Abertura do Ano Judicial

Lisboa
24 de Janeiro de 2002


Em V.Exªs, Senhores Magistrados Judiciais e do Ministério Público, Senhores Advogados, Senhores Solicitadores, Senhores Oficias de Justiça, saúdo a Justiça e a sua administração quotidiana, que, no tempo que é o nosso, constitui um modo inafastável de exercer e de tornar visível a autoridade do Estado, a autoridade democrática do Estado.

Nem sempre foi assim, sobretudo quando Portugal era, na Europa, uma periferia de ruralidade e de indústria condicionada, com direitos para poucos e deveres para os restantes.

Então, como já lembrei nesta sede, a Justiça vivia uma rotina tranquila, escorada na gestão dos raros conflitos e da exígua criminalidade de uma sociedade em vias de desenvolvimento, parada na História, sob a mão de ferro de uma ditadura autocrática.

Em pouco mais de duas décadas, tudo mudou.

Embora com desigualdades que ainda persistem, e muito aquém das expectativas e das potencialidades do País, Portugal desenvolveu-se e o nível geral de bem estar aumentou. Mas com o desenvolvimento, surgiram, inevitavelmente, os conflitos e as disfunções sociais que sempre o têm acompanhado.

É aí que se afirma a indispensabilidade da democracia, na sua insubstituível capacidade para compatibilizar desenvolvimento, liberdade e segurança. Para isso, é necessário, todavia, que seja actuante e visível a autoridade do Estado.

Minhas senhoras e meus senhores,

A democracia é um regime de participação, em que o poder conferido aos poderes, pelo sufrágio, é controlado pelos cidadãos. E esse control materializa-se na representação parlamentar, no exercício das liberdades de opinião e de manifestação, nos tribunais que arbitram, com a independência que lhes é própria, os direitos individuais e sociais e punem os delinquentes.

Mas se o poder não se exerce, a participação política e o control democrático do poder transformam-se num jogo sem sentido, de que, a breve trecho, os cidadãos se desinteressam. Então, a democracia empobrece-se, o desenvolvimento fica em risco e a autoridade do Estado degrada-se.

É aí que surgem os apelos ao Estado “forte”, à democracia “musculada”, às derivas securitárias, para responderem à desordem e ao medo.

Ora o Estado “forte”, a democracia “musculada”, as derivas securitárias não são - é preciso dizê-lo - de esquerda ou de direita. São apenas perversões da democracia e o caminho aberto para a sua destruição.

Como o exercício do poder também não é de esquerda ou de direita. É apenas exercício do poder e condição essencial para que se afirme e seja visível a autoridade democrática do Estado.

Mas o exercício do poder não é neutro. E, por isso, é essencial que quem o exerce tenha um mandato claro dos seus concidadãos. Mandato quanto à medida da intervenção do Estado na economia e sentido dessa intervenção. Mandato quanto ao modelo de educação, de saúde, de segurança e de defesa, sem esquecer a fiscalidade e a política externa, ou a Justiça e os modos de organizar a sua administração.

Minhas senhoras e meus senhores,

Dissolvi o Parlamento e convoquei eleições legislativas.

É um momento exemplar e inadiável de aos cidadãos serem apresentados projectos de governação, claros e diferenciáveis.

Essa diferenciação é essencial para que os portugueses possam exercer uma verdadeira e própria opção, e não se vejam confrontados com uma mera escolha de pessoal político.

E isso é tanto mais importante quanto os projectos e a sua diferença têm de ser entendidos como legítimas e naturais interpretações do bem comum, e não como armas de uma batalha, em que os adversários políticos – saudável realidade de um país livre – sejam tidos como inimigos, e a vitória de uns ou de outros, seja vista como o resultado de uma guerra santa, em que o Bem triunfa sobre o Mal.

Haja seriedade e maturidade políticas; e percebamos todos, mas todos, que, no Portugal de 2002, nada disso faz sentido, e que o que se joga, no exercício da democracia, não é a metafísica das coisas, nem uma qualquer luta milenar entre o Bem e o Mal, mas tão só legítimas e diferentes concepções do que deve ser a governação democrática do País.

E é por isso que o resultado das eleições não constitui qualquer drama. Representa, tão só, a opção por projectos e por estilos de os realizar para um tempo determinado. Ao Povo caberá, chegado o tempo, avaliar o desempenho e dizer do futuro.

Esta clarificação é tanto mais importante quanto, realizado o sufrágio, é necessário que o poder se exerça, e se exerça não só com determinação, mas ainda com a legitimidade de um mandato expresso e conferido com plena informação.

Firme-se, então, a autoridade democrática do Estado, restabeleça-se a confiança dos cidadãos nas suas instituições, pois, sem essa autoridade e sem essa confiança, não é possível a participação política interessada dos cidadãos, que é condição de uma democracia que não se fique pelo mero jogo eleitoral e pelo exercício autista do poder.

Tudo isto interessa à Justiça e é essencial para a sua realização.

É que se a Justiça constitui um segmento importante da manifestação e visibilidade da autoridade democrática do Estado, é na globalidade da afirmação e realização dos projectos de governo que encontra a medida da sua intervenção e as condições de organização e de meios para ser, também ela, poder e poder visível.

Minhas senhoras e meus senhores,

A Justiça não é, na sociedade portuguesa, uma ilha.

É hoje claro, para todos, que falta ao País uma cultura de rigor e de responsabilidade. E a Justiça não fica à parte. Mas a generalizada consciência dessa falta é já meio caminho andado. Cumpre-nos percorrer o outro meio.

Ora a cultura de rigor e de responsabilidade passa, na Justiça, pela formação profissional e pela sua permanente actualização; pela optimização do aproveitamento de meios escassos e pela aprendizagem e aplicação das novas técnicas de trabalho e de comunicação. E passa ainda pela abordagem dos litígios e da criminalidade como uma parte do todo social, cujo adequado tratamento é uma componente essencial do bem comum, sem esquecer a instituição de procedimentos que comportem para todos os agentes da Justiça formas efectivas de responsabilização.

Tudo isto terá de ser feito com sacrifício de privilégios e rotinas. Mas é um sacrifício que vale a pena.

É que a manutenção de um Estado de direito - tenha-se por certo - depende, em última instância, da sua eficácia; e ou se reformam procedimentos e atitudes, ou o Estado de direito, tornando-se, progressivamente, ineficaz, será tido como um luxo, de que bem poderia, então, prescindir-se.

Há, todavia, razões de fundada esperança.

A Justiça dispõe, hoje, de um acréscimo de meios humanos e de novas tecnologias, que têm de ser optimizadas. Para isso, torna-se indispensável que se abra, corajosamente, a adequadas metodologias de organização e de execução do trabalho, sem as quais ficará apoucado o referido aumento de meios humanos e materiais que lhe foi atribuído.

Não se trata, como, por vezes, se ouve dizer, de fazer dos agentes da Justiça serventuários da estatística, resolvendo as questões de qualquer maneira, só para as resolver, e depois fazer o show of da diminuição de pendências – na terminologia dos tribunais, que todos V.Exªs tão bem conhecem, “matando” processos.

Trata-se, sim, de vencer a natural resistência à mudança e de fazer perceber a todos os agentes da Justiça - seja-me permitida a linguagem popular – que não lhes caem os parentes na lama se lhes forem exigidos ratios de produtividade, pelos quais também passe a avaliação do seu desempenho.

Tudo isto supõe formação de quem se prepara para uma profissão forense e aprendizagem dos que já a exercem.

É, por isso, necessário que o Governo, os Conselhos Superiores das Magistraturas, a Ordem dos Advogados, a Câmara dos Solicitadores e o Centro de Estudos Judiciários, tomem a seu cargo esta formação e esta aprendizagem, para que uma melhor organização e execução do trabalho e o recurso às novas tecnologias da informação e da comunicação possam ter direito de cidade na administração da Justiça e contribuir para que ela seja mais célere e mais pronta.

Mas não basta. Impõe-se que prossiga, nas necessárias reformas do sistema, a cooperação entre o Governo, os Conselhos Superiores das Magistraturas e os organismos representativos dos agentes da Justiça.

Há trabalho feito, é justo reconhecê-lo. Mas o inventário do caminho percorrido não pode distrair-nos do longo caminho que falta percorrer. Existe a lucidez, partilhada, de saber que assim é.

É necessária uma reflexão séria e isenta sobre os resultados das reformas legislativas dos últimos anos, que se baseie em dados objectivos, e que não seja inquinada quer por aparentes crispações corporativas, quer por qualquer inaceitável teimosia política.

Mas tal reflexão de pouco servirá se não for acompanhada de coragem e de humildade. Coragem e humildade para reconhecer acerto, onde antes houve perplexidade ou censura, e pronta correcção, onde as soluções se revelaram inadequadas. A bem da Justiça, é bom que tal esforço não tarde.

Mas se há um tempo entre a entrada em vigor de reformas e a percepção dos seus resultados, há medidas que não podem esperar.

A situação prisional continua preocupante, sobretudo no que respeita à superlotação das cadeias, que contribui para degradar a disciplina interna, cuja melhoria se torna aliás indispensável para prevenir os inaceitáveis incidentes como os que se têm verificado.

Sem prejuízo de serem necessárias, no curto prazo, novas instalações, impõe-se que se promovam e se agilizem meios que permitam a aplicação efectiva de sanções alternativas à prisão, designadamente o trabalho a favor da comunidade, que progride a ritmo incompreensivelmente lento, desde a sua entrada em vigor, em 1988.

Como se torna indispensável que a magistratura judicial prossiga na orientação que vem tomando de maior exigência na aplicação da prisão preventiva, em que continuamos a apresentar na União Europeia um triste palmarés, tanto mais inaceitável quanto temos um dos mais baixos índices de criminalidade da União.

Tudo isto tem de ser feito sem que se reforce o sentimento de insegurança que vem sendo patente, sobretudo nos meios urbanos.

E por isso insisto na ideia de há um ano, quando, nesta mesma sala, me referi à utilidade de se instituírem, nas grandes cidades, tribunais de bairro, que julgassem rapidamente a criminalidade de rua e lhe aplicassem penas efectivas, seja de prisão, seja de trabalho a favor da comunidade.

Minhas senhoras e meus senhores,

Justiça que não é célere, pronta e universal, gera impunidade, insegurança, e, por essa via, enfraquecimento da autoridade democrática do Estado.

É certo que à eficácia possível da administração da Justiça interessa o modelo de regulação da economia, a disciplina das finanças públicas, o tratamento da fiscalidade, as opções de política urbana e de humanização das periferias degradadas. Como lhe interessa as orientações de política social e laboral, de saúde e higiene públicas, de ambiente, de comunicação social.

É que tudo isto é decisivo para a evolução do consumo, para a medida do endividamento das pessoas e das empresas e para a sua viabilidade. E de tudo isto depende a evasão e a fraude fiscal, a criminalidade urbana, a conflitualidade laboral, o nível de respeito pela saúde e higiene públicas, pelo ambiente, pelo bom nome e reputação de cada um.

Tudo campos de conflitualidade e de delinquência, com reflexo directo no volume de casos que os tribunais serão chamados a decidir.

E por aqui se vê que a Justiça e a sua evolução estão indissociavelmente ligadas às opções políticas de cada sector e à medida da sua execução.

Mas a inversa é, igualmente, verdadeira.

A eficácia das opções políticas de cada sector depende, também, de a Justiça ser actuante, célere e pronta.

É que de pouco servirá regular o crédito e exigir rigor às empresas, se os devedores souberem que serão precisos anos para os fazer pagar e se os empresários tiverem por certo que passarão décadas até que seja ultimada uma falência. Como de pouco valerá disciplinar a fiscalidade, introduzir adequadas políticas de saúde e higiene públicas, de ambiente, de comunicação social, se os infractores forem julgados anos depois, tantas vezes com os delitos já prescritos.

Tudo isto gera um sentimento de impunidade, que contribui fortemente para o enfraquecimento da autoridade do Estado.

Não esqueço medidas sectoriais, sobretudo no domínio da investigação da criminalidade económica e financeira, que pretendem diminuir esta realidade.

Mas é preciso ir mais longe, na regulamentação e sobretudo nos meios, para que a criminalidade económica e financeira, com o carácter transnacional de que tantas vezes se reveste, possa, finalmente, ser debelada.

A aprovação, sob presidência portuguesa, da Convenção de Auxílio Mutuo em Matéria Penal dos países da União Europeia, e o mandado de captura europeu, recentemente instituído, são sinais positivos e instrumentos da maior valia no combate à chamada criminalidade de colarinho branco, cuja frequente impunidade é motivo de indignação e de grave descrédito da autoridade do Estado.

Impõe-se é que, na ordem interna, de parceria com a agilização do acesso à informação bancária, e com a inversão do ónus de prova para a declaração de perda de bens, se continue a repensar o regime do sigilo bancário, quer à luz das lições que haja a tirar da aplicação dos regimes vigentes, quer também do permanente debate em curso sobre a sua evolução, a qual terá de ser sempre na perspectiva da vitória da justiça sobre o crime.

Como se impõe, de par com a maior severidade introduzida na nova definição dos crimes de corrupção e de tráfico de influências, medidas de acelerada desburocratização da actividade administrativa do Estado, sobretudo quando se sabe que a burocracia, se emperra o desenvolvimento e a iniciativa, constitui, também, um consabido factor de corrupção.

Minhas senhoras e meus senhores,

Entendi manifestar, nesta sede, a minha preocupação com a autoridade democrática do Estado e com o modo como a Justiça é um elemento essencial para o seu fortalecimento.

Trata-se de questão da maior importância para o país, e que tem a sua razão de ser na indispensabilidade da autoridade democrática do Estado, para que sejam compatibilizados, como comecei por afirmar, desenvolvimento, liberdade e segurança.

Os trágicos e bárbaros acontecimentos de 11 de Setembro trouxeram a tudo isto nova luz.

É agora mais claro que a manutenção da segurança dos povos não depende apenas da magnitude e excelência do seu armamento, ou de sofisticados serviços de informação, dotados da mais avançada tecnologia e de verbas astronómicas.

Depende, sobretudo, de uma solidariedade internacional fundada nos direitos do homem, na imprescindibilidade de uma segurança colectiva, e na convicção clara de que se os fins não justificam os meios, nada justifica o terrorismo, sejam ou não inocentes as suas vítimas.


E ficou também claro que uma ordem internacional que garanta a paz e afaste essa forma de guerra, entre todas imoral, que é o terrorismo, exige solidariedade, tolerância, justiça, respeito pela diferença, equidade na distribuição da riqueza, sentido da medida e do valor de cada homem.

Mas o que vale para a ordem internacional, vale também para a ordem interna.

Os acontecimentos de 11 de Setembro quebraram o sentimento de segurança reinante e fragilizaram a autoridade dos Estados.

Perante agressão tão bárbara, nada mais legítimo do que a legítima defesa.

Defendamo-nos, todavia, dos apelos aos excessos, para que na justificada resposta à agressão se não ponham em causa valores que são a razão de ser da própria licitude da legítima defesa.

Minhas senhoras e meus senhores,

Quando a autoridade democrática do Estado está em causa, a Justiça, a Segurança e o Bem Estar, que são a sua razão de ser, exigem que o poder se exerça. Mas também aqui é preciso ter em conta que solidariedade, tolerância, justiça, respeito pela diferença, equidade na distribuição da riqueza, sentido da medida e do valor de cada homem, são os valores para os quais o poder existe.

Também a Justiça se terá de reformar e exercer no respeito por estes valores.

Se for assim, e nisso deposito toda a confiança, a autoridade democrática do Estado terá cumprido a sua função – o bem da República e dos seus cidadãos.

Disse.