Abertura do Ano Judicial


20 de Janeiro de 1999


A abertura do ano judicial, pela solenidade de que se reveste e pelo universo de pessoas que congrega, é o momento singularmente apropriado para que se manifestem os anseios da comunidade pela realização da Justiça. E neste ano de 1999, em que se cumprem 25 anos sobre a Revolução de Abril, mais do que em qualquer outro.
   
No jubileu que se aproxima, temos bem de que nos alegrar, sobretudo se pensarmos que em tão curto período de tempo instituímos e consolidámos a democracia e a liberdade, fundámos o Estado de Direito democrático, acelerámos o desenvolvimento económico e social, melhorámos, significativamente, a justiça distributiva dos bens e das oportunidades, tudo com uma clara e definitiva reintegração na convivência internacional e nos espaços de cooperação em que ela se organiza.
   
E é tanto maior o motivo de júbilo, quanto, à partida, nos encontrávamos isolados, política e culturalmente, do resto do mundo, sem hábitos, há várias gerações, de organização e de convivência democráticas, e com uma estrutura económico-social atrasada de muitas décadas.
   
No caminho então iniciado, fomos adequando a organização do Estado e da economia às necessidades e às aspirações dos cidadãos; e instituímos formas de representação política e de audição de interesses que, no essencial, permitiram aos portugueses passar de súbditos a cidadãos.
   
Mas neste percurso de lutas e militâncias de indesmentível valia cívica, de que modo tratámos a Justiça?
   
E uso este plural comum, porque se a construção de um sistema de Justiça é responsabilidade de todos os cidadãos, essa responsabilidade cabe, de um modo particularíssimo, aos detentores do poder político e aos agentes da Justiça.
   
Advogado de profissão, cujo exercício suspendi nos últimos dez anos para servir Lisboa e a República, partilho dessa responsabilidade por qualquer dos títulos, e assumo-a, na íntegra, não só perante V. Exªs, como perante os cidadãos desta República a que presido por vontade do Povo.
   
É por isso que estou hoje, aqui, não na atitude de quem invectiva e pede contas - a governos, a magistrados, a advogados, a oficiais de justiça, mas, ao invés, para reflectir. Reflectir com todos sobre a administração da Justiça, questão que é uma pedra angular e decisiva desta democracia, que construímos com tanto esforço e entusiasmo.
   
E essa reflexão, faço-a enquanto cidadão, enquanto advogado e enquanto Presidente da República.
   
Enquanto cidadão, porque nessa qualidade sou destinatário do sistema de Justiça e por ele co-responsável; enquanto advogado, pelos actos e omissões do tempo em que exerci, e por algum conhecimento e experiência que daí me advém; e, finalmente, enquanto Presidente da República, porque me incumbe garantir o regular funcionamento das instituições e ser instância de apelo e de revelação dos anseios da comunidade. E a comunidade exige uma justiça pronta e eficaz, e a ela tem direito.
   
Minhas Senhoras e meus Senhores,
   
Quando a liberdade soou, tivemos como primeira prioridade esconjurar o passado; e à luz das lições perversas que ele nos oferecia, importava assegurar independência ao poder judicial e garantir a todos os cidadãos que não seriam perseguidos, nem julgados, pelas suas convicções. E que quando se sentassem no banco dos réus, ou quando pedissem reparação para os seus interesses ofendidos seria a tribunais independentes que caberia dizer, em cada caso, o que era de direito.
   
Tudo isto foi vertido, na Constituição e nas leis.
   
De juizes e dos então agentes do Ministério Público, dependentes do Governo na sua nomeação, colocação e transferência, ou por ele promovidos e disciplinarmente sancionados, passámos a ter magistraturas cuja administração é integralmente assegurada por Conselhos autónomos do Executivo, os quais garantem a não sujeição das magistraturas a critérios de conveniência e de oportunidade política. Também Parece, às vezes, indispensável relembrá-lo.
   
E a instituição da Ordem dos Advogados como associação pública veio assegurar, em definitivo, que a disciplina do acesso e do exercício da profissão seria feita pelos próprios, e não mais se sujeitaria a ingerências alheias, ou a tutelas impositivas.
   
Restituídas as magistraturas a um estatuto de exemplar preocupação com a separação dos poderes, em tribunais proclamados e reconhecidos como órgãos de soberania, a organização judiciária e as leis de processo foram porfiando num sistema de crescentes garantias, cuja malha, cada vez mais apertada, viabilizasse a justa apreciação de todo o direito ou o julgamento equitativo de qualquer crime.
   
A experiência dos últimos anos mostra que fomos longe de mais.
   
Recuperámos do mal em 25 de Abril. Que não morramos da cura no dobrar do milénio.
   
Não está, obviamente, em causa quer a independência dos tribunais, quer o estatuto dos agentes de Justiça, ou sequer as suas formas de auto-administração. Tão pouco a indispensabilidade de se manter um sistema em que todas as situações que mereçam a protecção dos tribunais sejam apreciadas de um modo justo.
   
O que está em causa é que o sistema de Justiça regule interesses e conflitos, de forma equitativa, pronta e eficaz.
   
O que está em causa é que o sistema de Justiça seja tal que sirva para os fins que o justificam.
   
De outro modo, entendamo-nos, é um luxo caro. Mais: um luxo caro, que serve, ou de que se servem, uns poucos, em detrimento de todos.
   
Temos, por isso, que parar para reflectir e para nos entendermos, com a modéstia necessária.
   
Enquanto é tempo.
   
Antes de mais, tenhamos por claro que a independência dos juizes, a autonomia dos magistrados do Ministério Público e o estatuto dos advogados não são fins em si mesmos. Ou são meios de realização da Justiça, ou então para pouco servem, nem mesmo para os próprios.
   
E por isso, no estado de carência em que a Justiça se encontra, é necessário que se abatam, em definitivo, o que tenho chamado de crispações corporativas.
   
Ninguém duvida que tais crispações terão sempre projecção mediática garantida, pelo mero facto de serem conflito. Mas a não se arrepiar caminho, de pouco valerá lutar por uma maior fatia de poder, porque nada haverá, no final, para dividir.
   
Depois, tenhamos uma percepção clara dos momentos em que a administração da Justiça bloqueia e do descrédito generalizado que isso provoca.
   
É habitual dizer-se que o Estado moderno não está apto a responder eficazmente às novas formas de criminalidade, nem ao aumento exponencial de litígios resultante de um crescimento, sem fronteiras, do crédito e do consumo no contexto de um individualismo ilimitado; e, por essas e outras razões, do acesso aos tribunais de um número crescente de cidadãos.
   
As reformas recentemente introduzidas na organização da investigação criminal mostram que alguma resposta é possível. Com custos financeiros? Obviamente. Mas não esqueçamos que continuar a tratar a Justiça como o parente pobre da democracia acaba, no limite, por pôr em risco a própria sobrevivência desta.
   
É que são exactamente as novas formas de criminalidade, a que em grande parte se dirigem aquelas reformas, e a impunidade que aquelas têm logrado obter, que constituem motivo de maior escândalo público e de pública indignação, tudo com apreciável descrédito das instituições judiciárias.
   
Mas é difícil compreender e aceitar esta pública indignação, quando, ao lado, e de há muito a esta parte, está, também, uma pública omissão colectiva no encontrar de perspectivas inovadoras quer na abordagem dos temas em causa quer nas soluções.
   
E isto é tanto mais grave, quanto as democracias modernas experimentam crescentes dificuldades em fazer coincidir a legitimidade do poder fundada no sufrágio universal, e como tal pacificamente aceite, com a legitimação derivada do exercício do poder pelo sufrágio conquistado. E daí que governos e assembleias, para não falar de outros, sejam, frequentemente, tratados com a designação "eles", numa clara fractura entre a legitimidade de origem, que ninguém contesta, e a legitimidade de exercício, por aquela designação censurada.
   
Como se o poder fosse exercido para benefício dos próprios.
   
Há pessoas, algumas até com responsabilidade, que se comprazem em construir um rumor público, insistente e persistente, de que a economia dependente da actividade do Estado ou de outras entidades públicas, sejam autarquias, sejam institutos públicos, está inquinada pela corrupção. Não cuidam, essas pessoas, de apresentar as provas que conduzam a resultados. Deste modo, o investimento urgente, mas também constante, quer em organização, quer em meios materiais e pessoais, para esclarecimento da verdade, é exigência prioritária de uma democracia em que os cidadãos respeitem tanto o sufrágio com que elegem, como os eleitos que ele escolhe.
   
Sem prejuízo da defesa dos direitos individuais, nessa busca incessante da verdade não poderemos ficar a meio caminho, tolhidos por tabus conceptuais que datam de outras épocas em que era bem mais fácil a defesa da Democracia, da Liberdade e da Justiça. Há também porventura que avançar na teorização e no aprofundamento doutrinários de novos métodos e procedimentos.
   
Ficarmo-nos pela censura política ou pela devolução das responsabilidades, serve apenas para avolumar a suspeição.
   
E a suspeição é o cancro das democracias.
   
O que fizermos para o extirpar, é continuar a cumprir Abril e abrir caminho ao projecto de futuro que encerra.
   
É da experiência social comum que na corrupção, no branqueamento de capitais ou no tráfico de droga, por exemplo, acaba por estar sempre em jogo a punição de poderosos. E é sabido que eles utilizam em benefício da sua impunidade um sistema processual de excessivas garantias, que acaba por deixar sem protecção o direito violado.
   
Como é também da mesma experiência, que quando o cidadão comum litiga com os poderosos para obter uma indemnização pelo interesse ofendido, ou para fazer cumprir um contrato quebrado, ou então para prevenir um dano eminente, de novo o sistema de garantias excessivas, agora no domínio do processo civil, permite que a resolução do litígio se prolongue por anos a fio e quando vem, já de pouco ou nada sirva.
   
Interrogo-me se esta incapacidade do sistema de Justiça para decidir de forma pronta, eficaz e equitativa, não exige uma intervenção do legislador mais restritiva, de que cito, a título de exemplos porventura muito significativos, o adiamento de actos, sobretudo das audiências de julgamento, e os recursos.
   
Será, na verdade, admissível que uma audiência de julgamento, quer em processo civil, quer em processo penal, seja adiada três e quatro vezes, ou mesmo mais, contra a letra e o espírito da lei em vigor? Se tantas audiências se prolongam por várias sessões, por que se não há-de iniciar de imediato um julgamento em que faltam alguns intervenientes processuais e prosseguir, noutro dia, com a presença dos faltosos?
   
E por que não impor esta solução por via legislativa?
   
Será por outro lado admissível que se mantenha um sistema de recursos, tantas vezes de duplo grau, quando não triplo, em que no limite, só quase os despachos de mero expediente é que não são sindicáveis pelas instâncias superiores?
   
E por que razão não poderão os tribunais, de um modo generalizado, recusar liminarmente os recursos cuja falta de fundamento seja desde logo manifesta, como acontece em muitos países e em tribunais de grande prestígio, de modo a que se firme, nos costumes e na consciência cívica, a ideia de que os recursos servem para reapreciar decisões, não servem para ganhar tempo, nem para eternizar a resolução de questões; tão pouco para obter, a final, num golpe de acaso, uma decisão inesperadamente favorável?
 
Por outro lado, bem se entende que as posições de autor e de réu, de queixoso e de arguido, gerem, naturalmente, atitudes contrapostas, mas é imperioso que isso não seja impeditivo de actuarem com uma sã ética da responsabilidade.
   
Ora os poderosos, sejam pessoas, sejam empresas, dispõem sempre dos meios financeiros e técnicos necessários para aproveitar um sistema de excessivas garantias e modelar o ritmo de administração da Justiça à medida dos seus interesses.
   
Ao invés, o cidadão comum, cujo acesso ao direito se mantém largamente dificultado, apesar das melhorias introduzidas nos últimos anos, arrisca, pela falência de meios disponíveis, uma apreciação sumária e definitiva do seu direito, ou o ingresso directo, sem recurso, nem caução, num qualquer estabelecimento prisional. Tudo isto a reboque de uma defesa oficiosa que, muitas vezes, se manteve mera espectadora do julgamento e no final se limita a pedir - "Justiça".
   
O 25 de Abril não se fez para que tivéssemos uma Justiça censitária.
   
Quando instituímos os tribunais como órgãos de soberania, quando estabelecemos magistraturas livres de interferências dos outros poderes, quando vertemos nas leis de processo todas as garantias de protecção e de defesa que a ditadura deposta sempre recusara, não era para que os criminosos de "colarinho branco" ficassem impunes, os ricos colonizassem o sistema e o cidadão comum, com um justificado anseio de justiça, se visse entregue à tentação da descrença definitiva e, por essa via, ao desnorte de formas primitivas de justiça privada.
   
E é por isso que se torna mais urgente a resposta ao apelo que, no ano transacto e nesta sede, dirigi aos agentes de Justiça - para que, em concertação com os Conselhos Superiores das magistraturas, se constituíssem em forum permanente de reflexão e de debate das soluções que a crise da Justiça exige.
   
Sei que não é tarefa fácil, tanto pela complexidade e extensão dos problemas existentes, como pela falta de hábitos de cooperação interprofissional, sobretudo quando tal cooperação for, desejavelmente, alargada a todos os agentes sociais com ligações à actividade das instituições judiciárias.
   
As iniciativas recentemente tomadas pelo Senhor Ministro da Justiça são encorajadoras. Que o apelo agora renovado possa ir ao encontro delas.
   
Mas não se pense que o poder político, ou cada associação profissional, de per si, tem capacidade para delinear esta reforma inadiável.
 
Ou ela se faz com a cooperação de todos, ou o quotidiano da justiça irá corroendo os fundamentos desta democracia e nunca saberemos, nem poderemos garantir, que não haja um momento em que se tenha atingido o ponto de não retorno.
   
E se é verdade que a plena eficácia de qualquer reforma depende de profundas alterações culturais e da inspiração que nelas colhe, não é menos verdade que temos de actuar nas condições existentes.
   
Ora quando há uma exaustiva consciência dos problemas que a reforma há-de de resolver e da possibilidade de para eles encontrar soluções, pela reflexão e pelo debate dos que têm informação e experiência directa das coisas, o argumento, que é verdadeiro e de boa fé, corre o risco de servir de pretexto à manutenção de alienações corporativas que a comunidade acabaria por não perdoar.
   
Veja-se a questão da droga.
   
Em poucos anos, a toxicodependência avançou como um flagelo e atingiu todos os sectores da sociedade portuguesa. Destruíram-se famílias e criaram-se novos e cada vez mais numerosos delinquentes, que progrediam no crime para alimentar a doença. Encheram-se as prisões; e a intranquilidade viajou do litoral ao interior, avassalando todo o país. Generalizou-se a angústia e o medo. E a resposta possível foi - prevenção/repressão.
   
Abriu-se, então, o debate e a reflexão. Confrontaram-se ideias e experiências. E, a breve trecho, a comunidade começou a entender que prevenção e repressão, concerteza, mas que o enfrentamento da toxicodependência seria bem pobre se se limitasse ao binómio da receita clássica.
   
E o debate e a reflexão continuam, com propostas cada vez mais diferenciadas; com avanços, recuos e incompreensões, é certo; mas com a certeza de que, por este modo, estão abertas as vias do possível.
   
O mesmo se terá de passar com a Justiça.
   
É minha convicção, que tenho partilhado com muitos, que o excesso de garantismo está a minar o sistema; e que só pela sua recondução a limites equilibrados, se poderão reduzir algumas das disfunções existentes. Mas se isso é essencial, não é seguramente o santo e a senha que resolverá todos os problemas da morosidade processual e do descrédito que ela gera.
   
Basta pensar na gestão e no contributo que os seus teóricos e profissionais poderão trazer à reflexão e debate sobre a Justiça.
   
Quando instituímos o Estado de Direito democrático, o sistema judiciário, pela sua dimensão e efectivos humanos, podia ser gerido sem a aplicação das novas metodologias de gestão. E o mesmo se passava com os processos, que entre cotas e juntadas, vistos e conclusões, chegavam normal e atempadamente ao seu termo. E por isso confiámos que, restaurada a liberdade e as suas garantias, a inércia judiciária faria o resto.
   
Previmos mal. E o resultado está à vista.
   
O boom processual e a magnitude de meios materiais e pessoais com que se pretende responder-lhe, exige que tenhamos a clarividência de perceber que saberemos de leis, de jurisprudências e de dogmáticas, mas que não temos informação nem experiência específicas na área da gestão de sistema organizacionais complexos, ou na instauração racionalizada de procedimentos e de rotinas produtivas.
   
E é por isso que não podendo qualquer reforma ser pensada e instituída sem passar pelos que a hão-de executar e viabilizar directamente, impõe-se, todavia, alargar o fórum permanente de reflexão e de debate a que venho apelando a todas as disciplinas que tenham uma palavra a dizer sobre a complexa actividade que a aplicação da Justiça vai exigindo.
   
Minhas Senhoras e meus Senhores,
   
Se a crise da Justiça é uma questão de eficácia e, por via dela, de credibilidade, ela é também uma questão política essencial, porventura das mais decisivas dos últimos vinte e cinco anos.
   
Toda a nossa organização político-administrativa, toda a economia pública ou privada, como todas as relações estruturantes da vida social, assentam no primado do Direito e na capacidade do Estado para garantir o seu cumprimento.
   
Se o Estado vacila nessa missão de garantia, então é a própria coesão nacional que sai enfraquecida; e ficam abertas as vias para uma indesejável tensão entre o arbítrio e o Direito, aí onde só o império da lei pode garantir a liberdade de todos, a justiça das relações sociais e o pleno exercício da cidadania.
   
Mas se o Estado vacila, ele que existe pelos cidadãos e para os cidadãos, de quem a responsabilidade? A quem poderão ser pedidas contas pela situação da Justiça? E delineadas as reformas necessárias, quem controla a sua bondade e os resultados da sua execução?
   
Dito de outro modo, como, por quem e perante quem, se efectiva a responsabilidade política pela administração da Justiça?
   
Trata-se de questão tanto mais importante, quanto em democracia não há irresponsáveis nem irresponsáveis.
   
E, no entanto, a repartição de funções e competências na área da Justiça, designadamente pela Assembleia da República, pelo Governo, pelos Conselhos Superiores das Magistraturas, pelos Tribunais, pela Ordem dos Advogados, pelo Conselho dos Oficias e Justiça, tudo órgãos autónomos entre si e responsáveis, apenas, por uma parte do todo, torna a questão de grande delicadeza no quadro constitucional existente e impede a atribuição exclusiva ou predominante da responsabilidade a este ou àquele órgão.
   
Importa, por isso, que a reflexão e o debate sobre a actualidade da Justiça se debrucem também sobre tal questão.
   
Daí poderá surgir uma melhor compreensão da natureza de cada um dos poderes que na Justiça se manifesta, das funções que lhes competem e das formas de cooperação obrigatória que entre si terão de ser instituídas, em obediência ao inderrogável princípio constitucional da cooperação de poderes. Tudo a benefício da inadiável reforma, cujos caminhos seguros, nesta nova fase da civilização, ainda terão de ser trabalhosamente descobertos.
   
E a questão é séria, porque a não ser ela empreendida, acentuar-se-á, inevitavelmente, a inoperância das instituições judiciárias na regulação tanto dos litígios interindividuais, como da conflitualidade social que o desenvolvimento e as suas assimetrias sempre suscita. E a breve trecho, ampliar-se-ão sucedâneos autoreguladores, que fazem correr o risco de o Estado de Direito democrático se transformar em mera figura da retórica jurídico- constitucional.
   
O recurso a formas extorsionárias de cobrança de dívidas, a alteração violenta da ordem pública para sustentação de pretensões sociais, a prevenção da criminalidade pelo recurso a milícias ditas populares, não podem ser apenas motivo de censura e indignação cívica. Importam, sobretudo, como perigosos sinais de uma crise de autoridade das instituições judiciárias, e portanto do Estado de Direito democrático.
   
E essa autoridade é tanto mais posta em causa, quanto os limites e a ética dos poderes que integram as instituições judiciárias são aparentemente esquecidos, aqui e ali, em situações de grande visibilidade social e mediática.
   
É decisivo para a democracia que os poderes se respeitem entre si e que os cidadãos respeitem os poderes. E na disciplina que isso exige, todos deveremos estar atentos.
   
As decisões judiciais são criticáveis como quaisquer decisões de poder, que também são. Criticá-las não constitui, por isso, qualquer falta de respeito para com o poder judicial. Mas era bom que o fossem pelo seu mérito ou demérito intrínseco, e não por se tratar da decisão do tribunal A ou do tribunal B, ou pela simpatia ou antipatia que suscita quem a proferiu ou a pessoa nela visada.
   
Temos de ter consciência de que a inocência ou a culpa não dependem da cara nem da situação social de cada um. E que só o conhecimento de todos os factos que foram tidos em conta numa decisão, e das provas que sobre eles foram produzidas, nos coloca em posição de aquilatar do bem ou mal fundado de tal decisão. E isto se o conhecimento que tivermos da lei e dos seus critérios de interpretação for suficiente para avaliar se o direito foi bem ou mal aplicado.
   
Este enunciado tão simples evidencia, desde logo, a ligeireza com que se têm feito julgamentos de opinião, umas vezes em detrimento dos acusados, outras em detrimento dos julgadores.
   
Mas se isto é assim, temos de ter consciência, também, de que a situação da Justiça só se agrava, quando se aproveitam decisões judiciais, cuja legitimidade é tantas vezes posta em causa por motivos, no mínimo, levianos, para comentários de clara confrontação retaliativa entre agentes políticos e agentes da Justiça, numa fronda que desprestigia quem nela participa e lança novas achas na fogueira do descrédito.
   
Minhas Senhoras e meus Senhores,
   
Comecei com Abril e com Abril quero terminar.
   
Tenho uma clara consciência do estado da Justiça e da preocupação que isso suscita nos meus concidadãos.
   
Tenho clara consciência dos pressupostos e limites da regulação da criminalidade e dos modos como está a ser contida.
   
Mas também tenho clara consciência de que não há medidas de política criminal tabu.
   
Quero referir-me ao perdão genérico de penas como uma das celebrações dos 25 anos de Abril.
   
No ano transacto, e nesta sede, chamei a atenção para o facto de Portugal se apresentar como o país da União Europeia com o mais elevado número de presos por habitante e a maior duração média de prisão efectiva. E de que isso não tinha qualquer correspondência nem no tipo de criminalidade existente, nem nas nossas taxas de criminalidade.
 
E apelei - com especial incidência no caso dos toxicodependentes, que constituem cerca de 60% da nossa população prisional - para que se aplicassem medidas alternativas à prisão tradicional, como é o caso do trabalho a favor da comunidade, o regime prisional aberto, ou medidas que combinem formas de tutela com acções terapêuticas.
   
Tem havido progressos neste domínio, mas há ainda um longo caminho a percorrer até que atinjamos níveis satisfatórios.
   
Ora o perdão genérico de penas, tal como a amnistia, têm sido comummente considerados medidas adequadas de política criminal para condicionalismos vários, sem prejuízo de poderem servir outros fins do Estado, como é o caso das amnistias no âmbito de tratados de paz, ou quando visam objectivos de pacificação social; ou ainda para festejar determinados eventos - as denominadas amnistias celebrativas.
   
Firmou-se a ideia, quer entre os cidadãos em geral quer na classe política em particular, de que, - sem aliàs se distinguirem os vários momentos -, se usou desta medida por forma excessiva e que as necessidades de contenção da criminalidade não eram compatíveis com tal abordagem.
 
Não recuso liminarmente o bem fundado desta ideia.
   
Mas como em todas as coisas, se o excesso é vício, a moderação é virtude.
   
Ora um perdão genérico de penas, em medida prudentemente limitada pela necessidade de contenção da criminalidade, permitiria que fossem regressando à convivência social apenas aqueles que foram condenados com sanções leves, ou que já se encontrassem muito próximos do cumprimento da pena, o que atenuaria duas das principais disfunções do nosso sistema - por um lado, a deficiência na aplicação prática de alternativas às medidas de prisão efectiva nas situações de menor gravidade criminal; por outro, deter o sistema a maior e injustificada duração média de prisão efectiva em toda a Europa Ocidental.
   
E é porque podem ocorrer situações deste tipo, ou outras, que o perdão genérico de penas tem uma inequívoca função de política criminal.
   
Pelo carácter singular de que se reveste, tal perdão em nada alteraria a medida legal das penas fixadas na lei, cujo juízo de necessidade e de reprovabilidade se manteria inalterado, nem interferiria com a liberdade soberana do julgador quanto às penas concretas que tenha aplicado e continuasse a aplicar a cada caso.
   
Mas num quadro em que a exiguidade de meios disponíveis e a natural morosidade na introdução de novas práticas torna deficiente a utilização de meios alternativos à prisão, ou em que a estatística revela algum excesso de duração média da prisão efectiva, nada deveria impedir o legislador de, num acto com eficácia limitada como é o perdão genérico de penas, atenuar, por essa via, as apontadas disfunções. Com o que, repito, se manteria, obviamente, inalterada a lei penal geral e a eficácia preventiva e repressiva de que dispõe.
   
Tal perdão influenciaria, necessariamente, a administração prisional. Mas esse é um reflexo incontornável e não a sua razão de ser.
   
Tudo isto concorreria com a razoabilidade de se celebrar, nesta área, os vinte e cinco anos de Abril, mediante um perdão genérico e limitado de penas.
   
E concorreria de modo útil, mesmo em termos de contenção da criminalidade, sabido que os actos de clemência por ocasião das grandes celebrações são poderoso reforço dos sentimentos de solidariedade social e, por isso, contribuem tanto para a eficácia preventiva da lei penal, como as penas que pelo acto de clemência se perdoam ou se atenuam.
   
Entendi que deveria aproveitar esta oportunidade para, sobre esta matéria, deixar o meu contributo. O silêncio, porventura cómodo, seria certamente mal compreendido. As minhas palavras não são, por isso, contra ninguém, nem podem servir de arma de pressão ou de arremesso. Constituem um testemunho de cidadania, lícito como qualquer outro.
   
É certo que um perdão genérico e limitado de penas exige um amplo diálogo entre os legisladores, capaz de limar as diferenças e de fazer avançar entendimentos razoáveis.
   
Não posso deixar de estar esperançoso e optimista quanto ao resultado. Julgo que Abril o merece.
   
Excelências, Minhas Senhoras, Meus Senhores
   
Termino com um voto de confiança - na capacidade de regenerarmos a administração da Justiça, com a exiguidade de meios disponíveis e com os atrasos culturais que herdámos, é certo, mas com a força de realizarmos a sociedade que queremos com a sociedade que temos.