Tribunal de Justiça


25 de Janeiro de 1999


Senhor Presidente do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias
Senhor Presidente do Tribunal de 1ª Instância

Meritíssimos Juizes
Minhas Senhoras e meus Senhores
 
É para mim um privilégio poder dirigir-me às instâncias jurisdicionais das Comunidades, instituição exemplar que representa um pilar fundamental da União Europeia enquanto comunidade democrática, e a defesa dos seus valores perenes, do Direito e da Justiça como base essencial do processo de integração europeia, projecto dinâmico e original no qual Portugal está activamente empenhado.

Agradeço-vos, pois, esta oportunidade que honra o país que aqui represento, e desejaria, antes de mais, saudar os membros do Tribunal de Justiça e do Tribunal de 1ª Instância, assim como todos quantos trabalham nestas instâncias, expressando-lhes o meu reconhecimento pelo importante trabalho que desenvolvem em prol dos ideais europeus.

O papel determinante do Tribunal de Justiça no processo de construção e integração europeia é unanimemente reconhecido e tem sido, a diversos títulos, justamente salientado.

A União Europeia, tal como a conhecemos, seria seguramente diferente, ou, pelo menos, seriam significativamente diversos os ritmos e os inerentes custos da sua construção, sem o contributo estabilizador, harmonizador, mas não menos gerador de estímulos e impulsos decisivos que lhe foi proporcionado pelo Tribunal.

Designadamente pela elevada qualidade da sua jurisprudência, mas também através da forma como tem sabido combinar contenção e ousadia, gradualismo e inovação, o Tribunal é largamente responsável pela solidificação dos alicerces de uma verdadeira carta constitucional europeia e pela afirmação progressiva, mas constante, da Comunidade Europeia enquanto comunidade de direito.

O contributo decisivo do Tribunal na construção da unidade europeia tem-se desenvolvido nos mais diversos domínios, desde a livre circulação à liberdade de estabelecimento, da proibição de discriminações no trabalho à igualdade entre sexos, da preservação do equilíbrio institucional interno à garantia da legalidade comunitária, desde a política agrícola comum à política social e ao direito da concorrência.

Por sua vez, os seus resultados positivos mais evidentes reflectem-se na forma como o Tribunal de Justiça tem contribuído para uma repartição harmoniosa de competências entre os Estados membros e a Comunidade e para a garantia do equilíbrio institucional interno. Reflectem-se, de igual modo, na eficácia com que, sem prejuízo do acolhimento e recepção dos princípios e tradições jurídicas fundamentais das ordens jurídicas nacionais, tem desenvolvido a autonomia e especificidade do direito comunitário, assegurado a sua interpretação e aplicação uniformes e coerentes e garantido o seu primado e efeito directo.

Pretendo, todavia, salientar aqui a importância de um domínio -o da protecção dos direitos fundamentais- onde a jurisprudência do Tribunal se revelou determinante e onde se abrem perspectivas renovadas de desenvolvimento.

Embora os tratados fundadores não referissem os direitos fundamentais como fonte de direito, o Tribunal de Justiça, em diálogo constante com os órgãos jurisdicionais dos Estados membros e, em particular, com alguns dos seus Tribunais constitucionais, soube assumir a respectiva tutela.

Para tanto, considerou os direitos fundamentais como princípios gerais de direito comunitário mediante o reconhecimento da sua integração no património comum da tradição jurídica europeia, igual e especialmente reflectida, entre outros textos de direito internacional, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Nesse sentido, os direitos fundamentais puderam ser integrados no direito comunitário e os actos das instituições valorados e controlados em função desse parâmetro. E isso ocorreu nas diferentes dimensões em que o reconhecimento dos direitos fundamentais se traduz, desde a garantia da propriedade à proibição da discriminação, à liberdade de circulação ou à tutela dos direitos de personalidade, à medida da correspondente expansão extensiva do direito comunitário.

Quaisquer que sejam as dúvidas e incertezas que um tal modo de inclusão dos direitos fundamentais possa ter suscitado, pelo menos quando comparado com outras soluções possíveis, a verdade é que foi a vasta elaboração jurisdicional prosseguida pelo Tribunal de Justiça que abriu o caminho do actual reconhecimento institucional da tutela dos direitos fundamentais na União Europeia.

No fundo, foi a jurisprudência neste domínio do mais alto tribunal comunitário que confrontou os Estados membros com a necessidade de suprirem, a partir do Acto Único Europeu, o silêncio dos textos iniciais.

Um passo importante nesta direcção foi dado pelo Tratado da União Europeia, quando consagrou a necessidade de observância dos direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados membros.

Todavia, uma escolha política que, na altura, colocava a tónica mais nas exigências de segurança do que no terreno dos direitos determinou que aquela declaração, cujo alcance não deve ser menorizado, fosse contrabalançada por uma restrição que, em alguma medida, lhe retirava significado.

É que, para o Tratado da União, as competências jurisdicionais do Tribunal de Justiça não se exerciam no domínio do chamado terceiro pilar, relativo à cooperação nos assuntos internos e da justiça. Então, a ausência do controlo jurisdicional impedia que o Tribunal pudesse introduzir, aí, as formas de tutela a que recorria no domínio da integração comunitária e, nesse sentido, marcava a diferença entre o pilar comunitário e o terceiro pilar.

A verdade é que esta diferenciação era paradoxal, pois é neste último pilar que se concentram as competências atribuídas pelos Estados à União que, pela sua natureza, mais susceptíveis são de afectar as liberdades individuais fundamentais. De facto, a articulação das políticas comunitárias em matéria de, por exemplo, imigração e de acesso ao território, mesmo que feita sob a protecção das ordens jurídicas nacionais, pode traduzir-se em consequências delicadas.

O Tratado de Amesterdão procura responder a este tipo de preocupações, designadamente quando retira, no plano jurisdicional, significativas consequências do estabelecimento de um espaço europeu de liberdade, segurança e justiça como objectivo da União.

No fundo, este objectivo não significa mais que a ideia de realização plena do princípio do Estado de Direito no espaço comunitário, o que, tendencialmente, obriga à superação dos anteriores défices de sindicabilidade e controlo jurisdicionais.

Nesta perspectiva, as alterações introduzidas pelo Tratado de Amesterdão, repercutindo significativamente na atribuição de novas competências e responsabilidades ao Tribunal de Justiça, reflectem-se, nessa exacta medida, num reforço da tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos europeus.

Isso não deriva tanto da atribuição expressa de competência ao Tribunal de Justiça para efeitos do controlo dos actos das Instituições atinentes aos direitos fundamentais, uma vez que o Tribunal entendia já poder fazer este controlo em tudo o que respeitava aos domínios sobre que tinha competência, nem da redefinição do âmbito, designação e conteúdo do terceiro pilar e das competências que, condicionalmente, nele pode passar a exercer o Tribunal de Justiça.

Referi-me, sobretudo, às verificadas absorção do acervo de Schengen pela União Europeia e transferência de parte das matérias que, no Tratado da União, integravam o terceiro pilar para o âmbito da esfera comunitária.

Desta forma, questões tão sensíveis para as liberdades individuais como são as que respeitam às consequências jurídico-civis e administrativas de matérias como vistos, asilo, imigração e outras políticas relativas à circulação de pessoas passam a estar sujeitas à jurisdição do Tribunal de Justiça.

Assim, o percurso iniciado pelo próprio Tribunal de Justiça ao declarar-se, há mais de duas décadas, vinculado pelo património comum do direito europeu na interpretação e aplicação dos actos comunitários conhece mais uma etapa, a que não se teria, porventura, chegado sem o impulso decisivo do Tribunal.

As competências que no Tratado da União Europeia os Estados membros decidiram articular entre si em termos de pura cooperação integram-se, agora, num domínio em que o controlo jurisdicional é pleno.

Em termos substantivos, há aqui um claro sentido de remissão do desenvolvimento da construção europeia para um quadro balizado pela observância e tutela dos direitos fundamentais.

Ora, esta evolução qualitativa não deixará, por certo, de se reflectir nos planos organizativo e procedimental de forma tanto mais complexa quanto tivermos igualmente em conta, não apenas o crescimento quantitativo esperado, como também a especialização de regimes e a modulação das competências atribuídas ao Tribunal de Justiça consoante os diferentes domínios em que são exercidas.

De tudo o que resulta, mesmo sem considerar o alargamento da União Europeia - cujas possíveis consequências foram objecto do interessantíssimo debate que me acabou de ser proporcionado e que sinceramente agradeço - de tudo o que resulta, dizia, uma evidente necessidade de adaptação das estruturas do sistema jurisdicional comunitário às novas circunstâncias.
 
 
Senhor Presidente do Tribunal de Justiça
Senhor Presidente do Tribunal de 1ª Instância

Meritíssimos Juizes
 
A qualidade do desempenho do Tribunal de Justiça e a fina sensibilidade como tem sabido lidar com os problemas mais delicados têm sido, sem dúvida, factores que lhe têm permitido assumir-se progressivamente como tribunal supremo responsável pela realização da justiça constitucional da União Europeia.

De facto, o Tribunal de Justiça é merecedor das mais elevadas expectativas em poder continuar a desempenhar, com o sucesso unanimemente reconhecido, as suas anteriores e renovadas funções de revelação dos limites da repartição de competências entre a Comunidade e os Estados membros, de garantia do equilíbrio institucional interno, de salvaguarda dos princípios fundamentais dos Tratados, de protecção dos direitos fundamentais e de desenvolvimento do direito comunitário.

Os planos organizativo, estatutário e processual devem poder corresponder à continuação da excelência qualitativa do desempenho que tem sido assegurado pelo Tribunal de Justiça.

Mas, essa é já uma responsabilidade e uma tarefa, não apenas do Tribunal de Justiça, mas que a todos apela e mobiliza, conscientes que estamos que, cada vez mais, a organização jurisdicional é um factor essencial de afirmação da Comunidade enquanto comunidade de direito e, consequentemente, de realização do princípio do Estado de Direito no espaço comunitário.