Discurso de Sua Excelência o Presidente da República no Instituto de Administração Pública de Victoria

Melbourne
23 de Maio de 2002


Minhas Senhoras e Meus Senhores

Gostaria de agradecer ao Instituto de Administração Pública de Victoria a oportunidade de vos falar aqui hoje. Tentarei apresentar uma perspectiva portuguesa sobre alguns dos principais desafios com que a Europa e a comunidade internacional se debatem na sequência dos bárbaros ataques terroristas de 11 de Setembro.

Ao procedermos a uma análise da situação mundial, não encontramos motivos de particular satisfação. Por todo o mundo, aumentam as tensões. Conflitos antigos, tais como os que opõem Israel aos palestinianos ou a Índia ao Paquistão, ressurgem de novo, por vezes com grande violência. A pobreza e a doença alastram. A instabilidade social e económica atinge países inteiros, como é o caso, por exemplo, na Argentina.

Como sucedeu tudo isto? O novo milénio iniciou-se num ambiente de esperança. Decorridos apenas dois anos, o ambiente alterou-se completamente. Trata-se de um erro de percepção, ou terá o mundo mudado radicalmente num tão curto lapso de tempo?

Diria que um pouco de ambas as coisas. Por um lado, as esperanças eram provavelmente demasiado elevadas à partida. Uma fé cega nos beneficios de uma globalização liderada pelo mercado e no triunfo universal dos valores democráticos conduziu ao optimismo excessivo prevalecente nos anos noventa. Por outro lado, é evidente que o início do novo século foi marcado por uma mudança radical, provocada pelos acontecimentos de 11 de Setembro.

O impacto destes acontecimentos em todo o mundo foi enorme. A real dimensão das suas repercussões não pode ainda ser inteiramente avaliada. É óbvio, no entanto, que os acontecimentos do 11 de Setembro provocaram de imediato um sentimento de vulnerabilidade e perigo, minando a confiança no futuro.

Os Estados Unidos e os seus aliados encararam, com razão, os ataques terroristas a Nova Iorque e Washington como uma declaração de guerra. Reagiram militarmente em legítima defesa. Qualquer outra reacção teria sido interpretada como um sinal de fraqueza e impotência. A legitimidade da reacção dos Estados Unidos foi quase unanimemente reconhecida e apoiada pela Comunidade Internacional. Toma-se, por outro lado necessário conjugar a acção militar com uma considerável componente policial, envolvendo uma extensa cooperação internacional, de modo a negar abrigo, apoio e financiamento ao terrorismo internacional. As redes terroristas internacionais terão de ser sujeitas a uma forte e constante pressão. Desde o primeiro momento, a União Europeia e a Austrália estiveram na primeira linha deste combate, lado a lado com os Estados Unidos.

A vitória no Afeganistão foi importante mas não dissipou totalmente a atmosfera de crise. Ao ponderarmos os passos a tomar seguidamente, devemos começar por reconhecer que esta guerra ainda não terminou. Digo que não terminou, não apenas no sentido técnico de que as operações militares ainda prosseguem e continuarão provavelmente durante algum tempo, embora não com a intensidade que foi necessária para derrotar o regime Talibã no Afeganistão, mas também no sentido de que ainda não estão satisfatoriamente resolvidas as questões levantadas pelos ataques de 11 de Setembro.

O ponto principal que desejo realçar é o seguinte: Para vencer totalmente a guerra contra o terrorismo internacional, não basta aniquilar a AI Qaeda e os seus aliados. É necessário também neutralizar os objectivos que procurava atingir com estes ataques. Com efeito, na minha opinião, os terríveis actos de 11 de Setembro tinham objectivos políticos e ideológicos. Os seus autores permaneceram na sombra, mas as suas intenções foram claras: semear a discórdia e disseminar o ódio entre o Ocidente e o mundo muçulmano.

Travar esta batalha como se fosse, por assim dizer, um confronto de civilizações, para usar a frase de Huntington, seria conceder aos terroristas e aos seus apoiantes uma vitória política. É por isso que, desde o primeiro momento, os Estados Unidos e seus aliados, assim como os governos de praticamente todo o mundo, incluindo oz muçulmanos, isentaram este conflito de quaisquer conotações culturais ou religiosas. O Islão não é nosso inimigo. O nosso inimigo é o terrorismo internacional e aqueles que o apoiam, pois visam destruir a tolerância e o respeito mútuo, nos quais se devem basear as relações internacionais.

Teremos conseguido passar esta mensagem? Não me atreveria a dizer que o fizemos com total sucesso. De facto, enquanto procurávamos focar o nosso alvo no combate ao terrorismo internacional, a fogueira do ódio e do preconceito religioso era novamente ateada pelo trágico e inaceitável conflito entre Israel e os palestinianos.

Este conflito está a inflamar o mundo muçulmano, a desenterrar o demónio do anti- semitismo e a semear a discórdia, inclusivamente entre os países ocidentais.

A comunidade internacional deve aperceber-se deste perigo e usar toda a sua influência para que Israel e os palestinianos ponham cobro a este ciclo de assassínio e vingança em que estão enredados.

Ao agir neste sentido, a comunidade internacional deve rejeitar firmemente o conceito de que este conflito é sobretudo acerca de ideias e valores, tal como propugnam fanáticos e extremistas de ambas as partes, ou que pode ser encarado na perspectiva da luta contra o terrorismo internacional. Na minha opinião, o que está verdadeiramente em jogo é uma questão territorial. Por isso, a fórmula para o resolver tem sido sempre "terra pela paz" e é a esta fórmula que nos devemos manter ater.

Não há dúvida que os atentados suicidas contra civis são uma forma de terrorismo que deve ser firmemente condenada. Do mesmo modo, ninguém pode negar a Israel o direito de se defender. Penso, no entanto, que não é hora de assacar responsabilidades. Tanto Israel como os palestinianos têm nesta matéria suficientes responsabilidades. Chegou o momento de Israel reconhecer que, tanto política como moralmente, não é aceitável prosseguir com a ocupação da Cisjordânia e de Gaza. Tal caminho acabará por o isolar a nível internacional e destruir o tecido da sua democracia. Por isso, se se quiser manter fiel aos seus valores, Israel, sendo a parte mais forte, deverá assumir uma maior quota parte de responsabilidade para pôr cobro a esta situação.

Existe ainda uma outra frente em que devemos batalhar arduamente de modo a evitar que tensões políticas e sociais sejam definidas em termos racistas e xenófobos. Refiro- me ao problema da imigração para a Europa. Como acontecimentos recentes têm demonstrado, o radicalismo político está a fermentar nas zonas mais desfavorecidas das cidades europeias. Trata-se de uma tendência perigosa que deve ser travada. Aqui, mais uma vez, não devemos contemporizar com aqueles que disseminam sem escrúpulos estereótipos racistas. Não é contra a imigração que devemos lutar, mas sim contra a exclusão social e económica, sem distinção de raça ou credo.

Devido ao declínio das taxas de natalidade, a Europa continuará a necessitar de um número crescente de imigrantes. É indiscutível que são necessárias políticas mais eficazes para regular estes fluxos migratórios e para integrar os imigrantes. É essencial que os imigrantes subscrevam os nossos valores fundamentais. A base da nossa cultura política é a crença na liberdade individual e na igualdade e na separação entre política e religião. São estes os valores que nos compete ensinar nas nossas escolas. Mas não devemos confundir pequenos grupos radicais, sobretudo muçulmanos, que professam ideias extremistas com a grande massa de imigrantes, que mais não desejam do que integrar-se nas nossas sociedades.

Em resumo, parece-me que, apesar do nosso êxito militar ter sido significativo, temos ainda um grande caminho a percorrer antes de declarar vitória. Temos não só de continuar a combater eficazmente o terrorismo internacional, mas também assegurar- nos de que a nossa luta não seja erradamente interpretada como um conflito entre o Ocidente e o Islão.

Iria ainda mais longe. Ao olhar para o mundo de hoje, existe um perigo de radicalização não só étnica ou religiosa, como também económica e social.

Ao prosseguirmos a luta contra o terrorismo internacional, não devemos perder de vista os problemas económicos e sociais. Situações de extrema desigualdade económica e social podem facilmente conduzir à anarquia, à violência política e ao ódio. A extrema desigualdade e pobreza que presenciamos actualmente nalgumas partes do mundo são moralmente condenáveis e politicamente perigosas. Modos de funcionamento da economia mundial, que desfavorecem os pobres em beneficio dos ricos, devem ser corrigidos. É necessária uma nova agenda global para atacar o lado sombrio da globalização. Devemos transformar a aliança contra o terrorismo numa aliança contra a pobreza, a ignorância, a doença, a injustiça e o crime.

Este objectivo exige um amplo acordo entre a União Europeia, os EUA e outros países democráticos, como a Austrália, que detêm uma parcela enorme da economia mundial. Infelizmente, tem sido mais fácil entendermo-nos na luta contra o terrorismo do que nas questões sociais, económicas e ambientais. É verdade, não obstante, que os acontecimentos de 11 de Setembro contribuíram para fazer avançar a agenda económica e social. O acordo atingido em Doha para uma nova ronda de negociações comerciais, já apelidada de ronda do desenvolvimento, é um bom sinal. Há que registar igualmente os resultados da Conferência de Monterey, sobre o financiamento da ajuda pública ao desenvolvimento É claro, no entanto, que é necessário um maior esforço no combate aos flagelos da pobreza, da ignorância e da doença, que cada vez mais assolam vastas regiões do nosso planeta.

Muito depende dos governos dos países em vias de desenvolvimento, bem como das recomendações que recebem das agências internacionais. Por um lado, só podemos ajudar aqueles que se querem ajudar a si próprios. Por outro lado, há que reconhecer que as recomendações de por algumas instituições internacionais enfermam muitas vezes de uma forma de fundamentalismo de mercado nem sempre adequado às situações dos países em vias de desenvolvimento.


Minhas Senhoras e Meus Senhores

Como comecei por dizer, não há razões para grande satisfação ao analisarmos a situação mundial. Mas também não há motivo para desânimo. Não devemos perder a convicção na bondade dos nossos valores, nem a determinação para os defender quando são atacados.

O facto de todos os governos do mundo, praticamente sem excepção, terem veementemente condenado os ataques terroristas de 11 de Setembro é encorajador.

Uma consequência importante desta reacção quase unanime foi a aproximação dos Estados Unidos, da Europa e da Rússia. De facto, a OTAN e a Rússia acabam de concluir um novo acordo ligando a Rússia muito mais estreitamente à Aliança Atlântica. Esta evolução é muito positiva.

A reacção firme e pronta da Comunidade Internacional constitui um aviso a qualquer grupo tentado a seguir os passos de Bin Laden ou a qualquer Estado que possa estar disposto a apoiar o terrorismo internacional. Temos a vontade e os meios para nos defendermos.

Estamos determinados a fazê-Io sem pôr em causa os valores fundamentais que caracterizam as nossas sociedades - a tolerância, o pluralismo e o respeito pelos direitos humanos - pois são estes os valores que as tomam fortes e prósperas e suscitam admiração em todo o mundo.

Posso garantir-vos que a União Europeia desempenhará o seu papel nesta luta. Sabemos que podemos contar com a Austrália, que corajosamente tem empenhado os seus soldados no Afeganistão. Estou confiante que juntos venceremos.

Obrigado pela vossa atenção.