemos aceitar esse risco, sem pôr em causa os nossos valores fundamentais.

Nas últimas décadas, com a institucionalização da democracia, a nossa sociedade mudou profundamente. Os valores da liberdade, do direito e da tolerância tornaram-se parte integrante da nossa identidade nacional e de todos os projectos políticos para o nosso futuro colectivo.
Essa mudança radical na cultura política tradicional portuguesa deve servir como ponto de partida para confrontar uma outra mudança profunda. De facto, Portugal, país de emigrantes e nação repartida por todos os continentes, passou a ser país de imigração, destino de pessoas vindas de todas as partes do mundo, do Brasil à China, da Ucrânia a Cabo Verde, do Marrocos a Timor.

A nossa sociedade, a mais homogénea de todas as comunidades nacionais europeias, recebe, agora, um número crescente de imigrantes que formam um mosaico de múltiplas nacionalidades, de diferentes religiões, de culturas distintas. À partida, a força da nossa identidade histórica e o espirito da democracia dão-nos confiança quanto à capacidade portuguesa de receber e integrar os imigrantes e as minorias.

Não obstante, todos conhecemos casos de discriminação e de exclusão, e até de racismo e de perseguição violenta de grupos minoritários, mesmo de velhas minorias, integradas na comunidade nacional.

Essa mudança na nossa sociedade, que a torna mais plural e diversa e, por isso, mais rica, impõe-nos um desafio. Esse desafio refere-se ao modo como devemos receber e inserir os imigrantes na sociedade portuguesa e construir uma cidadania moderna e aberta.

Gostaria, a esse propósito, de partilhar convosco, três breves reflexões. A primeira diz respeito ao principio essencial da tradição humanista, inseparável da nossa história, que assenta no respeito pela dignidade da pessoa humana.

Esse principio exige não só um comportamento civilizado de todos e cada um perante os outros, como o reconhecimento geral da titularidade de direitos cívicos, económicos e sociais a todos os indivíduos, os que são e os que não são cidadãos portugueses, mas que vivem e trabalham em Portugal. Esses direitos cívicos, económicos e sociais têm como limite apenas o respeito pela lei e a ordem pública. Nesse sentido, no nosso Estado de direito, não há indivíduos sem direitos. Esta titularidade dos direitos fundamentais inclui os imigrantes e os membros de minorias culturais ou religiosas que não são titulares da cidadania portuguesa.

A segunda reflexão refere-se ao principio fundamental das democracias pluralistas ocidentais, assentes no valor universal dos direitos humanos e, em consequência, dos direitos das minorias. Por certo, nenhuma democracia moderna recusa a legitimidade das particularidades culturais ou religiosas de qualquer minoria, desde que não ponham em causa a unidade da sociedade, nem exprimam valores contrários aos valores democráticos. O reconhecimento dessas particularidades é condição da sua boa inserção na nossa sociedade, e uma marca da nossa civilização. Seria, por exemplo, absurdo, não reconhecer, em pé de igualdade, a liberdade de culto religioso. Do mesmo modo, qualquer minoria nacional deve poder exercer a liberdade de ensino para assegurar a aprendizagem da sua língua e da sua história, em complemento ao curriculum educativo português.

Todavia, nenhum indivíduo deve ser forçado a incluir-se numa minoria, contra a sua vontade.

A terceira e última reflexão trata da nossa capacidade de integração. Qual é o sentido do nosso projecto nacional? Temos capacidade e, sobretudo, vontade de receber na comunidade nacional um número crescente de indivíduos doutras origens, pertencentes a minorias religiosas ou culturais?

Pela minha parte, entendo que todas as sociedades modernas não só são, por definição, multiculturais, como têm de ser abertas, sob pena de se encerrarem num ciclo de decadência.

Essa abertura começa com a abertura da comunidade nacional à integração não apenas económica e social, mas também cívica e política, de indivíduos de outras origens nacionais. Os que escolheram viver connosco e observam os princípios e as leis em que se funda a nossa sociedade e participam na nossa vida colectiva, os que, por sua livre vontade, querem pertencer à nossa comunidade nacional e partilhar connosco um destino comum, têm o direito de aceder à cidadania portuguesa, cumprindo os deveres inerentes.

Insisto nesta matéria, pois entendo dever fazer a pedagogia do espirito republicano da democracia portuguesa, cuja natureza cívica implica o respeito integral pelos direitos de acesso à nacionalidade e à cidadania. Esses direitos obrigam-nos a olhar doutro modo para os outros, para os que ainda não são, mas podem vir a ser nossos concidadãos, portugueses de parte inteira. Esse reconhecimento é, creio, a melhor forma de lutar contra a exclusão, a discriminação e o racismo.

Não há sociedades perfeitas. Temos todos a responsabilidade de dar e de aperfeiçoar o nosso exemplo de civilidade nas relações com os outros, todos os outros. As nossas democracias são sempre obras inacabadas. Por isso, temos todos a obrigação de contribuir a nossa parte para o exercício efectivo dos nossos direitos e para a construção de um espaço público livre e tolerante. A causa da liberdade nunca está ganha. A violência terrorista força-nos a reconhecer as ameaças crescentes, e torna imperativo o nosso combate por uma sociedade justa, onde todos, sem excepção, possam viver em liberdade e em segurança.