Discurso do Presidente da República por ocasião do VI Congresso da Magistratura Judicial

Aveiro
08 de Novembro de 2001


Muito me honra presidir aqui, nesta cidade de Aveiro, onde a democracia sempre encontrou alento, a esta sessão de abertura do VI Congresso da Associação Sindical do Juizes Portugueses.

Antes de mais, por se tratar de uma magistratura sem a qual não existe, na vertente tutelar, valor tão essencial para o homem e para o cidadão como é o Estado de Direito.

Depois, porque a organização sindical dos juizes portugueses contribui, definitivamente, para os aproximar do comum, com interesses, aspirações e lutas que, na sua forma, os identificam com a generalidade dos cidadãos trabalhadores.

Ora, nessa tensão entre, por um lado, o poder de dizer o direito em cada caso, e, por outro, a reivindicação de uma identidade profissional e seu estatuto, abre-se o espaço para que magistratura e sindicato se compatibilizem, por forma a que o juiz que decide não conflitue com o juiz que reivindica.

Espaço tanto mais difícil de preencher adequadamente, quanto a mediatização dos tempos novos quase anulou a distância entre o tempo da acção e o da sua percepção imediata pela comunidade.

É, por isso, particularmente oportuno que V.Exªs, tenham escolhido como tema deste VI Congresso “Justiça&Opinião Pública”, porque é também aí que se joga a dignidade e a eficácia da Justiça, de que V.Exªs são agentes e profissionais.

Trata-se de um tema complexo, que continua aberto à reflexão e ao debate, e em que dificilmente se poderão dar por adquiridas soluções definitivas.

Definitivos são os valores. Todas as soluções, quando eficazes, serão boas, se com eles se conformarem; e de rejeitar, quando tendam a sacrificá-los.

À cabeça, a independência do julgador e o respeito pela integridade dos titulares dos interesses cujo conflito o juiz é chamado a decidir.

Ora a independência do juiz está em risco sempre que falte a necessária distância entre a opinião pública e o acto de julgar.

É que a opinião pública forma-se, umas vezes, a partir da percepção de factos, seleccionados pela comunicação social e descritos na sua linguagem, e, tantas outras, nesses mesmos factos e no comentário que sobre eles produzem os fazedores de opinião.

E se o julgador pode e deve estar atento à opinião pública, pode e deve, antes de mais, estar atento à sua percepção directa e imediata dos factos, tal como é chamado a julgá-los.

Importa, por isso, que a mediatização dos tribunais tenha como limite a preservação da independência dos juizes, sob pena de as suas decisões correrem o risco de serem apenas um eco da praça pública, por mais indispensável que ela seja para a convivência democrática e para que a comunidade veja se é, ou não, feita Justiça.

Mas a par da independência dos juizes, importa preservar a integridade de quem está em Juízo – como ofendido, como arguido, ou como titular de um direito ou de um dever que o tribunal terá de apreciar.

São demasiados os exemplos de ofensa da integridade das pessoas pela mediatização da Justiça, para que a reflexão que vai ser empreendida neste Congresso não possa deixar de debater o espaço em que podem encontrar-se, sem dano atendível, a necessária informação ao público e a manutenção da integridade daqueles que são levados a Juízo, ou a ele recorrem.

Têm os juizes especiais responsabilidades na ponderação destes valores, já que nunca se poderá esperar da lei outra coisa que não sejam critérios que o julgador interpretará e aplicará.

E é por isso que a reflexão não pode bastar-se com a consideração das regras que as leis deverão conter para uma saudável relação entre meios de comunicação social e tribunais. Importa ainda que os juizes, em cooperação com todos os outros agentes da Justiça e com os profissionais da comunicação, organizem formas institucionalizadas de reflexão e de debate, que permitam a todos, em cada momento, confrontar-se com as questões e os desafios que são postos pela indispensável compatibilização entre aplicação e mediatização da Justiça.

De outro modo, continuaremos a sofrer de intoleráveis ofensas ao princípio da presunção de inocência e a deparar, amiúde, com acusados transformados em vítimas no tribunal da opinião pública, e, no mesmo
tribunal, ofendidos feitos arguidos, por mais razão que, a final, lhes venha a ser dada pelos tribunais de V.Exªs, os únicos com o poder de julgar.

Por isso já tive ocasião de dizer, e aqui repito, “Para que tudo seja preservado - presunção de inocência, condições de decisão judicial e direito de informação - é necessário fundar regras claras que, gerando um indispensável espaço de comunicação, não transformem os media em tribunais e os agentes da Justiça em opinion makers”.

Senhores Juizes

Estão V.Exªs ao serviço da comunidade e a comunidade está inquieta com o estado da Justiça.

É domínio em que têm responsabilidades legisladores e governantes, sem esquecer em que medida, todos nós, cidadãos, não aspiramos a uma Justiça que, tantas vezes, emperramos com o nosso laxismo e falta de cooperação.

Mas hoje é a V.Exªs que cabe inventariar a medida em que têm sido serviço público, e por que modos poderá a vossa associação sindical contribuir, de par com as reivindicações de estatuto, para que as necessárias reformas da Justiça passem por uma acrescida consciência das responsabilidades dos juizes no adequado funcionamento dos tribunais.

Que sejam os juizes os primeiros a exigir condições materiais e funcionais para que a Justiça seja pronta e eficaz. Mas que também sejam eles os primeiros a aplicar formas racionais e expeditas de julgar e decidir, que relevam mais da modificação de mentalidades e da cultura da profissão, do que dos éditos dos poderes legislativos.

É por isso que a reflexão e debate que V.Exªs se propõem fazer aqui sobre o conteúdo e fundamentação das decisões judiciais ganha particular acuidade.

A racionalidade de métodos e a ousadia de soluções que têm de informar as decisões judiciais dos tempos novos não vêm, nunca virão, nas leis. Só uma cultura judiciária de serviço público e de rigor porá o saber de V.Exªs ao serviço de decisões que digam, fundamentadamente, o direito, e recusem, em definitivo, a burocracia processual que vos rouba o tempo e nos priva, a todos, cidadãos, de uma Justiça pronta e eficaz.

O Presidente de República, garante do regular funcionamento das instituições, confia na acção dos juizes portugueses nesta batalha inadiável de reformar a Justiça.

Que a vossa Associação Sindical, de par com a defesa dos vossos interesses profissionais, seja um momento exemplar na construção deste serviço público que é administrar Justiça.