Discurso do Presidente da República por ocasião da Cerimónia de Homenagem ao Prof. Rui Grácio

Lisboa
15 de Novembro de 2001


É com um sentimento de profunda gratidão que me associo a esta homenagem a Rui Grácio, promovida pelo Instituto de Inovação Educacional.

Quero, em primeiro lugar, afirmar a minha admiração pelo homem de cultura, pelo pedagogo, pelo lutador pela liberdade. Discreto, firme e coerente com as ideias que defendia, Rui Grácio foi um democrata convicto, tendo militado em vários movimentos cívicos e políticos contra a ditadura.

Esse combate pela democracia e pela liberdade está bem presente na sua notável obra pedagógica, em boa hora organizada por sua mulher, doutora Maria Ângela Miguel, a quem quero agradecer o importante trabalho realizado. Rui Grácio foi uma das vozes que durante anos divulgou o pensamento educacional europeu entre nós.

As suas propostas inovadoras relativamente à escola portuguesa, que considerava desajustada do seu tempo, constituíram um estímulo importante para quem se esforçava por mudar a educação durante os anos de penoso isolamento, opressão e desinvestimento neste sector.

A sua actividade como conferencista constituiu uma referência, ficando na memória de todos a elegância do seu discurso, a inovação dos temas que introduziu, o rigor e a abertura com que os tratava.

Minhas Senhoras e Meus Senhores

Permitam-me que nesta sessão de homenagem a quem de forma tão brilhante e com grande coerência defendeu a democratização da educação vos proponha uma pequena reflexão sobre esta que é uma das minhas grandes preocupações e porventura o maior desafio colocado à educação nos nossos dias.

A democratização da educação foi durante muitos anos, e ainda o é para muitas pessoas, vista como o acesso à escola. Esta é, sem dúvida, uma meta essencial no nosso país, onde as taxas de analfabetismo e de abandonos precoces da escolaridade eram, em 1974, elevadíssimas. Situação cujas consequências penalizam ainda nos nossos dias grande parte da população activa portuguesa. Felizmente, registaram-se nos anos recentes grandes progressos no que diz respeito ao acesso da população jovem a todos os níveis de ensino.

Mas, se esta evolução será seguramente decisiva, as exigências da democratização são mais amplas. Há assim que considerar outros aspectos que podem contribuir para diminuir as desigualdades que penalizam grande parte das crianças dos meios desfavorecidos. Rui Grácio mostrou nos seus trabalhos de análise e crítica que a escola que tínhamos herdado do regime anterior não tinha soluções para este problema com que nos continuamos a confrontar de forma dramática. Considero as suas análises da maior actualidade.

A democratização do acesso trouxe novos problemas que a escola não soube ainda resolver e que exigem mais esforço de todos. Não nos podemos conformar com uma educação em que um grande número de alunos vai ficando pelo caminho. Acredito que a avaliação das escolas, dos professores, dos programas, aliada ao desenvolvimento da inovação poderá constituir um caminho para encontrar soluções pertinentes.

Considero também haver que organizar uma escola exigente no trabalho que pede aos alunos, mas exigente nos apoios que lhes proporciona.

Gostaria de convocar aqui os ensinamentos de Rui Grácio, para quem estas temáticas foram perspectivadas num sentido muito amplo e moderno, englobando, designadamente, o direito à educação entendido como a possibilidade de acesso e de sucesso dos alunos, com a necessária mudança ao nível dos conteúdos e valores do ensino e da aprendizagem; do governo e funcionamento das escolas, da participação das forças e interesses sociais na definição e aplicação das políticas educativas.

A articulação do sistema educativo com os objectivos políticos do desenvolvimento económico, tecnológico, social e cultural, hoje apontada como essencial à resolução de inúmeros problemas, era já considerada uma linha a seguir.

Tenho apelado a que se produzam trabalhos sobre as mudanças trazidas pelo regime democrático. A educação foi indiscutivelmente um campo de transformações, analisadas por Rui Grácio, que delas fez um interessante balanço, que considerou francamente positivo, evocando a criatividade dos movimentos sociais da instituição educativa e a generosidade e capacidade de participação na solução dos problemas colectivos.

Permitam-me, nesta homenagem, que lembre brevemente quatro significativas dimensões das políticas educativas lançadas no período em que desempenhou funções de Secretário de Estado:

A coerência pedagógica e rigor científico, que presidiu à elaboração das reformas e dos programas em que colaboraram especialistas de grande reconhecimento.

Uma permanente preocupação com a educação para a cidadania traduzida, designadamente, no conhecimento da sociedade e dos seus problemas, na realização de projectos de intervenção na comunidade. Todos sabemos como esta dimensão, permanentemente adiada desde então na nossa escola, apesar dos contributos positivos, mas parcelares, pode ser importante para que os alunos aprendam a compreender e a intervir numa sociedade onde a indiferença e a dificuldade de diálogo entre culturas são muito perturbadoras.

A terceira dimensão prende-se com a preocupação de promover a igualdade de oportunidades e de contrariar os processos de discriminação existentes ao longo do processo educativo. Aqui gostaria de evocar uma medida que ainda hoje suscita polémica: a unificação do ensino secundário. Todos sabemos como a frequência do ensino liceal ou do ensino técnico marcava, precocemente, o futuro dos jovens.

Também sabemos que a opção por uma ou outra via não constituía na maioria dos casos uma opção vocacional, sendo condicionada pelo estatuto e meios económicos de que dispunha a família. A unificação visava, segundo Rui Grácio, adiar as escolhas vocacionais, diminuindo as desigualdades então criadas. As críticas, ainda hoje persistentes, baseiam-se essencialmente na lacuna ao nível da formação de técnicos que terá sido deixada por esta medida.

É, efectivamente, preocupante o facto de apresentarmos défices na formação de técnicos. Mas a decisão de dar oportunidades aos jovens para amadurecerem as suas opções vocacionais até ao 9º ano de escolaridade não é incompatível com a formação de técnicos qualificados. Pelo contrário, esta medida daria aos jovens ao nível do ensino secundário unificado a oportunidade de adquirir uma maior formação de base sólida, essencial a uma formação profissional sólida.

A reforma contemplava mesmo o reforço da formação tecnológica para todos os alunos, e uma maior ligação ao mundo do trabalho, à semelhança do que hoje se faz em vários países europeus, como estratégia de orientação profissional.

Considero que a solução das lacunas deixadas pela criação do ensino unificado terão de passar pelo desenvolvimento da qualidade e pela credibilização das formações profissionais a iniciar após o ensino básico.

Uma quarta dimensão diz respeito às medidas de política educativa desenvolvidas no campo da formação de professores, que foi outra das linhas essenciais das políticas lançadas por Rui Grácio. Estas medidas mostram a sua visão num domínio essencial ao sucesso das inovações.

Meus Amigos,

A obra e a acção de Rui Grácio continuam vivas e actuais, a interpelar-nos, pois contêm ensinamentos, exemplos e pistas de reflexão de inteira validade. O estudo da obra pedagógica inovadora e rigorosa de quem tão bem conheceu a educação em Portugal é essencial para pensar o futuro deste sector. É, por isso, a pensar no futuro que hoje prestamos esta homenagem a Rui Grácio. Estou certo de que esta é a melhor, a mais profícua e a mais justa forma de o homenagearmos.