Discurso de Sua Excelência o Presidente da República no Parlamento Escocês

Edimburgo
14 de Fevereiro de 2002


Excelentíssimo Presidente da Mesa
Senhor Primeiro Ministro
Senhores Deputados
Minhas Senhoras e meus Senhores

Constitui para mim uma grande honra dirigir-me ao Parlamento da Escócia.

A própria existência desta Assembleia, cujas portas permaneceram encerradas durante três séculos, para agora reabrirem, reflecte bem a dupla atracção que está a ser sentida pelos velhos Estados da Europa : no sentido da integração num conjunto mais amplo – a União Europeia – e no sentido da descentralização e de uma crescente delegação de poderes, a nível interno.

Estas duas tendências — aparentemente contraditórias — assentam no entanto num elemento comum. Com efeito, os Estados europeus comungam de uma necessidade crescente de partilhar poderes previamente concentrados a nível nacional. No exterior, o poder deverá ser partilhado com outros Estados, por forma a garantir a paz, aumentar a prosperidade e reforçar a capacidade de reacção às pressões externas. Internamente, o exercício do poder deverá ser descentralizado, de modo a satisfazer as exigências dos cidadãos de uma maior proximidade e transparência no processo de tomada de decisão.

Determinar a que nível o poder deverá ser exercido — local, regional, nacional, europeu, ou global — consoante as diferentes áreas de intervenção, constitui hoje um dos temas centrais do debate político.

A capacidade dos Estados em delegar alguns dos seus poderes, sem prejuízo da sua coesão interna, é bem reveladora da maturidade dos seus sistemas políticos, bem como da solidez e vitalidade das suas democracias.

Estou por isso seguro de que este processo de descentralização muito beneficiará a Escócia, uma nação que admiramos pelo seu povo nobre e generoso, pela sua notável cultura e pela beleza das suas paisagens.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Atravessamos um período de grandes mudanças, marcado pelos terríveis ataques terroristas de Setembro passado, em Nova Iorque e Washington. Estamos ao lado dos Estados Unidos e do Reino Unido, o nosso mais antigo aliado, na luta comum contra o flagelo do terrorismo internacional.

A crise actual veio colocar com uma nova acuidade a relevância dos aspectos políticos e de segurança para o projecto europeu, desafiando a Europa a reavaliar as suas capacidades e pontos de maior vulnerabilidade.

Percorremos já um longo caminho. Na senda de David Hume e dos seus ensinamentos sobre o equilíbrio do poder, os europeus tentaram, no passado, assegurar que a "tranquilidade geral" prevalecesse no que Voltaire designou como a grande República da Europa, partilhada por muitos Estados diferentes, mas unida por tradições comuns, em matéria de religião, justiça e costumes. Edmund Burke descreveu a Comunidade Europeia do seu tempo, afirmando que "nenhum cidadão da Europa poderia sentir-se totalmente exilado no seu seio".

Foi necessária uma terrível série de guerras e de revoluções, nomeadamente as grandes guerras e as revoluções totalitárias do século passado, para recuperar o Ideal Europeu no pensamento político. Perfilho a interpretação de muitos historiadores e políticos que, na tradição de David Hume, defendem que devemos a integração europeia à devastação da Europa, abalada por guerras sucessivas e moralmente arruinada pela afronta de regimes totalitários.

A força motriz deste processo unificador foi uma sólida determinação em jamais permitir que tal devastação se repetisse na Europa. Com este objectivo em mente, foi dada a máxima prioridade à criação e consolidação de regimes democráticos pluralistas e simultaneamente, à organização e institucionalização de diversas formas de interdependência económica entre os inimigos do passado. Ambas eram condições essenciais para a paz – e a paz duradoura entre os Estados europeus era, e continua a ser, o objectivo final da integração europeia.

A fórmula para a paz europeia era, e continua ainda a ser, a de criar uma união livre e estreita de Estados soberanos, sem colocar em causa a diversidade das suas respectivas culturas e identidades nacionais. Esta diversidade constitui um valor intrinsecamente europeu e uma importante mais valia.

O programa de reconstrução da Europa após a Segunda Guerra Mundial constituiu um sucesso. A integração europeia, a criação das Comunidades Europeias e depois da União Europeia, foram etapas decisivas nesta viragem histórica, que foi criando na Europa uma ordem democrática liberal, com fortes instituições comuns e um grau de homogeneidade política sem precedentes.

No final da guerra fria, fomos confrontados com mudanças massivas no mapa político da Europa. Para quem julgava que a unificação da Alemanha e a abertura das fronteiras europeias significariam o fim do processo de integração em curso, a resposta foi dada, em primeiro lugar, pela República Federal da Alemanha, ao optar por permanecer dentro do quadro das suas alianças ocidentais e europeias ; em seguida, pelo Tratado de Maastricht, que criou a União Europeia e definiu o calendário para a união económica e monetária, agora concluído ; e, por fim, pelo desfecho democrático das transições políticas ocorridas na maior parte dos países da Europa Central e de Leste.

Nunca duvidei de que a queda do muro de Berlim constituia uma oportunidade histórica para unir todas as democracias europeias numa nova União Europeia. Mais de uma década depois, cabe-nos levar a bom termo esta tarefa. A guerra fria pode estar morta, mas não será totalmente enterrada sem que admitamos nas nossas instituições comuns as novas democracias da Europa Central. A nossa principal prioridade deve ser agora realizar em 2004, conforme o planeado, o alargamento a todos aqueles países que estejam prontos a assumir as responsabilidades inerentes a uma adesão à União Europeia.

O alargamento representará a maior transformação na história do projecto europeu até ao presente, constituindo um desafio ao nosso talento e imaginação política. Alguns apoiam-no na esperança de que conduza à diluição da União. Outros opõem-se-lhe, precisamente pela mesma razão. Rejeitamos ambos os pontos de vista. Apoiamos o alargamento, não apenas como uma obrigação de carácter moral e político, mas também por considerarmos que ele constituirá uma importante contribuição para a estabilidade, prosperidade e paz na Europa, no seu todo. Estamos convictos, por outro lado, de que o alargamento exigirá de nós um esforço acrescido de reforço da coesão política e económica da União.

Em caso algum poderemos abrandar os nossos esforços de convergência económica entre os Estados membros da União Europeia. Não haverá União digna desse nome que não seja fundada na solidariedade entre as suas diferentes partes. Sendo certo que o alargamento acentuará as disparidades quanto aos níveis de desenvolvimento na União, esta deverá munir-se de instrumentos que permitam uma regressão gradual dessas desigualdades.

Não poderemos tão-pouco poupar esforços para concluir o programa de reformas económicas delineado na Estratégia de Lisboa. Temos de explorar ao máximo as oportunidades oferecidas pelo Mercado Único, promovendo a economia do conhecimento, incentivando a inovação científica e tecnológica e criando mais e melhores empregos. Devemos por outro lado agir com firmeza para erradicar a pobreza nos nossos países, de forma a lograr uma maior inclusão social e uma maior igualdade de oportunidades. O modelo social europeu é inteiramente compatível com uma economia mais dinâmica e competitiva.

Uma maior coesão económica terá que ter como suporte uma mais forte coesão política. Os debates em curso acerca do modelo institucional de uma união alargada, têm revelado, por parte de alguns, a tentação de criar de um núcleo de Estados centrais, percursores autoproclamados da integração regional. Uma solução deste tipo subverteria décadas de convergência política no sentido da unificação europeia. Portugal em caso algum a poderá aceitar.

Não é sem dúvida fácil encontrar um enquadramento institucional capaz de assegurar um equilíbrio adequado entre o interesse geral da União e os interesses particulares das suas partes constituintes. Mas, tal como nas nossas democracias não questionamos os princípios da separação de poderes em nome da eficácia, também na União Europeia não deveremos sacrificar o princípio básico da igualdade dos Estados só para tornar o processo decisório mais ágil e expedito. Uma forma de salvaguardar este princípio consistiria na criação de uma segunda câmara do Parlamento Europeu, na qual os Estados membros poderiam estar representados numa base paritária.

A complexidade e magnitude das tarefas com que nos defrontamos tornam necessária uma nova reflexão e um debate aprofundado acerca dos propósitos e da finalidade da integração europeia. A nossa participação neste debate afigura-se essencial, tanto mais que o que está em causa é a construção da própria democracia europeia.

Temos de nos assegurar que os povos da Europa compreendem os benefícios que resultarão para si de uma União Europeia bem sucedida e continuam a encarar a integração com os países vizinhos como algo gerador de maiores benefícios do que encargos.

A integração europeia apenas poderá progredir num contexto de representação equilibrada dos Estados, assente em regras de transparência, de democracia e de uma maior aceitação por parte de todos os cidadãos. Uma vez que constituem a principal fonte de legitimidade nos nossos sistemas políticos, os parlamentos nacionais deveriam também ser mais intimamente associados ao processo de integração.

Temos de aproveitar a oportunidade que nos é proporcionada pela Convenção e pela próxima Conferência Intergovernamental, para repensar seriamente os mecanismos de controlo e responsabilização política no seio da União Europeia. Desta vez, não podemos falhar. As reformas a adoptar deverão munir a União de textos constitucionais capazes de resistir à prova do tempo.

Já a braços com as complexas tarefas do alargamento e da reforma institucional, o brutal choque da agressão terrorista contra os nossos aliados, nos Estados Unidos da América, veio confrontar a Europa com novos desafios:

Ao longo dos tempos, a União Europeia, como Lord Robertson ainda recentemente afirmou, tem mostrado ser um gigante económico, mas um pigmeu do ponto de vista militar. Bastará recordar a incapacidade da União para conter a tempo as guerras provocadas por nacionalismos agressivos e Estados débeis nos Balcãs. De facto, somente após a tragédia, e com o apoio da NATO, foi ali possível uma intervenção das democracias europeias. Até à iniciativa de Saint Malo, a questão de uma capacidade militar especificamente europeia para acudir às crises regionais não fora praticamente equacionada. Mesmo desde então, os progressos registados têm sido lentos, apesar de se ter agora tornado evidente para todos a necessidade urgente de uma Força Europeia de Reacção Rápida.

Se a Europa quizer assumir responsabilidades internacionais proporcionais ao seu peso económico, terá necessariamente que reforçar as suas competências militares. O nosso propósito não é, nem deverá ser, o de substituir a Aliança Atlântica, mas antes o de actuar eficazmente no seu seio, como um parceiro igual aos Estados Unidos. O esforço político e o investimento financeiro exigidos são consideráveis, mas absolutamente necessários, se quisermos efectivamente assumir, como devemos, maiores responsabilidades em prol da segurança regional e global.


Minhas Senhoras e meus Senhores.

O programa que acabei de delinear é sem dúvida ambicioso. Levá-lo avante requererá grande persistência, imaginação e clarividência. Estou no entanto seguro de que é este o caminho a seguir.

Defrontamo-nos com desafios que põem à prova a nossa vontade política. No passado, a adversidade tornou-nos mais fortes. Espero que nos faça agora também mais fortes como europeus, aprofundando o nosso compromisso com um ideal europeu comum de paz, democracia e Direito.

De vós, que através da História, tanto fizestes para moldar e preservar os valores que nos são caros, esperamos uma contribuição decisiva para esta grande empresa.

Muito obrigado.