Discurso do Presidente da República por ocasião de um Debate Conjunto com o Presidente Carlo Azeglio Ciampi sobre o Futuro da Europa com Jovens Portugueses

Lisboa
05 de Dezembro de 2001


Senhor Presidente da República Italiana,
Meus Senhores e Minhas Senhoras,
Caros estudantes


Quero, antes de mais, agradecer ao Senhor Presidente Carlo Azeglio Ciampi o ter tão prontamente aceite participar no presente encontro. Constitui para mim uma honra partilhar este momento com uma figura tão prestigiada da política europeia. Agradeço também ao Centro de Informação Jacques Delors o entusiasmo com que acolheu a ideia de realizar este debate e o empenho que pôs na sua organização.

Propus ao Presidente Ciampi esta iniciativa, por duas razões:

- primeiro, porque a questão do futuro da Europa nos interpela directamente. Nas vésperas do Conselho Europeu de Laeken, em que vão ser tomadas decisões importantes na matéria, importa sensibilizar a opinião pública, promover o debate e incitar à reflexão, uma vez que a Europa somos nós e que a questão do seu futuro é a do nosso próprio futuro.

- depois, porque quis dar oportunidade aos jovens portugueses, de dialogarem com o Presidente Ciampi, testemunha privilegiada da Europa desde a sua criação até hoje e europeísta convicto. Quem melhor do que o Presidente Ciampi poderia testemunhar pessoalmente da formidável oportunidade que representa a Europa para os jovens de hoje ?

Para estimular a nossa reflexão e este debate, gostaria de suscitar algumas questões, nomeadamente a articulação entre a Europa e os Estados-Nação, assim como o futuro da União e a reforma do seu modelo político e institucional. Mas recordemos, para começar, o significado do projecto europeu e as etapas já realizadas.

A construção europeia

O sucesso inquestionável do grande projecto voluntarista que representa a construção europeia nem sempre é apreciado na sua justa medida. Vale por isso a pena lembrar alguns dos resultados obtidos em apenas meio século de história de um continente, reerguido dos escombros da Segunda Guerra. Conseguiu-se fazer da Europa um espaço de paz, estabilidade, segurança e prosperidade, em que a democracia, o Estado de Direito e o respeito pelos Direitos Humanos são a regra e os valores dominantes. Conseguiu-se edificar um mercado comum baseado na livre circulação de mercadorias, serviços e capitais. Conseguiu-se criar as condições da livre circulação de pessoas, desenvolver o princípio da cidadania europeia e, mais recentemente, adoptar uma Carta de Direitos Fundamentais. Criou-se a moeda única (que entrará em circulação dentro de 26 dias) e realizou-se a União Económica e Monetária. Lançaram-se as bases de uma Política Externa e de Segurança Comum e avançamos para uma Política Europeia de Defesa.

Os trágicos atentados de 11 de Setembro puseram em evidência a necessidade de acelerar a cooperação no âmbito da justiça e dos assuntos internos e de consolidar ainda mais a dimensão externa da política europeia. São novos desafios que constituem outras tantas oportunidades de aprofundamento da integração europeia, em que se está, desde já, a trabalhar.

A Europa e os Estados-Nação

O enorme sucesso da Europa e o fantástico poder de atracção que continua a exercer, designadamente junto dos Estados candidatos à adesão reside, em parte, no facto de, longe de se substituir aos Estado-Nação, antes constituir um poderoso antídoto ao seu declínio, actuando como vector de renovação das soberanias nacionais.

A Europa, correspondendo a um esforço regional de integração antes de mais económica e monetária, mas também social e política, tem permitido contrariar os efeitos negativos do movimento dominante da mundialização e da internacionalização que levam a uma progressiva limitação da soberania dos Estados, quer a nível externo quer interno.

É um ponto em que insisto e para o qual chamo a atenção. À realidade dos Estados-Nação, ameaçados pelo declínio e por uma crise profunda, a Europa trouxe uma esperança, deu-lhes ambição e abriu-lhes um horizonte novo, mais alargado e dinâmico. Proporcionou-lhes instrumentos e meios de acção adequados aos desafios do mundo globalizado. Fixou objectivos e prioridades assumidas por todos. Desenvolveu políticas comuns. Criou uma consciência e um estado de espírito partilhados. Introduziu mecanismos de concertação e de diálogo, criou estruturas de governação comunitária, sem que, por isso, os Estados-Nação tivessem sofrido alterações estruturais ou atentado contra os princípios da legitimidade democrática em que repousam.

A Europa tem-se construído através de uma partilha cada vez mais extensa de poderes e competências, de um exercício conjunto de responsabilidades, assente no princípio da igualdade de tratamento dos Estados Membros e no da sua solidariedade e coesão. Entre a União Europeia e os Estados Membros há relações de complementaridade e não de mera subordinação; na União Europeia coexistem a lógica da cooperação e a da integração, as instituições comunitárias não substituiram os órgãos estaduais. É porque a União Europeia não se configura como um projecto federal de tipo clássico, mas constitui uma organização sui generis de um tipo novo, que os Estados-Nação encontram nela uma oportunidade de se renovarem.
Para que a Europa mantenha o seu carácter atractivo, é necessário que, na perspectiva do alargamento e do aprofundamento, preserve estas características essenciais

Futuro da União: alargar e aprofundar

O alargamento da União, que estamos firmemente empenhados em ver realizado, é uma necessidade e um dever de solidariedade. Para além de ser um desafio pelas dificuldades que encerra, corresponde antes de mais a uma oportunidade. Oportunidade de reunificação do continente europeu, oportunidade de consolidação das democracias europeias e de um modelo de sociedade comum, oportunidade, também, de criar um espaço alargado de paz, prosperidade, bem-estar e justiça social. Mas oportunidade também de reforçar a projecção da Europa no mundo.

Por seu lado, o aprofundamento do processo de integração europeia, que envolve essencialmente a reforma política da União, várias vezes adiada, é uma exigência e uma necessidade, à qual o próximo alargamento imprime urgência acrescida, sob pena de conduzir a uma desagregação do projecto europeu.

A experiência mostra que não podemos ampliar indefinidamente uma construção sem pôr em causa a sua estabilidade, se não procedermos simultaneamente ao reforço das suas estruturas e alicerces, o que também é necessário se se registarem alterações significativas no espaço ambiente. O mesmo sucede com a Europa. Perante as extensões de que foi já alvo e na perspectiva da próxima ampliação, que levará à quase duplicação dos seus membros, torna-se inadiável uma reforma em profundidade tanto mais premente porquanto, justamente, também a conjuntura internacional sofreu grandes alterações.

À procura de um modelo político para a Europa

A construção europeia assenta no pressuposto de que a integração económica é portadora de integração política e de que uma vez a primeira alcançada, há necessariamente que proceder explicitamente à segunda. A história tem dado razão aos Pais fundadores. Parece ter-se atingido agora esse momento de viragem. Há, pois, que efectuar um salto em frente de restruturação político-institucional da União, aguardada desde o Tratado de Maastricht, de 1992.

Porque a Europa é um projecto único e inovador, não me parece que nos possamos valer, para a realização desta reforma, de experiências anteriores nem recorrer aos modelos já existentes. Esta impossibilidade provoca um certo mal-estar e traduz-se designadamente na querela das denominações a atribuir a uma União mais integrada politicamente.

“Federação de Estados-Nação” - poderá parecer uma contradição nos termos, mas é, a meu ver, a melhor designação para indicar o sentido do caminho que procuramos, a melhor expressão da ambição que queremos para a Europa. Ao nos propormos realizar uma Federação de Estados-Nação, entendemos dar corpo a um propósito aparentemente paradoxal, que exigirá grande determinação e engenho político. A construção de uma Federação de Estados Nação exigirá que se adopte uma Constituição Europeia e que se reforcem os fundamentos de uma democracia europeia.

A Constituição Europeia, integrando a Carta de Direitos Fundamentais, permitirá imprimir um cunho político inequívoco ao projecto europeu, aproximará os povos, reforçará o conceito de cidadania e de comunidade de destino. Precisamos de um texto constitucional que plasme os princípios da vida pública europeia, que enumere os valores e direitos fundamentais que enquadram a cidadania europeia, que reafirme os princípios da igualdade entre Estados e o da sua coesão e da solidariedade, em que assenta a construção europeia, e que configure a organização dos órgãos de poder e a repartição de níveis de competência, com base no princípio de subsidiariedade.

Reforçar os fundamentos da democracia europeia com vista a dar à Europa uma legitimidade acrescida, implicará proceder a uma reorganização da estrutura institucional da comunidade. Esta reforma é imprescindível na perspectiva do alargamento e decorre da vontade de aprofundar a integração política. Mas não se prende, em primeira linha, com uma pretensa falta de legitimidade democrática da União, alegação que, a meu ver, é infundada. Na verdade, não só o princípio democrático está já presente na União, nomeadamente no Parlamento Europeu, como a sua legitimidade democrática repousa também na legitimidade dos nossos Parlamentos nacionais e no controlo político que exercem sobre as decisões que os Governos tomam no plano europeu.

No entanto, na perspectiva de uma maior integração política e da construção de uma verdadeira Federação de Estados Nação, a que aspiro, haverá que velar por dotar a sua estrutura institucional de maior afirmação política, diminuindo o pendor tecnicista, administrativo e burocrático prevalecente até agora nos órgãos comunitários. Haverá também que velar por que, numa Europa alargada, essa estrutura institucional continue a assegurar o respeito do princípio da igualdade entre os seus membros, fundamento da construção europeia.

Para alcançar estes objectivos, precisamos certamente de uma Comissão forte, dotada de efectivas responsabilidades políticas, configurada à semelhança de um Executivo, com um Presidente dotado de extensos poderes, responsável perante o Parlamento. Mas precisamos também de proceder a um reequilíbrio institucional por forma a corrigir o peso excessivo do factor demográfico que serve de base à ponderação de vozes no Conselho e à distribuição dos assentos parlamentares. Estou em crer que, para consolidar este princípio, a criação de um órgão onde os Estados estejam representados paritariamente, como uma Segunda Câmara, constitui um caminho válido que deve ser explorado.

Senhor Presidente,
Meus amigos

Sem um debate alargado sobre o futuro da Europa, a todos os níveis e escalões da sociedade, será difícil fazer da próxima Conferência Intergovernamental um grande marco na história europeia, só comparável ao do Tratado de Roma. Ora, nós queremos que 2004 assinale a segunda fundação da Europa.

Queremos mais e melhor Europa. Queremos uma Europa que seja uma comunidade de valores e de destino, um espaço comum de paz, democracia, justiça, liberdade e prosperidade, queremos uma União Europeia federadora dos nossos Estados-Nação, que proporcione, aos nossos cidadãos, uma dupla filiação e aos nossos Estados uma legitimidade redobrada, na certeza de que a união, a solidariedade e a coesão fazem a sua força.

É esta ambição que temos de inculcar aos jovens europeus, incitando-os a reflectir, com o vigor, o optimismo e o entusiasmo próprios da idade, sobre o teor possível de uma futura Constituição Europeia, sobre a configuração político-institucional de uma Federação de Estados Nação e, por último, sobre a sua visão do lugar de cada País na Europa de amanhã.

É um desafio que lanço aos jovens portugueses aqui presentes, como ponto de partida para o debate que abriremos daqui a pouco, mas que deverá prosseguir. É um convite à reflexão e a futuros encontros, que não deixarei de promover.

Muito obrigado ao Presidente Ciampi.
Muito obrigado a todos.