Discurso do Presidente da República por ocasião das Comemorações Oficiais do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

Beja
10 de Junho de 2002


Celebramos hoje Portugal e o vínculo que liga todos os portugueses, estejam onde estiverem. Celebramos os laços de pertença e de partilha que unem as gerações actuais e também os laços que as ligam às gerações precedentes. É esse um vínculo histórico, legado do passado, que actualizamos, mas é sobretudo um vínculo que se projecta, a cada momento, nos sonhos e aspirações que temos para o nosso futuro colectivo. Queremos que esse vínculo se prolongue, vigoroso e solidário, nas gerações futuras , as daqueles que continuarão a nossa ambição para Portugal. Sabemos que, sejam quais forem as dificuldades, conseguiremos, como no passado e uma vez mais, vencê-las.


Portugal é a sua identidade, a sua história e a sua cultura, que tem em Luís de Camões o símbolo maior. E é também o que para ele ambicionamos, o que por ele estamos dispostos a fazer. Queremos que Portugal prospere, se desenvolva e seja mais justo. Queremos ser respeitados pelo nosso exemplo de defesa dos valores da tradição humanista. Devemos estar dispostos a tudo fazer para que tal aconteça. É isso que reafirmamos neste Dia, em Beja, terra de cruzamentos culturais, onde nasceram Al-Mu’tamid e Soror Mariana Alcoforado, nomes universais.

Portugueses,

Tendo presentes o significado e os desafios que se põem à nacionalidade, nas suas modernas relações com a democracia e a cidadania, proponho hoje à vossa reflexão três temas.

O primeiro diz respeito às obrigações que sobre cada um de nós recaiem enquanto membro de uma comunidade nacional; o segundo, aos deveres do Estado de assegurar a coesão nacional; o terceiro, refere-se ao espírito cívico como condição para garantir uma sociedade aberta e, simultaneamente, integrada.

Quanto ao primeiro tema, o das nossas obrigações, trata-se de reafirmar a existência de deveres indeclináveis de cada um de nós perante os outros e perante a comunidade. Essa deve ser a primeira expressão do patriotismo. A cidadania, que garante direitos, impõe também deveres elementares que não podem ser deixados para trás. Esquecemos muitas vezes o que devemos à comunidade a que pertencemos, parecendo predispostos a só reivindicar direitos, não cumprindo as nossas obrigações.

Estes comportamentos de desrespeito pela autoridade democrática e lesivos do interesse comum, que se traduzem, entre outros exemplos, na fraude ou evasão fiscais e no número dramático de acidentes de viação, representam as várias faces da mesma atitude caracterizada pela falta de consciência cívica. Mais do que isso: são sinais de que Portugal não atingiu, em muitos aspectos da vida colectiva, a modernidade a que aspiramos, pois a modernidade implica uma cultura de rigor, uma nova atitude e um civismo apurado.

O respeito do Estado democrático pelo cidadão e o respeito do cidadão pelo Estado democrático são duas atitudes inseparáveis uma da outra. Temos de quebrar o círculo vicioso que opõe o Estado ao cidadão e o cidadão ao Estado, que leva os cidadãos a usarem como desculpa, para não cumprirem os seus deveres, a desconfiança e a má ideia que têm do Estado; e que leva o Estado a desculpar-se por não ser mais eficaz com a razão de que os cidadãos não cumprem as suas obrigações. Se os cidadãos têm de cumprir a sua parte, o Estado deve também exercer eficazmente a sua autoridade e as suas responsabilidades, respeitar os seus limites, servir os cidadãos e a comunidade nacional. É preciso fundar a relação entre os cidadãos e o Estado numa nova e mútua confiança. Chegamos assim ao segundo tema, o dos deveres do Estado quanto à solidariedade nacional.

As responsabilidades da democracia e os desafios da modernidade a que temos de responder criam-nos o dever de assegurar a igualdade de oportunidades a todos os portugueses. Reafirmo, hoje, de novo, esta exigência fundamental.

A igualdade de oportunidades é um princípio e uma meta da República moderna em que vivemos. Significa que todos os portugueses devem ter a mesma possibilidade de acesso à cidadania plena: à educação e à cultura, à segurança, à saúde e à justiça; significa, em síntese, que todos os portugueses têm, à partida, as mesmas possibilidades de desenvolvimento das suas capacidades e vocações, de realização profissional e pessoal, independentemente da origem familiar, da terra em que nasceram, do sexo, da religião que professem – ou que não professem.

O reconhecimento do princípio da igualdade de oportunidades representou uma mudança fundamental na vida da humanidade. É por ele que verdadeiramente se concretiza o primeiro dos direitos consagrados na Declaração Universal, que diz "Os homens nascem livres e iguais". O reconhecimento da igualdade de oportunidades tem implicações em vários domínios, que vão desde os direitos políticos aos direitos sociais.

Há muito a fazer, mas isso não impede de reconhecermos que muito foi já feito. Ninguém pode negar que, nas últimas décadas, se obtiveram avanços significativos. Um Estado social incipiente deu lugar a um Estado social de matriz europeia, assegurando funções sem precedentes. Caminhámos para o acesso geral à educação, aos cuidados de saúde, às pensões de reforma.

É neste caminho que devemos prosseguir, já que vários indicadores continuam a sugerir que subsistem grandes desigualdades de oportunidades entre, por um lado, os portugueses com rendimentos médios e os habitantes das regiões prósperas do litoral, e, por outro lado, os portugueses das classes economicamente débeis e os habitantes das regiões do interior, em muitos casos em vias de desertificação. Em alguns destes grupos, os jovens têm especiais dificuldades em aceder às oportunidades a que têm direito.

O Estado português, para exigir mais dos cidadãos, tem de os servir melhor. Tem de combater a exclusão e a discriminação social, etária ou territorial. Tem de garantir a solidariedade. A igualdade de oportunidades é inseparável da ideia moderna de cidadania. É este o meu terceiro tema: o da necessidade de recuperarmos o ideal de cidadania. O fermento da democracia é a cidadania e a participação.

A cidadania consagra os valores da liberdade individual e da igualdade na definição dos direitos e deveres políticos, reconhecendo os cidadãos como titulares primeiros e activos da soberania. As lições da história demonstram, infelizmente, como a democracia e os seus valores nunca estão definitivamente adquiridos. É preciso lutar por eles, transmiti-los, revigorá-los, renová-los.

Há, de facto, fenómenos que mostram o alheamento dos cidadãos da política e o seu afastamento das instituições representativas. A indiferença é muitas vezes a resposta à indiferenciação das propostas – e à sua falta de profundidade e ambição. A descrença das pessoas acompanha frequentemente a crise de confiança das instituições em si próprias. Para mais, o facto de se ter criado a ideia de que a actividade política exige recursos financeiros crescentes, estabelece novas desigualdades no acesso à política. Sobre isso tenho advertido o país.

A crescente despolitização, que se exprime no declínio da participação nos partidos políticos, nas associações cívicas e nos actos eleitorais, é um sinal preocupante. No limite, estará em causa a própria credibilidade da democracia, quando os cidadãos deixam de exercer plena e seriamente os seus direitos e deveres políticos. Eu acredito que esta tendência pode ser invertida e assumo esse combate como uma prioridade. O exercício cívico é indispensável para prestigiar as instituições e os seus titulares, de forma a que os cidadãos as reconheçam como depositárias e zeladoras do interesse nacional e do bem da comunidade. Este é um combate que nos responsabiliza a todos: Governo e Oposição, associações representativas e profissionais, empresarias, mulheres e homens de cultura e da comunicação, comunidade científica, cidadãos em geral.

Por outro, o lugar insubstituível da cidadania na comunidade nacional tem sido posto em causa pela dupla pressão das realidades supranacionais e das realidades regionais. A isso junta-se o peso excessivo e indevido dos interesses económicos, corporativos e de outro tipo. Finalmente, o conceito integrador de cidadania tem sido ainda fragilizado pelo ressurgimento de particularismos agressivos de carácter religioso, étnico e cultural.

Ao reafirmarmos o primado dos valores da cidadania, não podemos ignorar que ela está profundamente ligada a uma comunidade feita de história comum, de afectos e de aspirações. O quadro nacional continua a ser indispensável para realizar o contrato político entre os cidadãos e o Estado. Não se trata de um quadro imutável. Mas a afirmação tão necessária de uma cidadania europeia não substitui as cidadanias nacionais.

A conciliação das duas formas de cidadania é mesmo a condição da construção estável de um projecto político europeu, sejam quais forem os contornos que vier a ter.

A defesa do espírito cívico, do exercício pleno dos direitos e dos deveres políticos dos cidadãos e da coesão da comunidade política nacional é indispensável para construir uma sociedade aberta e tolerante, capaz de opor ao medo e à insegurança o direito e a justiça.

Esta questão ganhou mais relevância desde que a sociedade portuguesa passou a receber um número significativo de imigrantes. Também os quero saudar neste Dia. Esta é uma mudança profunda, pois fomos historicamente uma nação de emigrantes. Creio ser muito importante, por isso, insistir em duas linhas de orientação, que decorrem da nossa melhor tradição política e da nossa obrigação constitucional.

A primeira exprime o nosso respeito absoluto pela dignidade humana como um princípio universal: os imigrantes estrangeiros, refugiados, visitantes ou trabalhadores, não têm iguais direitos políticos, mas têm os mesmos direitos cívicos, económicos e sociais dos portugueses. O Estado obriga-se a proteger esses direitos, com todo o rigor e sem a menor tolerância pelos abusos numerosos que visam os mais vulneráveis e exploram os piores preconceitos do racismo. Tais abusos vão desde o tráfico de pessoas à violação das leis do trabalho e da segurança.

A segunda orientação refere-se à nossa capacidade de integração dos imigrantes estrangeiros na comunidade política nacional. Devemos manter abertas as portas da nossa comunidade, com moderação e dentro das regras legais que regulam a aquisição da nacionalidade e, portanto, dos direitos políticos próprios da cidadania.

Mas também devemos exigir uma demonstração real da vontade de integração desses imigrantes na nossa comunidade nacional. A contrapartida da nossa abertura é a rejeição firme dos isolacionismos religiosos e culturais: não podemos dar direitos políticos a minorias que recusam os nossos valores e não acatam as nossas leis. Queremos receber dignamente, isso sim!, os cidadãos livres que escolheram partilhar o nosso destino colectivo e respeitar a nossa ordem jurídica.

Portugueses,

A coesão nacional, a concretização da igualdade de oportunidades e a afirmação da cidadania serão, nos próximos tempos, submetidos a provas exigentes e a grandes desafios. Todos sabemos que enfrentamos uma difícil conjuntura financeira, com efeitos económicos e sociais.

A desaceleração do crescimento económico pode conter o risco de os mais pobres serem os mais sacrificados e de a igualdade de oportunidades sofrer um recuo.

O que tem de ser feito deve-o ser eficazmente, não pondo, no entanto, nunca em causa princípios fundamentais do Estado de direito e a coesão nacional. Os sacrifícios têm de ser distribuídos equitativamente. Não podemos deixar que os mais pobres sejam, outra vez, os mais atingidos. Temos de aproveitar as dificuldades para sermos mais rigorosos na avaliação e no trabalho. É preciso distinguir-se o que é investimento necessário, útil e indispensável, não devendo ser prejudicado, do que é desperdício e mau uso, podendo e devendo ser eliminado. E sabemos que os critérios dessa avaliação não podem ser apenas economico-financeiros.

Temos de mobilizar os cidadãos para o esforço de recuperação e desenvolvimento. Possuímos energias morais para vencer. Não deixemos que o medo, o pessimismo e a depressão nos dominem. Devemos responder às dificuldades e aos receios fazendo prevalecer os valores da cidadania, da solidariedade e da coesão sobre os da descrença, da insegurança e do egoísmo.

Neste Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, quero reafirmar a todos os portugueses a minha confiança no nosso futuro. É nas dificuldades que se conhece a fibra das mulheres e dos homens e dos povos. Para os portugueses, como nos ensinou Camões, os momentos difíceis foram sempre momentos de responsabilidade e de desafio. Estou certo de que mais uma vez assim acontecerá!


Viva Portugal!