Discurso do Presidente da República por ocasião das Comemorações do 40º Aniversário da Crise de 1962

Lisboa
24 de Março de 2002


QUARENTA ANOS DEPOIS

Como imaginam, é com grande emoção que estou aqui, hoje, convosco, na companhia de amigos tão queridos, a recordar acontecimentos que marcaram definitivamente as nossas vidas. Marcaram definitivamente as nossas vidas e permanecem intactos na nossa memória, na sua intensidade e no seu pormenor, como se os vivêssemos de novo quando os evocamos. O poder de evocação que têm vem do facto de terem sido o que poderíamos chamar momentos absolutos. Momentos absolutos, porque neles nos investimos totalmente, com uma energia e um idealismo únicos. Momentos absolutos, porque foram momentos de camaradagem e de fraternidade na luta e, como sabemos, lutar em conjunto por aquilo que consideramos uma obrigação moral indeclinável cria laços e cumplicidades indestrutíveis.

Dando testemunho pessoal, posso dizer (e creio que todos os que viveram aqueles acontecimentos sentem o mesmo), que a crise de 62 marcou a minha vida para sempre e fez de mim uma pessoa diferente do que era antes. Não se pode viver uma experiência como aquela e ficar igual ao que se era.

Creio que a melhor forma de evocarmos esses dias e esses acontecimentos tão intensos para nós, é reflectir um pouco sobre o que eles representaram na época e que lições de actualidade contêm.

A proibição do dia do Estudante de 1962 originou por toda a Universidade um movimento sem precedentes de contestação do regime e de solidariedade com as associações e dirigentes. Pela sua amplitude, pelo ineditismo das suas formas, pela sua combatividade surpreendeu tudo e todos, a começar certamente pelas autoridades do Estado Novo. Surpreendeu os próprios participantes, ao descobrirem a sua disponibilidade para a indignação, para proclamarem objectivos comuns (autonomia para a Universidade, liberdade e reconhecimento para as associações estudantis), em circunstâncias de risco pessoal. Por isso, essa aspiração de liberdade e essa solidariedade na contestação marcou uma geração inteira.

Da minha experiência daquele momento, vista a esta distância de 40 anos, há três notas que sobressaem:

A crise de 62 representou um novo fermento democrático. Não foi o mero produto de uma aposta desta ou daquela organização da Resistência. Não foi o resultado da iniciativa de um aparelho político. Nela se exprimiu uma aspiração de participação cívica muito generalizada, que, começando na Universidade, galgou os seus muros e mobilizou a atenção de múltiplos sectores da sociedade portuguesa. Esta, a primeira nota.

À partida, existiam perspectivas diversas e sensibilidades distintas no movimento que reagiu contra a prepotência do regime: católicos, comunistas, liberais, socialistas e social-democratas, independentes dos mais diversos matizes. Entre essas sensibilidades havia alguma desconfiança ou, pelo menos, ausência de diálogo assíduo. Creio que o mérito das estruturas dirigentes da Crise residiu, em boa parte, na capacidade de estabelecer consensos e de ajudar a desfazer preconceitos e divergências. Podemos dizer que o compromisso e a unidade ganharam aqui um notável reforço. Esta é a segunda nota.

A terceira nota respeita ao significado que a crise teve para o Estado Novo. Até à segunda metade da década de 1950, o regime tinha contado com o apoio das elites. Os primeiros sinais de desafeição das elites remontam à campanha eleitoral de Humberto Delgado (1958), à Carta do Bispo do Porto (mesmo ano) e à movimentação estudantil em torno do Decreto 40900 (1956). A crise de 1962 sincronizou os diversos descontentamentos (de católicos, de estudantes, de liberais e oposicionistas) no interior da instituição de formação das elites, a Universidade. Podemos dizer que esta crise prenunciou, neste sentido, o fim do Estado Novo.

Analisados, embora de modo sintético e de forma esquemática, os aspectos mais significativos, é talvez útil reflectir sobre a lição que encerra para o presente.

A resposta à situação inaceitável em que vivíamos representou uma escolha. Essa escolha foi a de correr riscos, recusando o conformismo egoísta dos bem instalados. Creio que essa mensagem mantém intacta a sua validade.

Depois, é talvez importante frisar que essa resposta representou indignação perante a injustiça e a prepotência, representou ainda generosidade, pondo-se os interesses gerais acima das considerações particulares, representou vontade de participar e lutar por valores em que se acreditava, representou idealismo cívico. Hoje, as circunstâncias são totalmente diferentes. Creio, porém, que o essencial da atitude e dos valores continuam actuais.

Em terceiro lugar, penso que a Crise Académica de 62 contém uma mensagem de exigência, que tem valor na sociedade democrática. É preciso que façamos um esforço permanente de abertura das Universidades à comunidade e às suas expectativas e problemas. Todas as tentativas de isolar a escola numa espécie de redoma acaba, por a prazo, ter efeitos contrários ao que se pretende. Essa é também uma lição dos acontecimentos de 62.

Neste momento tão especial, quero prestar homenagem a todos – estudantes, professores, funcionários – que tiveram em 1962 um comportamento de coragem e desinteresse pessoal, pondo em risco as suas situações. A maioria, felizmente, está entre nós. Outros, porém, já partiram, mas continuam na nossa lembrança.

Como costumávamos afirmar nesses tempos tão exaltantes, continuamos em "vigilância democrática". O que quer dizer que continuamos fiéis aos sonhos da nossa juventude de construir um mundo mais justo e mais digno para todos.