Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão de Abertura do Seminário Internacional sobre "O Modelo Político para a Europa do Século XX"

Palácio Nacional da Ajuda
04 de Junho de 2002


Senhor Presidente da República da Eslovénia,
Senhores Ministros
Senhor Comissário
Senhores Professores e caros convidados’
Minhas Senhoras e Senhores

É com particular prazer que me dirijo a todos vós, organizadores, patrocinadores, convidados e participantes neste Seminário Internacional, para vos saudar calorosamente e para vos dirigir uma palavra de grande apreço pelo empenho que desde a primeira hora manifestaram na organização deste encontro. Não duvido que representa um contributo importante para o debate sobre o futuro da Europa, que é vital seja prosseguido e aprofundado.

A feliz circunstância de termos connosco o Presidente Kucan da Eslovénia, que prontamente se disponibilizou a participar neste Seminário, e cuja presença tanto nos honra, bem como a qualidade e representatividade das personalidades convidadas, constituem por si só uma sólida garantia do sucesso desta iniciativa. Mas acontece ainda que o tema escolhido – Um modelo político para a Europa do século XXI – e as questões que aqui serão abordadas reflectem algumas das grandes preocupações e desafios com que nesta hora a Europa se defronta.

A participação activa de Portugal no processo de construção europeia é uma prioridade política, que urge traduzir em propostas concretas e linhas de orientação claras. Mas não bastará que os poderes públicos definam e promovam uma estratégia nacional. É fundamental a participação activa da sociedade civil nos debates em curso, é fundamental que cada um se interesse e participe na clarificação do futuro da Europa e que, na sua esfera própria, seja responsabilizado pelo êxito deste debate. O apelo que lanço é à vossa consciência como cidadãos. O futuro depende da energia que puserem neste desígnio, da força, rigor e clareza do consenso nacional que se desenhar em torno desta causa.

No debate sobre a Europa joga-se o nosso futuro. Da discussão em curso e das reformas que daí resultarão, sairá ou uma Europa reforçada ou uma Europa mais fraca porque a manutenção do status quo redundará sempre em menos Europa. Mas resultará também um Portugal mais ou menos presente, com uma posição fortalecida ou enfraquecida, consoante a nossa capacidade para fazer valer uma visão forte da Europa consentânea com uma visão clara do futuro que queremos para Portugal.

A Europa precisa da participação activa da sociedade civil neste debate. Esta é uma oportunidade de os europeus se reconciliarem com a Europa. Precisamos de uma Europa participada, de uma renovação do compromisso e da confiança dos europeus na construção europeia.

Tentando dar um contributo modesto sobre as questões que aqui serão debatidas, abordaria agora três tópicos que considero fundamentais para a consolidação e o aprofundamento do processo de integração europeia como um grande projecto federador dos povos e unificador do continente europeu.

Primeiro, permitam-me que evoque brevemente o momento crucial que a Europa atravessa, confrontada com o desafio do alargamento.

Nesta época de charneira em que vivemos, marcada pela globalização galopante, a unificação iminente do continente europeu em torno de um projecto de vida assente nos ideais comuns da democracia, do desenvolvimento, da coesão económica e social e da diversidade cultural, partilhado pelos seus quinhentos milhões de habitantes, constitui, sem dúvida, motivo de incomensurável satisfação.

A Europa prepara-se para dar um sinal inadiável ao mundo. Sinal de que está empenhada em unir os países do continente europeu em torno dos ideais democráticos, independentemente do seu nível de riqueza e desenvolvimento. Sinal de que está disposta a lutar pela integração económica e social do espaço europeu, pelo seu desenvolvimento e coesão, mesmo se para isso os seus povos tiverem de dar provas de uma solidariedade acrescida. Sinal de que acredita na construção europeia como projecto colectivo de sociedade e uma comunidade de destino, federador dos povos e das Nações em torno de ideais comuns que não prejudicam nem as suas identidades próprias nem a sua diversidade. Sinal ainda de que compreendeu que o mundo moderno da globalização planetária exige a unificação do continente europeu. Ou seja, que a Europa se fará com todos ou nunca chegará a cumprir o seu desígnio.

O alargamento representa assim a oportunidade histórica da Europa, fundadora deste século. Mas, pelas dimensões e complexidade que reveste, o próximo alargamento coloca-nos também perante um desafio sem precedentes. Há que transformar este desafio numa ocasião de renovar a dinâmica europeia.

É esta aposta que devemos fazer, evitando a todo o custo que o próximo alargamento seja ocasião para digladiações entre Estados Membros, para arranjos avulsos marcados por uma total ausência do sentido do interesse geral e de uma visão para a Europa, assente num desígnio político a cumprir. Ao invés, tratar-se-á de aproveitar o desafio do alargamento para testar a nossa determinação colectiva em construir a Europa, para pôr à prova a nossa solidariedade e coesão e para restaurar os laços de confiança entre os Estados Membros. Tenhamos a inteligência e a lucidez de aproveitar esta oportunidade para renovar o pacto europeu e aprofundar o processo de integração política.

O meu segundo grupo de observações diz precisamente respeito ao aprofundamento da integração europeia.

A última Conferência Intergovernamental, que conduziu ao Tratado de Nice, tornou clara, de forma inequívoca, a sua dificuldade em realizar reformas de fundo. Impôs-se assim a decisão de recorrer a uma fórmula nova, mais abrangente e aberta, a Convenção.

Esta decisão, de grande coragem porque encerra todos os riscos das fórmulas inovadoras e desconhecidas, traduz a justo título a ambição que nos move: trazer à discussão as preocupações dos europeus quanto ao seu futuro, as suas expectativas e ambições para a Europa de amanhã.

E desde já se afirmam um conjunto de princípios irrefutáveis, de que os europeus no seu conjunto não deverão abdicar, sob pena de desfigurar por completo o projecto europeu:

-o princípio da igualdade entre os Estados, a garantia de que todos os Estados beneficiarão de um tratamento igual, independentemente do seu tamanho ou grau de riqueza;
-o princípio da cidadania europeia, de uma cidadania aberta, inclusiva e civicamente responsável, único meio duradouro para erradicar os extremismos e a intolerância;
-o princípio do desenvolvimento solidário, base da coesão económica e social, e fundamento último das políticas comuns, que o alargamento tornará mais do que nunca necessárias;
-o princípio do valor intrínseco da diversidade cultural, enriquecida pelos contactos entre povos e culturas diferentes, mas partilhando um património comum;
-por último, o princípio do reforço da presença da Europa no mundo, através do desenvolvimento de uma Política Externa e de Segurança Comum, porque é da união que resulta a força.

É esta a hora de pensar no modelo de Europa que queremos, de reflectir sobre a configuração política de uma União Europeia aprofundada. Só com uma Europa mais integrada do ponto de vista político poderemos superar as carências e as dificuldades que actualmente se fazem sentir e responder adequadamente aos desafios que o mundo globalizado nos coloca. O debate em curso, no seio da União e dos seus Estados Membros, visa justamente a definição de um modelo político que permita consolidar a unidade europeia, dinamizá-la e dar-lhe maior projecção e peso internacional.

O primeiro e mais elementar pressuposto do sucesso desta tarefa é a restauração da confiança entre os Estados Membros, seriamente comprometida pela multiplicação de confrontações e a proliferação de sinais dúbios e de derivas hegemónicas. A este respeito, creio que a reafirmação das finalidades da Europa e a renovação dos compromissos europeus por parte dos seus Estados Membros contribuiria para dissipar o mal-estar instalado e restabelecer a confiança.

A segunda condição prende-se precisamente com a consolidação dos princípios em que assenta a construção europeia. Temos a oportunidade de reforçar os fundamentos da Europa através da renovação do pacto europeu. É este o significado primeiro da ideia, que defendo, de dotar a Europa de um texto de tipo constitucional.

A terceira condição está ligada ao princípio, basilar, da igualdade entre os Estados. Sem a criação de condições que assegurem uma paridade de tratamento entre os Estados, o princípio de jure da igualdade perde todo o valor, amputando a Europa da sua trave mestra. Ora, sem esta base de sustentação, é a construção europeia que se desmorona.

Para que possamos dotar a Europa de um modelo político adequado, que se acomode das suas finalidades e responda às suas necessidades, a via a seguir passa pela criação de uma Federação de Estados-Nação. Trata-se de uma fórmula aparentemente equívoca, mas que exprime de forma suficientemente clara o facto de procurarmos um modelo sui generis, com características inovadoras, que se afasta de qualquer experiência jamais realizada, fazendo jus, precisamente, ao carácter único da história da integração europeia. É também uma forma de afirmar a nossa determinação colectiva em prosseguir um caminho pioneiro, mesmo se este encerra algumas incertezas.

A principal dificuldade com que nos confrontamos reside na necessidade de articular a Europa dos Estados com a Europa dos Povos, dupla base em que assenta a legitimidade europeia, e de vazar a equação resultante num sistema de instituições equilibrado.

Os modelos de tipo federalista que conhecemos resolvem esta dificuldade através do sistema bicameral. A segunda Câmara ou Senado funciona assim como um forum de representação paritária dos Estados, partilhando o exercício da função legislativa com uma Câmara dos Representantes. É uma solução que tem dado resultados plenamente satisfatórios nos casos conhecidos de experiências federalistas.

No entanto, a transposição deste modelo para a União Europeia depara-se, à partida, com dois problemas de fundo:

- primeiro, a União Europeia é constituída por Estados Nação com uma identidade forte, constituída pela história, apresentando uma profunda diversidade entre si, que pretendem manter e, se possível, desenvolver, embora cientes de que participam num projecto colectivo que os reúne em torno de objectivos e interesses comuns;

- em segundo lugar, a estrutura institucional da União Europeia mais do que numa separação de poderes assenta numa partilha de poderes, cuja geometria varia ademais consoante as matérias em causa pertençam ao Iº ou ao IIº e IIIº pilares; assim, por exemplo, a função legislativa é actualmente exercida por dois órgãos, o Conselho e o Parlamento Europeu, muito embora a Comissão detenha o direito exclusivo de iniciativa; mas o Conselho, também divide com a Comissão funções executivas, tanto mais extensas quanto as competências da União se têm vindo a alargar substancialmente nos últimos anos, abrangendo as matéria de política externa, de segurança e defesa.

Por conseguinte, a opção por um sistema bicameral de tipo federal, dispondo de um "Senado", em que os Estados estejam representados paritariamente, e que partilhe com a "Primeira Câmara" as funções legislativas, implica uma reforma profunda da actual arquitectura institucional uma vez que haverá que reequacionar a atribuição de competências de todos os órgãos bem como as condições do exercício dessas funções.

Não é uma via fácil, mas só tendo a coragem de iniciar esta mutação institucional conseguiremos estabelecer as bases de uma Europa mais integrada do ponto de vista político. O caminho a seguir pode, de resto, ser percorrido por etapas. Por exemplo, as propostas em discussão sobre a reforma do Conselho contêm várias pistas de reflexão e poderão constituir um começo.

Considero, no entanto, absolutamente indispensável encontrar mecanismos que salvaguardem o princípio da igualdade entre os Estados ou que obviem à tendência crescente ao recurso a práticas discriminatórias. Sem esta garantia, hipotecaremos em definitivo o futuro da Europa.

O reforço da Comissão contribuirá sem dúvida para alcançar este objectivo. Sendo a guardiã do interesse geral, obsta a que os interesses particulares prejudiquem e se sobreponham aos desígnios comuns. Entendo que a recente comunicação da Comissão vai no bom sentido e contém um conjunto de propostas que merecem ser exploradas.

Entendo também que a manutenção das presidências rotativas da União Europeia constitui uma expressão importante do princípio da igualdade entre os Estados e um elo de aproximação dos cidadãos à União, com um significado político não despiciendo. Para minorar os inconvenientes associados ao actual regime de presidências, poder-se-ão aperfeiçoar os seus moldes de funcionamento, por exemplo no caso da representação externa da União ou ainda a nível da continuidade e coerência da acção desenvolvida pelas sucessivas presidências.

Acresce que uma recondução do papel do Conselho Europeu, afinal um órgão de representação paritária dos Estados, às funções impulsionadoras e de orientação, que inicialmente justificaram a sua institucionalização, é um outro elemento político importante.

Por último, a instituição de um mecanismo flexível de controlo do princípio da subsidiariedade e da proporcionalidade, poderia constituir uma outra pista a explorar.

O último ponto que gostaria de abordar brevemente diz respeito às relações da Europa com os europeus.

Para que a unificação da Europa constitua verdadeiramente o marco fundador do século XXI, falta ainda realizar plenamente a cidadania europeia. Falta, dando como exemplo o caso de Portugal, cimentar a consciência de que ser português no século XXI é também e a título igual ser europeu. Ou seja, falta assumirmos, sem falhas, a nossa dupla cidadania, endossando também a responsabilidade individual e colectiva por esta comunidade de destino e de valores partilhados que a Europa representa.

Numa altura em que começam a proliferar comportamentos preocupantes de xenofobia e de intolerância e se multiplicam manifestações de discriminação e situações de exclusão acrescida, é importante lembrar que a União Europeia representa antes de mais um espaço de cidadania aberta e partilhada e que temos responsabilidades cívicas e éticas a que não nos podemos escusar.

Para realizar plenamente esta cidadania europeia aberta, inclusiva e civicamente responsável disporemos, quero crer, de um pacto constitucional que consagrará o conjunto dos direitos fundamentais, as liberdades cívicas, os direitos económicos e sociais dos cidadãos da Federação.

Mas tal não bastará para criar um espaço público europeu, para criar uma comunidade política e fazer vingar uma democracia europeia e participativa, que são os objectivos iniludíveis da Europa. Para tal, é necessário que os cidadãos se reconciliem com a Europa, se revejam nela e que renovem o seu empenhamento na construção de um espaço de vida comum, fundado em valores universalistas e numa visão humanista do mundo.

Os temas que vão ser aqui abordados hoje prendem-se com todas estas questões e, tenho a certeza, darão um precioso contributo para o debate sobre o futuro da Europa em que estamos empenhados.