Cerimónia de cumprimentos de ano novo ao Corpo Diplomático acreditado em Lisboa

Mafra
16 de Janeiro de 2002


Senhor Núncio Apostólico
Senhoras e Senhores Embaixadores


Obrigado, Excelência Reverendíssima, pelos votos tão amáveis que me transmitiu em nome do Corpo Diplomático acreditado em Lisboa. Neste momento conturbado da vida internacional, as suas palavras são um estímulo e reconhecidamente as agradeço. Pela minha parte, peço-lhe que transmita ao Santo Padre os meus votos de paz e de progresso para o novo ano que iniciámos, votos esses que igualmente dirijo aos Chefes de Estado e Governo aqui representados.

O ano novo chega num momento de recomposição da ordem internacional. Adivinhamo-lo difícil, complexo, carregado de riscos e de tensões, mas também de desafios e de oportunidades. Cabe-nos assumir esses desafios e, com visão ampla do que está em causa, aproveitar todas as oportunidades que se nos deparam para construir um mundo mais justo e mais seguro.

Infelizmente, esse objectivo parece hoje mais distante do que há um ano atrás. Em 2001, multiplicaram-se os focos de tensão na vida internacional. O abrandamento acentuado do crescimento económico, os desmandos ocorridos na Cimeira de Génova, o radicalismo verificado na Conferência de Durban, o agravamento do conflito entre Israel e os Palestinianos denunciavam já, antes do 11 de Setembro, um crescente mal estar.

A barbárie do 11 de Setembro excedeu, no entanto, tudo quanto poderíamos imaginar. O terrorismo internacional demonstrou uma ousadia, ambição e capacidade para infligir danos que não conhecíamos e de que nem sequer suspeitávamos. Fomos brutalmente alertados para a vulnerabilidade das nossas sociedades. Transmitidas para todo o mundo, as imagens desses ataques — que, não o podemos esquecer, provocaram milhares de mortes —, ficaram gravadas na consciência da humanidade.

Na mensagem que, nesse mesmo dia, dirigi aos portugueses disse que Portugal se sentia directamente atingido por estes ataques e exprimi a nossa solidariedade total e inequívoca com os Estados Unidos da América. Todos tivemos consciência naqueles momentos de ter assistido à abertura de um novo capítulo na história, que nos coloca perante novas exigências.

Neste virar de ano, continuam acesos numerosos focos de tensão e de perturbação na vida internacional. Penso no trágico conflito entre Israel e os Palestinianos, que não cessa de se agravar apesar dos esforços diplomáticos constantes para, pelo menos, obter um cessar-fogo; na perigosa situação existente entre a Índia e o Paquistão, em cuja origem se encontram também actos terroristas que condenamos; na profunda crise económica e social que se abateu sobre a Argentina.

Não obstante, a reacção da Comunidade Internacional aos atentados contra os Estados Unidos constitui um sinal de esperança, que nos leva a encarar 2002 senão com optimismo, pelo menos com grande firmeza e determinação.

Firmeza e determinação, em primeiro lugar, na luta contra o terrorismo internacional. Os atentados do 11 de Setembro mereceram um repúdio espontâneo e universal. A Comunidade Internacional uniu-se em torno de um inimigo comum — inimigo difuso, porque não consubstanciado na figura de um Estado, mas para todos reconhecível, inimigo cujo método é a violência e cujo objectivo é destruir, semear a desordem, lançar os povos uns contra os outros, implantar a anarquia.

Àqueles que queriam fazer desse combate um conflito entre civilizações, a mais eloquente resposta foi-lhes dada pelos próprios afegãos, ao celebrarem o fim de um regime tirânico e retrógrado que os oprimia e que governava em íntima aliança com a organização terrorista da Al Qaida.
O Afeganistão não pode agora ser votado ao abandono, como já anteriormente sucedeu. Sob a égide das Nações Unidas e em colaboração estreita com os próprios afegãos, a Comunidade Internacional tem um papel crucial a desempenhar na reconstrução daquele martirizado país.

Não tenhamos, contudo, ilusões: a luta contra o terrorismo está ainda no princípio. Ela obriga-nos a encontrar novas formas de garantir a segurança sem cercear as liberdades e garantias individuais. Obriga-nos, também, a uma atitude mais vigilante quanto aos perigos da proliferação de armas de destruição maciça e à ameaça tremenda que podem representar em mãos irresponsáveis e sem escrúpulos. Obriga-nos, ainda, a uma postura mais determinada perante a criminalidade organizada a nível internacional e a buscar novas formas de a combater, mesmo se para tanto for necessário pôr em causa alguns tabus, como o segredo bancário e os paraísos fiscais.

Temos agora uma oportunidade para forjar os acordos indispensáveis à prossecução destes objectivos. A luta contra o terrorismo gerou uma situação rara de convergência de interesses entre as principais potências, cujas virtualidades devem ser utilizadas para fins positivos.

Em particular, a reacção do governo russo criou uma oportunidade histórica para integrar aquele país de forma mais completa na comunidade euro-atlântica e designadamente, para forjar novas parcerias entre a Rússia, a NATO e a União Europeia. Nas conversas que tive com o Presidente Putin por ocasião da Visita de Estado que efectuei a Moscovo, tive o ensejo de lhe manifestar o interesse de Portugal por esse desígnio, que sempre considerei um factor de equilíbrio essencial para a segurança do espaço euro-atlântico. Após a retirada dos EUA do tratado ABM, importa igualmente que a Rússia e os Estados Unidos da América cheguem a um novo entendimento em matéria de controlo dos armamentos.

Temos também de saber evitar que a preocupação com as questões de segurança relegue para segundo plano a luta pelo progresso económico e social.

A mesma firmeza e determinação evidenciadas no combate ao terrorismo devem ser postas ao serviço de uma nova agenda global, que contemple a defesa dos direitos humanos, o reforço do direito internacional, a luta contra a pobreza, o desenvolvimento económico e social sustentado, a protecção do ambiente, a tolerância e o respeito mútuo, fundamentos do diálogo entre civilizações.

São essas, estou em crer, as mais profundas aspirações da grande maioria dos homens e mulheres de todo o mundo.

Senhor Núncio Apostólico
Senhoras e Senhores Embaixadores

Melhorar as condições de governabilidade da globalização é uma grande ambição e um grande desafio. A tarefa é difícil, mas necessária. Temos de encontrar forma de satisfazer a necessidade cada vez maior de bens públicos à escala global, tais como a protecção do ambiente e a defesa da saúde pública. Actualmente, nem a sociedade internacional dispõe dos mecanismos adequados para tais fins, nem os recursos financeiros disponíveis são suficientes, nem a maneira de os administrar é a mais eficiente.

Não dispomos, por exemplo, dos recursos necessários para fazer face à crise de saúde pública global que se perfila no horizonte, com o alastrar alarmante das doenças infecto-contagiosas. O ano passado tive ocasião de referir aqui o problema da SIDA. Na Assembleia Geral das Nações Unidas sobre este tema, na qual tive a honra de participar, foram dados passos importantes para uma maior consciência da dimensão do problema e para encontrar formas de o combater.

Registo em particular o acordo obtido em Doha sobre as patentes dos medicamentos, que irá permitir aos países em vias de desenvolvimento obtê-los a um preço mais acessível. Não obstante, do fundo de 7 a 10 mil milhões de dólares proposto pelo Secretário Geral Kofi Annan, apenas foi possível reunir até agora 1,7 mil milhões de dólares. Ora a urgência de atacar o problema não diminuiu. Só no ano passado foram 2,3 milhões de pessoas a morrer daquela doença em África e 3,4 milhões a contrair o vírus.

Também no domínio das energias renováveis e do ambiente, há um enorme esforço a fazer para reduzir a dependência do petróleo das nossas economias e, desta forma, combater o fenómeno do aquecimento global. O sucesso da conferência de Marrakech, que abriu caminho para a ratificação do protocolo de Quioto, constituiu um passo importante no bom sentido. Todavia, não podemos esmorecer nos nossos esforços.

A luta contra pobreza continua a ser um objectivo inadiável. Promover a abertura dos mercados dos países mais desenvolvidos aos produtos dos países mais pobres, designadamente os produtos agrícolas, e acelerar o perdão da dívida dos países mais pobres, são objectivos que devemos continuar a perseguir.

O acordo alcançado em Doha, que fixou a agenda de uma nova ronda de negociações comerciais no âmbito da Organização Mundial do Comércio, constitui, a este respeito, um indício promissor. Mas também nesta área, carecemos de mais meios financeiros, designadamente para investir nos domínios chave da educação e da saúde.

Chegou o momento de procurar, com imaginação e criatividade, novas fontes de financiamento para a ajuda pública ao desenvolvimento que não dependam exclusivamente da generosidade dos Estados. Diversas fórmulas foram já propostas para esse efeito, que merecem ser examinadas sem preconceitos. A conferência de Monterrey, que versa exactamente sobre este tema, no próximo mês de Março, e a cimeira de Joanesburgo sobre o desenvolvimento sustentável, em Setembro, serão ocasiões excelentes para debater estes problemas em profundidade e forjar um novo contrato entre o Norte e o Sul, que é mais necessário do que nunca.

Também as instituições criadas em Bretton Woods, cuja importância foi decisiva para o desenvolvimento económico notável que se verificou na segunda metade do século XX, precisam de ser adaptadas às necessidades do século XXI, de modo a funcionarem como instâncias reguladoras dos mercados financeiros internacionais e a contribuírem de forma mais eficaz para o desenvolvimento das zonas mais pobres do nosso planeta.

A União Europeia tem um papel de primeiro plano a desempenhar nesse processo, mas ele não pode ser bem sucedido sem o contributo empenhado das principais potências, entre as quais destacaria, naturalmente, os Estados Unidos da América.

Senhor Núncio Apostólico
Senhores e Senhoras Embaixadores

Sejam quais forem as divergências existentes entre a União Europeia e os Estados Unidos da América sobre alguns destes assuntos que acabei de abordar, creio que a reacção dos povos e dos governos europeus ao 11 de Setembro demonstra, para lá de qualquer dúvida, a profundidade e a solidez do elo transatlântico.


Cada uma na sua esfera de acção, a Aliança Atlântica, a União Europeia e outras instituições multilaterais, como a OSCE, de que assumimos este ano a Presidência, têm um papel de grande importância a desempenhar no progressivo alargamento de uma zona de paz e prosperidade assente em valores comuns. É necessário trazer progressivamente para essa comunidade os países dos Balcãs e os Estados sucessores da União Soviética, que comemoraram o ano passado uma década de independência.

A comunidade euro-atlântica deve continuar a afirmar o seu carácter aberto, cujas fronteiras sejam apenas as da verdadeira democracia. É esse o sentido mais profundo dos processos de alargamento da União Europeia e da NATO que, espero, conhecerão em 2002 avanços decisivos.

Completada a unificação monetária, com a entrada em circulação do Euro, a prioridade europeia, nos próximos anos, será garantir o sucesso do alargamento às novas democracias da Europa Central e Oriental. Trata-se de realizar o ideal de unir toda a Europa como uma aliança das democracias.

Tal como no caso da moeda única, o alargamento das fronteiras da União Europeia é indispensável para assegurar a continuidade das dinâmicas de integração regional.

Reconheço, porém, existirem muitas apreensões e incertezas acerca do próximo alargamento, o maior e mais ambicioso da história da integração europeia. Mais uma vez, precisamos de estar à altura do momento histórico que vamos atravessar.

Vale por isso a pena recordar que, também há dez anos, quando se concluiu o tratado de Maastricht, que fundou a União Europeia, poucos acreditaram que seria possível realizar a União Económica e Monetária, e muito menos dentro dos prazos previstos.

Hoje, vemos que os pessimistas não tinham razão.

A firmeza e a determinação do conjunto dos responsáveis políticos da União Europeia, bem como a sua concentração no programa de unificação económica e monetária, foram decisivas para manter a orientação definida em Maastricht, apesar de todos os obstáculos. Em Portugal, o consenso nacional, assente numa visão clara dos nossos interesses e numa estratégia bem definida, criou um quadro de confiança e de motivação da sociedade portuguesa que superou todas as dificuldades.
Pela primeira vez, Portugal assumiu, por direito e mérito próprios, a sua posição na primeira linha da construção europeia.

É essencial, por isso, compreender bem as lições da última década da integração europeia. Se nos concentrarmos, com firmeza, numa prioridade clara e realista, conseguiremos transformar esta oportunidade única na fundação de uma Europa livre e unida.

O aprofundamento e o alargamento são processos que se completam e estiveram sempre ligados na construção europeia. Na perspectiva do alargamento, haverá que debater, nos próximos anos, questões vitais para o futuro da União, tais como as perspectivas financeiras, a reforma da PAC, o reforço da política externa e de segurança comum, a reforma institucional.

A União Europeia lançou na cimeira de Laeken, um processo de reflexão que visa reforçar a sua coesão política.

Repousando na convocação de uma Convenção, cujos trabalhos terão início no próximo mês de Março, e a que se associará um Fórum representativo da sociedade civil, trata-se de uma solução auspiciosa que permite esperar que os avanços registados na integração económica sejam correspondidos por um reforço da integração ao nível político.

Portugal considera que tal integração, fundando-se sempre no princípio da solidariedade e da coesão económica e social, deverá visar a introdução de maior clareza e coerência no funcionamento das instituições, no respeito pelo princípio da igualdade dos Estados, reforçando o princípio da legitimidade democrática da União e aproximando-a dos cidadãos.

Reforçar a coesão política da União não será tarefa fácil. Apesar de alguns passos importantes, falta ainda percorrer um longo caminho até atingirmos esse objectivo. Queremos percorrer esse caminho porque entendemos que uma União Europeia forte é não apenas do interesse nacional mas também muito necessária para o equilíbrio do mundo. Com firmeza e determinação, estou convencido de que alcançaremos os nossos objectivos .

Senhor Núncio Apostólico
Senhores e Senhoras Embaixadoras

Para terminar faço uma referência amiga aos países irmãos de língua portuguesa.

Com o Brasil, entrou em vigor, em 2001, o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta, que consagra plenamente a reciprocidade de direitos civis e políticos entre portugueses e brasileiros e, também, o Acordo para Evitar a Dupla Tributação, de tão grande importância para as relações económicas entre os dois países.

Com os países africanos de expressão portuguesa, queremos ter relações estáveis e protegidas de interferências conjunturais, cuja importância será sempre secundária perante os interesses profundos que unem os nossos povos.

Saúdo a eleição de novos Presidentes da República em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, a quem desejo as maiores felicidades no exercício dos seus mandatos. A renovação democrática nos altos cargos políticos é sempre um princípio saudável, que deve ser encorajado.

Uma palavra especial sobre Angola. Volvidos mais de vinte e cinco anos sobre a sua independência, aquele país irmão não alcançou ainda a paz que lhe permitirá usufruir plenamente das suas enormes riquezas, assegurando-lhe o lugar de destaque que naturalmente lhe cabe na região e no continente africano.

O saldo de anos e anos de guerra civil é demasiado trágico para que os angolanos e a Comunidade Internacional se conformem com a situação vivida naquele país. Sem esquecer as lições do passado, a nossa consciência moral exige-nos que não poupemos esforços na constante busca de uma solução para o conflito, solução que conduza à paz e à reconciliação nacional e crie as condições para o desenvolvimento de Angola.

Desde o primeiro momento — que fique bem claro — foi sempre essa consciência que guiou Portugal nas suas relações com Angola. E é essa consciência e sentido de responsabilidade perante o povo angolano que nos leva a prosseguir os nossos esforços, mesmo perante dificuldades e incompreensões.

Quero ainda deixar aqui uma saudação particularmente carinhosa para o povo timorense, que em 2001, através de eleições, escolheu pela primeira vez os seus legítimos representantes e se prepara para celebrar a sua independência.

Está assim em vias de ser cumprido o compromisso solene de Portugal, sempre reiterado nos últimos 25 anos, de garantir a auto-determinação do povo timorense.

Excelências

Quero transmitir, por vosso intermédio, os meus sinceros votos de que o ano agora iniciado seja melhor do que 2001 e portador de uma nova esperança no destino comum da humanidade. Peço especialmente aos Embaixadores dos países que tive o prazer e a honra de visitar no ano passado — o Canadá, a República Checa, a Rússia, e o Perú — para transmitirem aos vossos Chefes de Estado os meus agradecimentos pela forma tão cordial como me acolheram. Reservo por fim uma palavra muito especial de homenagem para as Nações Unidas e o seu Secretário Geral, Kofi Annan, que foram, no ano passado, muito merecidamente contemplados com o Prémio Nobel da Paz.

Hoje, mais do que nunca, temos de nos inspirar nos grandes princípios e nos grandes objectivos que presidiram à criação das Nações Unidas para construir uma ordem internacional que, como corajosamente tem defendido Kofi Annan, coloque acima de todos os outros valores a dignidade do ser humano.

Para todos um bom ano e muito obrigado pela vossa atenção.