Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão de Abertura da Conferência "Diálogo entre civilizações: o contributo das religiões"

Lisboa
20 de Outubro de 2001


Agradeço o convite que me dirigiram para estar presente nesta sessão de abertura da Conferência “Diálogo entre Civilizações: o contributo das religiões”, que se realiza no Ano Mundial para o diálogo das Civilizações. Felicito a Comunidade Islâmica de Lisboa por esta bela iniciativa - tão importante, interessante e útil, sobretudo num tempo em que temos o dever de, por entre as tensões, persistir na abertura dos caminhos do diálogo e da esperança.

Os debates que serão travados, a reflexão a que se procederá e os convidados que acederam participar nesta Conferência dão bem a medida da sua importância e significado. E mostram também a exigência e o pluralismo que foram postos na abordagem de um tema tão complexo.

Falar de diálogo de civilizações é falar de diálogo cultural, político, religioso. É falar ainda do quadro em que esse diálogo se tem de dar e dos grandes princípios que o devem orientar. É, no fundo, falar dos desafios que temos de assumir quando encaramos a responsabilidade, que é a nossa, de fundar o futuro no presente.

Como é sabido, a palavra civilização surgiu na segunda metade do século XVIII e era então indissociável da ideia de progresso. No século XIX, o conceito evoluiu e foi sendo confrontado com o de cultura. Na viragem para o século XX, tornou-se um tema muito presente na cultura europeia. Entre tantos outros, Hegel, Nietzsche, Spengler, Toynbee, Valéry reflectiram sobre ele. Já no século XX, essa reflexão partia da ideia de que as civilizações são mortais e, ao mesmo tempo, da convicção e do medo de que a civilização ocidental estivesse em declínio.

Não podemos esquecer – devendo, pelo contrário, reter essa lição – que o medo do declínio não foi alheio à irrupção dos totalitarismos que asfixiaram a Europa, pensando musculá-la, e a conduziram à catástrofe da II Guerra Mundial e à barbárie do holocausto.

Por detrás destas concepções esteve uma visão determinista, fatalista e finalista da História. A ela devemos opôr a ideia de que não há declínios inelutáveis e de que o futuro permanece sempre em aberto, estando nas nossa mãos a possibilidade e a liberdade de o construir, evitando mesmo o que pode parecer inevitável. A derrota dos totalitarismos mostra isso mesmo.

Presente ao longo dos dois últimos séculos e meio na nossa cultura, este é, todavia, um tema ambíguo, de sentidos plurais, a exigir clarificação. Desde logo, porque a noção de civilização nunca está isenta de um forte conteúdo ideológico.

Quando, por exemplo, assimilamos a caracterização de uma civilização a uma religião dominante estamos, à partida, a fazer uma escolha que não é indiscutível. Assim, não é indiscutível falarmos do Afeganistão, do Irão, da Indonésia, da Arábia Saudita, do Iraque ou de Marrocos como se não houvesse entre esses países, as suas histórias e culturas, diferenças fundamentais; como também não é indiscutível fazer o mesmo a respeito dos EUA, da Rússia, da França, da Polónia, do México ou de Portugal.

Aceitemos, pois, falar de civilizações, tendo presente a arqueologia deste conceito e a história desta palavra. Não lhe demos um uso reducionista, nem a usemos para construir com ela os muros de divisão e do confronto. Sabemos – ou devemos saber – que às diferenças correspondem outras tantas semelhanças e que às divisões correspondem afinidades.

Nos últimos anos, tem-se falado muito de choque de civilizações. Um pensamento milenarista, que tenta adivinhar ou definir o futuro, e é fruto de uma mistura de profetismo medieval e de prospectivismo actual, viu nesse embate de civilizações o traço caracterizador do século que iniciámos. Não é, pois, de estranhar que, para alguns, tal vaticínio tivesse parecido confirmar-se com os atentado terroristas de 11 de Setembro.

O próprio autor da fórmula, Samuel Huntington, que lhe tinha atribuído um significado mais profundo e mais complexo do que aquele com que se vulgarizou, veio prontamente contestar o seu uso para explicar os ataques a Nova Iorque e a Washington. Ainda bem que o fez, porque os ataques terroristas e as acções militares que lhes estão a dar resposta não podem, em nenhum caso, inscrever-se num enfrentamento entre civilizações, culturas, religiões ou “mundos”. Os ataques representaram uma hedionda violação de princípios fundamentais, que são comuns a países e povos de diferentes continentes, culturas e religiões. E a resposta a eles é uma resposta dada, não contra, mas em nome do diálogo de civilizações.

Frente às civilizações, há duas teses extremistas. Há a tese daqueles que acham impossível e vão – ou mesmo indesejável – o diálogo entre elas. Para esses, o que caracteriza uma civilização e lhe dá força é a sua solidão fundamental, o isolamento, a incomunicabilidade. Só isso a faz afirmar-se e sobreviver. Para os defensores desta tese, o choque é inevitável: ou se domina ou se é dominado.

Uma outra tese, de sinal contrário, é aquela que vê na globalização a dissolução das identidades e das diferenças, a via desejável ou inelutável para a homogeneização e massificação do planeta, reduzido a um mero mercado global. Os que assim pensam nunca compreenderão que a abertura de uma cadeia americana de comidas ou bebidas em Moscovo ou em Pequim não significa a abolição das marcas milenares de identidade e de referência, que se expressam nos imaginários e nos sistemas simbólicos dos povos. Para esses, o diálogo reduz-se ao monólogo da uniformização. Qualquer destas concepções extremistas é perigosa, irrealista e, no limite, revela uma pulsão totalitária.

A experiência dos séculos e a sabedoria dos povos mostram-nos que o diálogo entre civilizações e povos, feito na diversidade e no respeito mútuo, é necessário, possível e frutuoso. É essa, aliás, a lição da história portuguesa e da vocação universalista que a inspira. É claro que não é um diálogo fácil, situa-se num ponto instável em que se cruzam os particularismos e o universalismo, as semelhanças e as diferenças, as afinidades e os antagonismos, o reconhecimento e o distanciamento, a confiança e a desconfiança, a autonomia e a dependência, o entendimento e o confronto. Sabemos, por isso, que o diálogo exige sempre vontade de diálogo.

Para além do mais, todas as religiões, todas as culturas, todos os grupos humanos têm uma inclinação defensiva para o isolamento e para o confronto. Mas é possível cultivar também neles o impulso para a abertura, a tolerância e o respeito pelo Outro. Para isso, é preciso que cada civilização, cada religião, cada cultura seja capaz de praticar, no seu próprio interior , a tolerância, reconhecendo a liberdade de consciência e o direito à diferença. A História ensina-nos que, num determinado período histórico, a intolerância de uma cultura ou de uma religião para com as outras culturas e as outras religiões é proporcional à intolerância no seu próprio interior. A História mostra-se também que a intolerância de uma cultura ou de uma religião não é estável e variou ao longo dos tempos.

O século que terminou (custa-nos dizer o século passado, porque o sentimos presente) conheceu os maiores horrores: genocídios, massacres, extermínios. Alguns deles foram feitos em nome daquilo mesmo que, na prática, negavam e aviltavam. Mas o século XX foi também capaz de progressos extraordinários no reconhecimento de que há princípios, valores e direitos fundamentais que são universais e válidos para todos os seres humanos, independentemente da raça, religião, sexo, nacionalidade. Essa é uma conquista fundamental para todas as civilizações. É sobre este corpo de princípios, valores e direitos – o qual funda a própria ideia de humanidade -, que o diálogo entre civilizações pode e deve ter lugar. Os Direitos Humanos, inscritos na declaração universal, que estão na base da própria comunidade das Nações e que fundamentam a acção da ONU, são irrevogáveis. Entre eles, estão a liberdade religiosa, a liberdade de consciência e de expressão, a separação entre a esfera pública e privada. O nosso tempo demonstrou também o valor universal da democracia como o regime que garante a dignidade de cada ser humano e a paz entre as Nações. É em nome desta ideia e destes princípios que respondemos ao terrorismo.

É inaceitável que se use o nome de Deus e das religiões para cometer os mais bárbaros crimes. É inaceitável que se busque o afrontamento e o conflito, que se mate em nome dos princípios da paz, do amor e da fraternidade. As grandes religiões têm bem consciência deste perigo e, por isso, têm dado passos decisivos no sentido do diálogo inter-religioso, do ecumenismo e da cooperação para a paz e a justiça. Saúdo esse esforço e penso que, mais do que nunca, , neste momento sombrio, ele deve ser prosseguido, pois representa um contributo insubstituível para a paz.

A história das nações, das religiões, das instituições humanas é feita de luzes e de sombras. Só a consciência disso nos dá os instrumentos para lutar contra o fanatismo, a intolerância, a tirania. Nas nossas sociedades, multiétnicas e multiculturais, temos, todos os dias, que reafirmar os princípios que nos levam a lutar contra a exclusão e a respeitar o Outro na sua identidade e na sua dignidade fundamental.

Os autores dos ataques de 11 de Setembro quiseram transferir para a religião que invocam a responsabilidade moral dos seus crimes. Não o consentimos! Os muçulmanos serão os primeiros a repudiar essa cobardia moral.

O diálogo de civilizações, de culturas e de religiões, é a condição de paz e de um futuro melhor para todas as mulheres e homens do planeta. Como disse, não é nunca um diálogo fácil. É um diálogo que tem de ser constante, exigente e renovado. Porém, a alternativa a esse diálogo é a guerra, o terrorismo, o fanatismo, a ignorância, a miséria, a doença. Com o diálogo, podemos, passo a passo, construir um Mundo que respeite as diferenças e as identidades, não perdendo de vista a unidade fundamental de todos os seres humanos e o valor universal dos Direitos Humanos e da liberdade.