Discurso do Presidente da República por ocasião da Reunião AD HOC Council

Lisboa
17 de Junho de 2002


Senhor Presidente,
Distintos membros do European Government Business Relations Council,
Minhas senhoras e meus senhores,


É, para mim, uma honra dirigir-me ao European Government Business Relations Council, que, em boa hora, se reúne em Lisboa.

Pediram-me para falar sobre Portugal na União Europeia e no mundo, durante quinze minutos. A brevidade, segundo Aristóteles, é a qualidade dos sábios e, como não me posso incluir nessa categoria, peço, desde já, a vossa indulgência se acaso exceder os limites que me são impostos.

Portugal mudou, radicalmente, nos últimos vinte e cinco anos.

Depois de ultrapassado o nosso longo ciclo imperial, a institucionalização da democracia pluralista criou as condições para restaurar a coesão nacional e a confiança dos Portugueses, ao mesmo tempo que nos abriu as portas da integração europeia.

Essa dupla viragem na política interna e externa, em que nos despojámos do mitos arcaicos e isolacionistas do nacionalismo autoritário para afirmar a nossa identidade histórica assente nos valores da cidadania livre e soberana, marcou o nosso destino.

De certo modo, no fim de uma longa aventura, iniciada com os feitos notáveis dos navegadores portugueses que inventaram a unidade do mundo, regressámos à Europa, ao nosso ponto de partida. Muitos temeram que esse regresso anunciasse uma crise funda da nossa identidade nacional, outros anteciparam um cansaço histórico, agravado pelas condições, tão difíceis e tantas vezes trágicas, que caracterizaram uma descolonização adiada.

Não eram temores vãos. Porém, em conjunto, a força da democracia, a vontade colectiva de construir a modernidade com os valores da liberdade e a atracção do ideal europeu deram-nos uma oportunidade de mudar no bom sentido e persistir no caminho de Portugal.

Soubemos não perder essa oportunidade histórica.

O sucesso da nossa transição democrática, justamente considerado improvável perante a multiplicação dos obstáculos, tornou-a um exemplo. Para Samuel Huntington, a viragem portuguesa marcou o início de uma vaga internacional de democratização, que incluiu, sucessivamente, tanto os despotismos tradicionais da América Latina, como as tiranias modernas da Europa de Leste.

O sucesso da nossa estratégia de adesão à Comunidade Europeia criou as condições essenciais para inserir o nosso desenvolvimento no quadro seguro da integração regional. Essa garantia de estabilidade estimulou a confiança interna e assegurou os recursos externos indispensáveis para a continuidade sustentada de uma estratégia nacional de modernização, que transformou a economia e a sociedade portuguesa.

Paralelamente, o sucesso do alargamento da Comunidade foi também importante para ultrapassar os anos de maior pessimismo na construção europeia, durante a década de setenta, e para demonstrar a afinidade electiva entre a democracia pluralista e aquele projecto.

O fim das autocracias na Europa ocidental, com a transição democrática em Portugal, na Grécia e na Espanha, tal como a adesão posterior desses três Estados à Comunidade Europeia foram, na minha opinião, decisivos para definir uma identidade europeia sinónima de democracia pluralista, do primado do direito e da economia de mercado. Essa identidade, por sua vez, revelou-se essencial, para orientar a revolução de 1989 e as transições na Europa de Leste, cujo sentido convergente se realizou na coincidência da democracia e de um projecto comum europeu.

A democracia e a integração europeia tornaram também possível restabelecer a posição internacional de Portugal, cujo estatuto estável como membro da Aliança Atlântica e da União Europeia foi instrumental para recuperar as condições de uma política externa independente.

Desde 1986, voltámos a ter uma intervenção relevante nas relações com os novos Estados africanos de língua portuguesa, sobretudo com Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e Moçambique, mas também com Angola, onde a diplomacia portuguesa se associou, desde a primeira hora, ao processo de paz, e ainda na Guiné-Bissau. A relevância desse quadro, aliada a um novo ciclo nas nossas relações com a grande nação brasileira, deu lugar à constituição da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que exprime a vontade colectiva dos seus membros na defesa de valores e interesses comuns na comunidade internacional.

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa vai, em breve, receber um novo membro, a República de Timor-Leste, cuja independência representa, para nós, o fecho da descolonização.

A luta heróica dos timorenses obrigou os Portugueses a empenharem-se num combate notável pela defesa dos direitos humanos e do direito de autodeterminação, que se completou com a criação do novo Estado. Esse processo devolveu-nos uma confiança indispensável para assumir, em actos concretos, a vocação universalista que se tornou parte integrante da nossa identidade e da nossa maneira de estar.

É, de resto, à luz desta mesma vocação universalista que Portugal, respondendo aos novos desafios do mundo globalizado, deverá traçar a rota da sua política externa neste século XXI que acabámos de encetar, no triplo plano das relações bilaterais, a nível da União Europeia e no âmbito multilateral, com vista ao reforço da sua projecção no mundo.

É minha convicção de que a internacionalização da economia, a mundialização dos mercados e a globalização em geral de todos os segmentos da vida pública – economia, trabalho, cultura, educação etc. –, que naturalmente revestem aspectos positivos ao criarem novas oportunidades, mas de que também resultam problemas e desafios igualmente novos, implicam para os Estados nacionais e para o exercício clássico das suas soberanias um reposicionamento diferente e uma redefinição dos objectivos e métodos da sua actuação externa, sob pena de falharem a sua própria afirmação e independência nacionais.

Também nos atentados terroristas de 11 de Setembro encontramos uma trágica ilustração desta mutação necessária. A formação de uma extensa coligação, solidária com os Estados Unidos na luta contra o terrorismo, bem como a intensa cooperação internacional que imediatamente se desencadeou e em que quer as Nações Unidas quer a União Europeia têm desempenhado um papel fundamental, atestam que a resposta a este tipo novo de ameaças tem de ser clara e inequívoca, exigindo o reforço da aliança entre as democracias na defesa em comum de um conjunto irrecusável de valores partilhados. Para neutralizar este tipo de ameaça global é necessária uma resposta também global, mas no respeito pelos princípios do Direito Internacional que constituem a base inalienável das nossas sociedades e os fundamentos da legalidade internacional que, pacientemente, temos vindo a construir e a aperfeiçoar desde a Segunda Guerra Mundial.

É sob este prisma da mundialização que o processo de integração europeia adquire todo o seu sentido bem como o carácter ímpar que reveste para Portugal a sua participação neste projecto. A certeza de que Portugal se fará na Europa e com a Europa ou não se fará explica que nunca em Portugal uma questão tenha sido tão consensual como a da integração europeia. É, de resto, um consenso de que nos orgulhamos e que devemos manter forte e inquebrantável.

Primeiro porque significa que os portugueses identificam a Europa com uma oportunidade única de modernização e desenvolvimento do país, reconhecendo o valor inestimável da coesão social e económica. Ora, num momento em que na Europa começam a desenhar-se reticências quanto à prossecução do objectivo do desenvolvimento partilhado, é importante lembrar que a solidariedade está na base do projecto europeu e que pôr em causa este princípio significará alterar a sua natureza e gorar as expectativas dos europeus.

Depois porque significa que os portugueses, sendo uma nação antiga com uma identidade cultural forte, aberta aos outros e com vocação universalista, como já sublinhei, encontraram na Europa um espaço de diálogo privilegiado e de valorização acrescentada. Quer isto dizer que os portugueses entendem a Europa também como uma forma de reforçar a sua presença no mundo, ou seja, querem uma Europa activa na cena internacional, capaz de fazer ouvir a sua voz independente e de defender causas, empenhada na construção de um mundo mais justo, mais solidário e mais humano. Porque onde estiver a Europa, estará também Portugal.

Não pretendo, no entanto, escamotear as dificuldades que o desenvolvimento de uma Política Externa e de Segurança Comum à escala europeia encerra na medida em que implica que se superem os parâmetros de referência meramente nacionais. Ora, esta mudança de prisma de avaliação, o ajustamento das bitolas nacionais de política externa reveste, não tenho dúvidas, laivos de obra de Sísifo.

Mas estou igualmente convicto de que só através da potenciação desta dimensão de integração regional que a União Europeia representa, como, de resto, através da participação activa nas instâncias multilaterais de segurança e defesa que são a NATO, a OSCE e as Nações Unidas, poderão não só os grandes problemas, ameaças e desafios do nosso tempo ser resolvidos como ainda, pequenos países como Portugal encontrar um espaço próprio de afirmação e assim desenvolver relações de cooperação específicas que contribuam para o reforço da sua projecção no mundo.


As relações bilaterais que Portugal mantém com alguns parceiros privilegiados, designadamente com os Países da Comunidade de Língua Oficial Portuguesa, ou ainda com Espanha, seu único país limítrofe, embora revistam um significado ímpar e insubstituível, que queremos maximizar nomeadamente no campo cultural e económico, não podem nem devem desenvolver-se à margem de espaços de cooperação multilateral mais vastos que deverão, ao invés, funcionar como interfaces potenciadores de cooperação no contexto inelutável da lógica de rede que caracteriza as relações internacionais hodiernas.

Por conseguinte, entendo que não nos podemos enganar sobre os sinais dos tempos. Os grandes problemas e desafios com que nos deparamos – a necessidade de preservar o ambiente e de racionalizar a utilização dos recursos naturais; a luta contra a fome e a miséria que afectam franjas cada vez mais extensas da população mundial; a correcção das desigualdades crescentes de oportunidades e de desenvolvimento; a necessidade de assegurar as condições do desenvolvimento sustentável e da governação mundial; a luta contra a criminalidade organizada sob todas as suas formas - luta contra o terrorismo, contra o branqueamento de capitais, contra o tráfico de droga e contra o tráfico e exploração de seres humanos -, exigem a mobilização de toda a comunidade internacional.

Sem uma intensa cooperação internacional, em que à União Europeia caberá continuar a desempenhar um papel impulsionador, decisivo e fundamental, não conseguiremos cumprir o século XXI.

E pela minha parte, não tenho dúvidas : o destino de Portugal está na Europa e a Europa precisa de Portugal, como de cada um dos seus membros, para cumprir o seu desígnio. Eis o que nos constitui na obrigação de pensar e garantir o nosso sucesso com o sucesso da integração europeia.