Discurso do Presidente da República por ocasião do XV Encontro Anual do "Academic Council on United Nations System"

Cascais
21 de Junho de 2002


Minhas Senhoras e meus Senhores

Agradeço o convite que me dirigiram para estar aqui convosco. É um privilégio poder partilhar com tão distinta audiência algumas reflexões sobre o momento internacional que atravessamos, um momento tão carregado de incertezas e interrogações, que nos interpela, política e moralmente, e nos desafia pela sua complexidade e pelo seu ritmo vertiginoso de mudança.

Pedem-me que vos fale sobre a resposta europeia às novas ameaças. A forma como a questão está formulada obriga-nos, em primeiro lugar, a reflectir um pouco sobre o carácter dessas novas ameaças, pois só em função de como forem definidas é possível dar-lhes resposta coerente. Procurarei, em seguida, apontar alguns traços fundamentais da posição europeia em relação a estas matérias.

Desde o fim da guerra fria, o conceito de segurança tem vindo a ser definido de forma mais lata, mas também mais difusa, de modo a abranger não só ameaças à integridade física ou territorial, mas também aquelas que resultam de problemáticas globais, como a proliferação de armas de destruição maciça, a degradação ambiental, o alastramento das doenças infecto-contagiosas ou mesmo a pressão demográfica e o subdesenvolvimento. Por outro lado, alargou-se o espectro de proveniência das ameaças, acrescentando-se às que derivam das relações entre Estados as que são protagonizadas por actores não estatais, como o terrorismo internacional e o crime organizado.

Naturalmente, esta abordagem mais lata não anula o domínio clássico das relações entre os Estados. Continuam a existir, como sempre existiram, rivalidades entre Estados, interesses antagónicos, conflitos ideológicos e territoriais, que podem provocar crises graves, como sucede actualmente entre Israel e os palestinianos ou entre a Índia e o Paquistão. Por outro lado, mesmo em Estados antigos e estabilizados, existem tensões étnicas que por vezes degeneram em violência e guerra civil.

Se queremos, todavia, identificar o que é novo na ordem internacional pós-guerra fria, se o nosso objectivo é discernir novas tendências, das quais resultam novos tipos de ameaças, é necessário aprofundar a análise da dialéctica entre o Estado e a globalização, e das crises que dela podem resultar.

Podemos partir da constatação de que existem actualmente redes de influência transnacionais, poderosas, múltiplas e incontroláveis, sem direcção centralizada, redes essas que operam na legalidade, como sucede na área económica e financeira ou na das comunicações electrónicas, ou na ilegalidade, como as organizações terroristas ou criminosas, que se dedicam a tráficos de todos os tipos e à lavagem do dinheiro.

O exercício do poder pelos Estados soberanos está condicionado e, em alguns casos, ameaçado pela influência dessas redes. Por um lado, no plano nacional, a autonomia de decisão dos Estados está cada vez mais limitada por processos económicos globais, regidos pela lógica do mercado. Por outro lado, no plano internacional, há toda uma série de problemas que só podem encontrar um princípio de solução através de respostas concertadas por parte da Comunidade Internacional, respostas essas que tardam em aparecer. Por outras palavras, parece existir uma crise da governabilidade, quer a nível nacional quer internacional.

Embora estas dificuldades sejam comuns a todos os Estados, a respectiva capacidade para lhes fazerem face é muito variável. Entre os países em vias de desenvolvimento, são muitos os Estados que não possuem as estruturas políticas, e os recursos administrativos e económicos adequados para lidar, simultaneamente, com os desafios da globalização e com os enormes problemas internos com que se debatem. Sujeitos a constrangimentos cada vez mais fortes vindos do exterior, pressionados pelo peso das suas dívidas externas, a braços com uma explosão demográfica concentrada nas cidades, com níveis incomportáveis de desemprego e, muitas vezes, divididos por tensões e conflitos étnicos, esses Estados mostram-se cada vez mais enfraquecidos e inoperantes.

Temos assim assistido, em África mas não só, ao aumento do número de Estados que se revelam incapazes de desempenhar as suas funções básicas — controlar os seus territórios, manter a ordem pública, assegurar condições de vida dignas aos seus cidadãos — ou apenas as exercem de forma mínima e com crescentes dificuldades.

Em certos casos, estes processos conduzem à desagregação do próprio Estado, gerando-se situações de anarquia que acabam por provocar catástrofes humanitárias. Noutros casos, o resultado é o aumento de tensões políticas ou étnicas que acabam por degenerar em guerras fratricidas. Mesmo quando os órgãos do Estado continuam a funcionar, é com níveis elevadíssimos de corrupção.

Tais situações acabam por ter reflexos no plano internacional. Com efeito, quando o Estado é incapaz de assegurar as suas funções básicas, seja por incapacidade ou porque a sua legitimidade deixou de ser aceite por um ou mais grupos da sua população, o resultado normalmente é a violência. Estados nessa situação geram e exportam instabilidade e criam condições propícias para a implantação no seu território de organizações terroristas e criminosas. A maior parte das vezes, estas agem por conta própria, à revelia das autoridades. Em certos casos, porém, actuam em verdadeira conivência e cumplicidade com elas.

O caso do Afeganistão é a muitos títulos paradigmático tanto dos perigos que uma situação prolongada de guerra civil e de caos pode encerrar, como das dificuldades envolvidas nos processos de reconstrução.

Se, uma vez declarada a crise, ocorre uma intervenção militar, como sucedeu na Bósnia, no Kosovo ou no Afeganistão, na sequência dessa intervenção é exigida a mobilização da comunidade internacional para tarefas cada vez mais multifacetadas e dispendiosas, no domínio da assistência humanitária, da manutenção da segurança e da paz e da reconstrução de uma autoridade política legítima e eficaz. Se, pelo contrário, não existiu intervenção, como sucedeu por exemplo no caso do Ruanda, os efeitos da crise prolongam-se, tendendo a contagiar os países vizinhos.

Sem querer entrar na discussão sobre os critérios políticos e morais pelos quais se deve decidir, ou não, intervir, nem tampouco, no debate sobre as formas e os requisitos dessa intervenção, penso que a experiência dos anos 90 indica que uma intervenção atempada acaba por ser preferível, apesar dos custos envolvidos, a uma atitude passiva.

Uma avaliação necessariamente provisória do resultado dessas intervenções leva-nos a pensar que nem todas as experiências daquilo a que, por uma questão de conveniência, poderemos chamar de "nation building", têm sido negativas. Apesar de todas as dificuldades, creio que os exemplos da Bósnia, e, em especial, de Timor Leste representam casos de sucesso.

Nestes domínios, os países europeus desempenham já um papel fundamental, quer como fornecedores de tropas para as diversas operações de manutenção da paz em curso, na Europa e fora dela, quer, através da União Europeia e no plano bilateral, como principais financiadores das mesmas.

Não obstante, parece evidente que a Comunidade Internacional e as próprias Nações Unidas dificilmente poderão acudir a todos os casos em que uma intervenção seria útil. Forçoso é reconhecer, assim, que o método da intervenção para pôr cobro a crises declaradas só em último caso deve ser utilizado. O nosso objectivo, pelo contrário, deve ser o de prevenir e evitar essas mesmas crises. Certamente é mais fácil enunciar este princípio do que conceber e aplicar diplomacias preventivas eficazes. Creio todavia que esse é o sentido principal da actuação da Europa e da União Europeia no mundo de hoje.

Minhas Senhoras e meus Senhores

O discurso sobre as novas ameaças processou-se, durante os anos 90, num clima internacional relativamente benigno. Os focos de instabilidade existentes, por exemplo nos Balcãs, no Cáucaso, ou na África Central e Ocidental, eram relativamente localizados. Embora constituíssem uma afronta a valores consagrados universalmente, justificando como tal uma intervenção da Comunidade Internacional, não pareciam representar uma ameaça directa à segurança da Europa e da comunidade euro-atlântica no seu conjunto.

Por outro lado, os incidentes de terrorismo internacional da responsabilidade da Al Qaeda que se verificaram, nomeadamente contra as Embaixadas dos Estados Unidos no Quénia e na Tanzânia e contra instalações militares norte-americanas na Arábia Saudita, embora denotassem já uma considerável ambição, não surgiram aos olhos da opinião pública como sendo de uma ordem qualitativamente diferente de outros ocorridos no passado. Por não nos ter ainda atingido de forma catastrófica, a ameaça do terrorismo internacional era vista mais como potencial do que real.

O 11 de Setembro mudou por completo esta percepção. Ficou demonstrado que o terrorismo internacional pode constituir uma perigo tão grave como um acto de guerra, obrigando-nos a encarar de frente a ameaça que representa. Depois dos ataques contra Nova Iorque e Washington, somos também forçados a levar a sério o perigo de organizações terroristas terem acesso a armas de destruição maciça. A não proliferação de armas de destruição maciça e o controlo das existentes assumem assim um grau elevado de urgência.

A solidariedade da Europa com os Estados Unidos na luta contra o terrorismo internacional não está, nunca esteve, nem podia estar em causa. Não vale por isso a pena recordar aqui, mais uma vez, todas as formas como ela foi demonstrada. A solidariedade com os Estados Unidos não significa, todavia, que a Europa não tenha em relação a estas questões uma sensibilidade própria. Assim, desde o primeiro momento, houve uma percepção generalizada de que a resposta ao 11 de Setembro tinha de ser multifacetada, desenvolvendo-se a vários níveis e recorrendo a diversos instrumentos, militares e policiais, mas não só.

Naturalmente, a responsabilidade primeira está situada a nível nacional. Não pode haver tolerância para com Estados que pactuem com o terrorismo internacional e o crime organizado. Os Estados precisam de estar devidamente apetrechados para combater estes fenómenos.

É evidente, porém, que a luta contra as novas ameaças exige um nível elevado de cooperação internacional. Esta processa-se naturalmente com maior intensidade entre Estados com interesses e práticas comuns, mas requer igualmente um enquadramento global, que compete às Nações Unidas.

Em primeiro lugar, é essencial para a Europa garantir que a resposta ao terrorismo é legítima à luz do direito internacional e concertada. Assim atribuímos grande significado à execução das pertinentes resoluções do Conselho de Segurança, designadamente a resolução 1373, que contém um conjunto de obrigações válidas para todos os Estados da comunidade internacional de importância decisiva para o combate ao terrorismo.

De uma forma geral, a Europa continua a considerar a abordagem multilateral como essencial, pois só através dela se pode mobilizar a comunidade internacional no seu conjunto e criar plataformas de consenso que permitam definir um conjunto de regras e disciplinas para combater os grandes problemas do nosso tempo.

Em segundo lugar, existe um reconhecimento cada vez maior de que o carácter das novas ameaças obriga os países europeus a agirem em conjunto e a aprofundarem os seus níveis de integração e cooperação no seio da União Europeia, quer no âmbito da Política Externa e de Segurança Comum quer em matérias do chamado terceiro pilar, da justiça e assuntos internos.

Para a União Europeia, a actual situação internacional, conjugado com a questão da imigração ilegal, colocou no centro das atenções algumas preocupações clássicas no domínio da segurança, como as que dizem respeito ao controlo das fronteiras externas da União e à cooperação policial entre os membros da União. O sentido de urgência imprimido pela ameaça terrorista tem contribuído para vencer algumas das tradicionais resistências a uma maior cooperação neste domínio.

De entre as medidas adoptadas pela União Europeia, gostaria de salientar as seguintes: foi adoptada legislação que cria um mandato de captura comum no espaço da União e adoptada uma decisão quadro sobre o terrorismo que prevê a inclusão nos códigos penais nacionais de leis contra o terrorismo. O Conselho adoptou uma definição comum de terrorismo e aprovou uma lista de entidades terroristas, cujos recursos financeiros foram congelados. A Comissão Europeia propôs a criação de uma polícia de fronteiras comum, que está neste momento em discussão.

Em terceiro lugar, existe a percepção de que é necessário também dar respostas políticas ao terrorismo internacional. Os atentados do 11 de Setembro tinham, na minha opinião, objectivos políticos claros: semear a discórdia e o ódio entre o Ocidente e o Islão. Estes objectivos têm de ser combatidos. É necessário promover o diálogo entre civilizações e evitar a percepção de que o Ocidente aplica políticas de dois pesos, duas medidas, designadamente no que toca à aplicação do direito internacional.

É necessário, neste âmbito, um esforço redobrado para pôr cobro ao conflito entre Israel e os palestinianos. Este conflito tem muitas dimensões mas há uma que reputo essencial, a que nos devemos ater. Trata-se de um conflito sobre a posse da terra entre duas comunidades nacionais, que só pode ser resolvido por via negocial. Por um lado, é inaceitável o recurso a atentados suicidas por parte de palestinianos. Por outro, Israel, que é uma democracia, que é um país desenvolvido, com um elevado nível de vida, e dispõe de incontestável superioridade militar na região, tem de aceitar que a ocupação da Cisjordânia e de Gaza é ilegal e deve cessar quanto antes. Só assim será possível pôr termo a esse conflito.

Em quarto lugar, existe na Europa a preocupação de encontrar um justo equilíbrio entre a eficácia na luta contra o terrorismo internacional e a defesa dos direitos e garantias individuais. A luta contra o terrorismo pode justificar medidas especiais, mas estas têm de ser cuidadosamente circunscritas, justificadas e enquadradas, sem fazer tábua rasa do princípio da proporcionalidade.

Para terminar, gostaria de elaborar um pouco mais sobre o tema da diplomacia preventiva, que já anteriormente aflorei. Sabemos que nem tudo é possível evitar, mas é necessário antecipar os problemas e agir antes que eles assumam formas drásticas. Foi o que conseguimos fazer, por exemplo, no caso da Macedónia. Mas a diplomacia preventiva não deve dirigir-se apenas a situações de conflito. Ela tem igualmente de abordar problemas de âmbito global que são em si mesmo graves, mas cujo potencial para provocar instabilidade e conflitualidade é ainda considerável. Refiro-me a temas como a pobreza e a desigualdade, o ambiente ou a saúde pública global que não podem ser relegados para o segundo plano. Temos de forjar novos consenso para promover um processo de desenvolvimento sustentável e mais equitativo. Creio que o 11 de Setembro contribuiu para que haja uma nova consciência da urgência em atacar estes problemas, embora ainda haja muito a fazer nesse sentido.

Nestas áreas, julgo que a União Europeia desempenha, já, um papel decisivo, como o demonstrou, por exemplo, liderando o esforço para a ratificação e entrada em vigor do Protocolo de Quioto.

A União Europeia constitui, para os seus Estados Membros, um instrumento de resposta aos desafios da globalização e um exemplo de integração regional que desejamos venha a ser emulado noutras regiões do globo. O papel da União na cena internacional tem vindo a afirmar-se cada vez mais, tanto no plano económico e financeiro como em frentes mais políticas que tradicionalmente lhe estavam vedadas. Creio que esta tendência é irreversível e benéfica. Cada vez mais, a União Europeia é um interlocutor e parceiro indispensável para os Estados Unidos da América e para o resto do mundo. É bom que assim seja. Os desafios com que estamos confrontados, neste início do século XXI, só podem ser vencidos com uma actuação concertada. Mas esta tem de resultar do diálogo, diria mesmo da negociação, e de um necessário compromisso que leve em devida conta diversas sensibilidades e interesses. É este o sentido da ordem internacional multilateral que, fiéis ao espírito que presidiu à fundação das Nações Unidas, queremos construir, de forma solidária.

Estou certo que o vosso seminário será uma excelente ocasião para analisar, em profundidade, alguns dos temas que me limitei a esboçar nesta intervenção. Faço votos para que a discussão seja frutuosa e desejo-vos uma boa estadia em Portugal.