Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão da Abertura do Colóquio "Poder Local em tempo de globalização: uma história e uma futuro"

Coimbra
10 de Abril de 2002


Grato pelo vosso convite, quero em primeiro lugar manifestar a honra e satisfação com que participo, uma vez mais, nas actividades da Universidade de Coimbra. Estamos perante uma iniciativa do Instituto de História Económica e Social da Faculdade de Letras que, além da pertinência académica do tema – poder local e globalização – se propõe contribuir para uma reflexão indispensável a todos os que se interessam pelas dinâmicas territoriais e institucionais, a sua história, modelos e perspectivas de evolução. É o meu caso, como se sabe.

Há pouco mais de um mês, estive aqui nesta Universidade, a convite do Instituto de Direito Penal e Europeu da Faculdade de Direito, participando nos trabalhos de um Curso de Pós-Graduação. Abordei então o tema do desafio europeu para o nosso país.

Pois bem, ao abrigo da liberdade académica, marco da Universidade, em geral, e desta, em particular, quero também hoje partilhar convosco algumas ideias e preocupações que a questão do poder local em contexto global me suscitam.

A minha intervenção toma o município e as políticas municipais como objecto de análise. A transposição do local para o municipal, na relação local/global, não é automática, e essa dificuldade constitui exactamente o meu primeiro tópico de abordagem. Num segundo ponto, analisarei os impasses das políticas municipais disponíveis para responderem adequadamente às exigências da globalização. Finalmente, enunciarei algumas das direcções em que será, no meu entender. necessário caminhar.

Quanto ao primeiro tópico: o municipal em face do global.

Pode perguntar-se se o confronto destas duas escalas territoriais faz sentido, dado o abismo imenso que as separa, em matéria tanto de recursos como de capacidades.

Acresce que, no caso português, esse abismo é acentuado pela persistência de uma forte desigualdade de poderes entre o Estado central e os municípios, o que fragiliza ainda mais a margem de manobra destes últimos. Mesmo à escala estritamente local, muitas competências estratégicas pertencem a decisões directamente dependentes do Estado central e dos seus diversos organismos, não existindo qualquer tipo de organização político-administrativa intermédia, de nível regional ou supra-municipal, que dê maior coerência local aos investimentos sectoriais do Estado.

Registou-se no nosso país um bloqueio no processo de descentralização, que só em parte pode ser considerado um ónus da não criação de regiões. Efectivamente, outras soluções de concertação entre competências e recursos municipais possíveis não têm sido estimuladas, e nalguns casos, têm sido até desincentivadas.

Esta situação é particularmente gravosa – permitam-me que o sublinhe, com a autoridade de quem insistentemente a tem vindo a apontar desde há muito. O efeito da globalização representa riscos e oportunidades, para um pequeno Estado como o nosso, integrado todavia num espaço europeu alargado.

Ora uma das formas de evitar tais riscos (e aproveitar oportunidades) consiste precisamente em produzir internamente condições favoráveis para que pequenos conjuntos sócio-territoriais sejam capazes de gerir capazmente as estratégias ditas "glocais", ou seja estratégias de valorização do local no quadro global.

De facto, admite-se cada vez mais que, face ao efeito normalizador do processo de globalização, as pequenas diferenças locais adquirem uma nova importância, desde que atentas a novas oportunidades que podem amplificar potencialidades e vantagens competitivas.

Mas, para tal, é indispensável repensar e modificar o modelo institucional do municipalismo português, bem como da respectiva coordenação intermunicipal, em conjugação com a matriz das dinâmicas territoriais que a modernização e a globalização geram e exigem.

Quanto ao segundo tópico: uma agenda de debate sobre a reforma do modelo municipal.

A escala pertinente para construir e gerir respostas positivas aos desafios da globalização (ou evitar ameaças daí decorrentes) exigirá concerteza bastante mais do que a simples soma descoordenada e errática dos municípios e das coligações institucionais de base estritamente municipal.

A resposta municipal aos desafios globais resulta, assim, de uma equação de várias incógnitas cuja resolução passa por uma profunda revisão do enorme fosso entre os níveis do Estado Local e Central.

Os municípios são territórios-sociedades, em geral demasiado frágeis e com um recorte administrativo (mesmo contando com as poucas experiências positivas ao nível da Associações de Municípios e Juntas Metropolitanas) que só ocasionalmente se articula com a coerência e a dinâmica sócio-territorial das cidades, das conurbações (de raiz metropolitana ou não) e das unidades regionais.

A construção de condições competitivas (mais ambiciosas quando a fasquia se eleva ao nível global) exige pois estruturas de regulação complexas capazes de articular diferentes escalas de administração e realidades socio-territoriais e de combinar distintas legitimidades. Exige também a definição de estratégias e projectos claramente delimitados e suportados por estruturas de concertação baseadas em consensos amplos e capacidades operacionais.

Importaria proceder a um estudo de avaliação e de difusão de "boas práticas", onde se tenham verificado experiências deste tipo e onde os municípios (isolados ou associados) tenham encontrado modelos organizacionais de arquitectura variável, por projectos, adaptados à contratualização Estado Local /Estado Central / actores privados e associativos. Desse estudo poderiam resultar indicações preciosas para uma redefinição dos modelos de concertação entre municípios e entre estes e o Estado.

Os desafios da competitividade, qualquer que seja a escala, exigem uma forte renovação das políticas municipais até hoje caracterizadas, grosso modo por:

- se centrarem demasiado no âmbito municipal (apesar dos bons exemplos de associativismo como no Vale do Ave, mas, ao contrário, no quase bloqueamento das Juntas Metropolitanas);

- apresentarem um fraco e avulso investimento na qualidade urbanística (em detrimento, compreensível, das prioridades ao saneamento e aos equipamentos colectivos; mas em detrimento, também, do volume de construção com os impactes conhecidos sobre a estrtura das finanças locais) ;

- terem dificuldade em dar continuidade a políticas de médio-longo prazo (por escassez de recursos próprios, entre outras razões) e, ao contrário, estarem dependentes da variabilidade dos programas e financiamentos dos QCAs, do Estado Central ou dos Programas Regionais;

- terem um défice de cultura de planeamento estratégico, e, ao contrário, estarem demasiado "dependentes da dependência", nas suas mais diversas formas. A possibilidade de construir políticas "de baixo para cima", racionalizando recursos e administrando a sua necessária escassez, pode encontrar aqui um sério obstáculo;

- acumularem um desequilíbrio crescente entre competências, recursos financeiros e, sobretudo, falta de tecnoestruturas preparadas para gerir os novos desafios (política de atracção do investimento, gestão dos equipamentos públicos locais, ambiente, política de juventude e outras políticas sociais);

Essa renovação de políticas também não pode ser a mera transposição dos exemplos internacionais de grande impacte mediático (como Bilbau, Barcelona, por exemplo), ou de alguns temas em voga (museus, parques de ciência e tecnologia, parques temáticos, organização de eventos) só realizáveis com volumes de financiamento excepcionais e intransferíveis para a maior parte do nosso universo municipal.

Chegado a este ponto, creio ter deixado claro em que sentido julgo indispensável uma reforma do modelo municipal para responder aos novos problemas do local face ao global.

Os argumentos que adiantei não ignoram no entanto que as especificidades do território nacional devem ser identificadas e ponderadas, todas elas, quando se trata de reposicionar o papel dos municípios perante as questões da globalização

De facto, deparamo-nos com diferentes situações. Por exemplo:

- conurbações metropolitanas (com maiores possibilidades de participarem em subsistemas internacionais);

- conurbações não metropolitanas com elevado potencial produtivo fortemente internacionalizado (Ave, Sousa, Vouga, Leiria-Marinha Grande, Médio Tejo, etc. onde os desafios são os da modernização/valorização do tecido produtivo, dos empresários, da formação profissional, das infra-estruturas e serviços de apoio à actividade económica;

- áreas de forte potencial turístico (as tradicionais, como o Algarve ou a Madeira, e as emergentes, como o Douro Vinhateiro ou os Açores);

- regiões em perda, demograficamente rarefeitas e envelhecidas com uma economia rural em crise ou em completa desagregação (onde é preciso "reinventar" recursos assentes no património cultural e natural, enraizar empreendedores, tirar partido das qualidades ambientais).

Finalmente, é preciso distinguir políticas "passivas" e "activas". Nas passivas, i.e., menos reactivas, valem as acções qualitativas incidindo na qualidade dos territórios (ambiente, património, ordenamento) e, sobretudo, na abertura de possibilidades às pessoas (acesso aos bens e serviços públicos, à informação, à escola, às tecnologias, redes e nós de circulação da informação). São políticas de médio-longo prazo, essenciais para assegurar a sustentabilidade das dinâmicas territoriais.

Nas "activas" convém ter bem claras as possibilidades e os recursos, a selectividade dos projectos (para concentrar recursos), a formação de coligações efectivamente operacionais e mais assentes nas suas convicções e capacidades do que num qualquer assistencialismo.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

As questões territoriais, do dinamismo e competitividade territorial, tomaram uma dimensão crescente nas preocupações dos responsáveis políticos. Compreende-se que assim seja. Se não são questões novas, são pelo menos questões antigas que assumem hoje novas configurações e determinantes.

Para compreendermos melhor os novos problemas, tem sido fundamental o papel das Ciências Sociais. Graças à informação e ao conhecimento que nas últimas décadas foi produzido pelas mais diversas equipas de investigadores que se ocupam do território, dispomos hoje de novas condições para definir objectivos e traçar estratégias de intervenção.

Por tudo isso, quero saudar a realização deste Colóquio. Obrigado pelo vosso contributo. Bom trabalho!