Discurso do Presidente da República sobre o tema: "Portugal - Da Experiência da Transição Democrática aos Desafios da Modernização"

São Petersburgo
29 de Outubro de 2001


Antes de entrar na matéria que me traz aqui hoje e de partilhar com todos uma reflexão sobre a experiência portuguesa na transição do autoritarismo para um regime estável de democracia pluralista, não quero deixar de sublinhar o prazer que tenho em poder estar na Universidade Estatal de São Petersburgo não só pelo prestígio desta instituição mas também porque nela existe um departamento de Filologia portuguesa que tem dado um valiosos contributo para a divulgação da língua e da cultura portuguesas.

Apraz-me de resto verificar o vivo interesse que a lusofonia suscita nesta cidade, presente nas duas Universidades de São Petersburgo. Permitam-me assim que manifeste o meu particular apreço e reconhecimento a todos os que com o seu trabalho, empenho e dedicação tem assegurado o ensino da língua portuguesa e cultivado o gosto pela cultura lusófona. Permitam-me ainda que preste pública homenagem à Professora Helena Golubeva, fundadora da cátedra de estudos portugueses nesta Universidade e actual Vice-Directora do Centro de Estudos Lusófonos da Universidade Hertzenb, apoiado pelo Instituto Camões.

Quero abordar convosco o tema da experiência da transição democrática em Portugal.

Faço-o com um espirito aberto, sem querer impor nenhuma interpretação de um processo razoavelmente complexo, nem, muito menos, pretender apresentar lições políticas com relevância para outros casos, como o da Rússia, tão diferente das circunstâncias portuguesas.

Não obstante, há dois ou três temas onde é possível referir uma conexão entre as nossas respectivas experiências, salvaguardados sempre o contexto interno e o enquadramento internacional distintos das duas transições.

A primeira afinidade resulta do facto de ambos os processos de transição serem consequência de tentativas falhadas de mudança controlada dos respectivos regimes autocráticos.

Essas estratégias de mudança interna, realizadas de cima para baixo, não estavam condenadas à partida.

Pela minha parte, como dirigente da esquerda democrática, não quis deixar de dar o beneficio da dúvida à linha reformista no interior do regime autoritário, depois da sucessão de Oliveira Salazar por Marcelo Caetano. Nesse sentido, empenhei-me na construção de uma alternativa para disputar as primeiras eleições, apesar de não estarem reunidas condições para uma competição livre e democrática. O aparelho repressivo do regime autoritário continuava intacto, o partido único continuava a ser o único partido legal, continuavam a não existir condições de controle do processo eleitoral pela oposição, cujos dirigentes corriam o risco de ser presos a qualquer momento.

Mesmo assim, considerei ser importante dar uma oportunidade às correntes reformistas do regime autoritário e evitar uma ruptura precipitada, que prejudicaria a possibilidade remota de uma transição pacifica.

Não foi possível seguir essa via, desde logo por causa das divisões internas do próprio regime, onde a “ala liberal” era muito minoritária. O período de abertura acabou por se revelar um breve intervalo. Depois das eleições, assustados pela demonstração da força das oposições e pela dinâmica de mudança, Marcelo Caetano inverteu o curso reformista e quis consolidar a sua posição numa linha repressiva. Era tarde demais, e a inversão estratégica só acelerou a deposição do mais antigo regime autoritário da Europa ocidental.

O principal obstáculo no caminho de uma estratégia reformista, ou gradualista, foi a guerra nas colónias africanas. Pela sua própria intransigência, a sobrevivência do regime autoritário tornara-se inseparável da sobrevivência do império ultramarino. Porém, essa obstinação forçava o isolamento internacional de Portugal : todos os países da Europa ocidental tinham completado a descolonização e não era possível um pequeno pais persistir nessa via durante muito tempo.

Esse elo frágil do regime autoritário partiu-se com o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, quando os militares do movimento das Forças Armadas puseram fim ao Estado Novo e abriram caminho para a institucionalização da democracia portuguesa.

Esse caminho não foi fácil. Ao contrário, por exemplo, da “transição pactuada” em Espanha, a “transição por golpe” em Portugal deu origem a um período de transição revolucionária, marcado por uma forte conflitualidade interna.

A causa principal dos problemas da transição reporta-se a uma segunda afinidade entre os casos de Portugal e da Rússia, na medida em que possamos admitir a pertinência da comparação.

Com efeito, em ambos os casos houve uma dupla transição. Houve, paralela e simultaneamente, uma mudança do regime político e uma mudança da natureza do Estado.

As transições post-autoritárias coincidiram com a passagem de um Estado imperial para um Estado post-imperial e, portanto, com a alteração radical da sua posição internacional. Inevitavelmente, a sobreposição dos dois processos significou um aumento da instabilidade interna e uma escalada dos conflitos políticos e sociais.

Nessa conjuntura, entendi ser prioritário, por um lado, impedir uma ruptura interna, que podia provocar um confronto violento entre facções políticas e militares e, por outro lado, completar o processo de descolonização, sem o que seria impossível recuperar condições efectivas de estabilidade para assegurar o caminho para a democracia.

Se foi possível conter os piores riscos de violência, os efeitos dessa dupla transição traduziram-se em dificuldades acrescidas na consolidação do regime de democracia pluralista.

Naturalmente, a comparação entre os dois casos, russo e português, deve ser temperada. Desde logo, separam-se pela escala dos problemas e pela projecção internacional das consequências da mudança interna. Além disso, a viragem na Rússia implicou mudanças radicais também na dimensão económica e social, que sobrecarregaram ainda mais e prolongaram o processo de transição.

Creio, aliás, que a extensão das dificuldades na transição da Rússia nem sempre é bem compreendida, sobretudo por aqueles que não tiveram, como nós, a experiência de mudanças tão profundas.

Não quero deixar de correr o risco de tratar de uma terceira possível afinidade entre as transições post-autoritárias nos nossos dois países. Trata-se do sentido democrático de ambos os processos.

Pela minha parte, como dirigente da oposição de esquerda democrática e como responsável político no período de transição, lutei sempre pela institucionalização de um regime de democracia pluralista, a única forma de os Portugueses se reencontrarem com a sua história e com o seu tempo.

Todavia, o sentido democrático da transição revolucionária portuguesa não estava, longe disso, adquirido à partida. Existiam, quer entre as facções pretorianas, quer entre os partidos políticos, projectos alternativos à instauração de uma democracia moderna e aberta. Mesmo depois das eleições de 25 de Abril de 1975, quando os cidadãos portugueses legitimaram, para lá de qualquer dúvida, a via para uma democracia pluralista, não era certo que existissem todas as condições indispensáveis para fazer prevalecer essa escolha claramente maioritária.

Na minha interpretação, a via democrática ganhou por ser essa a vontade profunda da comunidade política portuguesa, indiscutível depois da sua expressão nas primeiras eleições livres.

No entanto, o significado histórico dessa vitória dos valores da liberdade e do pluralismo, para lá das fronteiras nacionais, foi mais longe do que era possível prever na altura. Naturalmente, a democratização do regime político espanhol parecia já inevitável, tal como no caso da Grécia. Pela primeira vez, na Europa ocidental, todos os países tinham regimes democráticos. A seguir, a mudança democrática contagiou a América Latina, onde as ditaduras começaram a cair umas atrás das outras. No movimento seguinte, essa onda voltou à Europa, desta vez para a sua metade central e oriental, de Varsóvia a Praga e a Moscovo.

Esta cidade de São Petersburgo esteve, de resto, frequentemente na vanguarda desse processo de transição para a democracia.

De certa maneira, sem querer usurpar o oficio dos historiadores, talvez se possa admitir que a transição democrática em Portugal marcou uma viragem política histórica, no inicio de uma vaga de democratização cujo destino chegou à Rússia.

Para Portugal, a democracia política significou o reencontro dos Portugueses com a sua tradição humanista, o nosso regresso à Europa e a nossa integração na Comunidade Europeia, a possibilidade de consolidar uma estratégia de modernização económica e social sustentada. Passados pouco mais de vinte anos, para a nova geração - a geração da democracia - já não é possível reconhecer Portugal senão como uma democracia pluralista, uma sociedade aberta e tolerante, um Estado respeitado, parte integrante de uma Europa livre e pacifica. Está aí o nosso destino comum.

Quero dizer-vos que sempre tive uma profunda confiança no sentido democrático da mudança política na Rússia, contra os profetas da desgraça. Essa confiança mantenho-a, e fica mais forte depois de ter tido o privilégio de estar entre vós.

Essa confiança justificou sucessivas tomadas de posição, desde o meu primeiro mandato, a favor de uma dupla abertura das instituições europeias e ocidentais em relação às novas democracias da Europa central e oriental e em relação à Rússia e à Ucrânia.

Entendo ser indispensável a plena inserção da Rússia, a maior potência europeia, na arquitectura de segurança regional, pela intensificação das nossas relações no quadro da Aliança Atlântica, da União Europeia e da Organização de Segurança e Cooperação Europeia. Sem essa inserção plena, que implica o reconhecimento dos interesses legítimos de segurança da Federação da Rússia, nenhuma fórmula de estabilidade estratégica regional pode ser duradoura.

Essa conclusão não representa uma constatação da realidade dura dos factos, mas a expressão de uma confiança profunda na consolidação do regime democrático na Rússia, essencial para a Europa poder ser um todo, em liberdade e em democracia.

A Europa não é a Europa sem a Rússia. Mais uma vez, não se trata de constatar os factos, relevantes, da história e da geografia, mas de reiterar a solidariedade democrática que une Portugal e a Rússia, cimentada pelas lições da adversidade e pela esperança comum num futuro de paz.