Conferência do Presidente da República a convite da Comissão dos Assuntos Europeus do Folketing - "Shaping the future of an enlarged European Union"

Christiansborg
28 de Junho de 2002


Senhor Presidente do Folketing,
Senhor Presidente da Comissão dos Assuntos Europeus,
Senhores deputados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores


Foi com muito gosto que aceitei o convite que me foi endereçado pela Comissão dos Assuntos Europeus do Folketing para falar sobre o futuro da Europa perante uma assistência tão particularmente interessada no processo de construção europeia.

Agradeço-lhe também, Senhor Presidente, as palavras que quis ter a amabilidade de me dirigir, que me honram e que honram o país que aqui represento.

Portugal e a Dinamarca estavam predestinados a manterem um relacionamento distante, apesar da partilha de uma mesma vocação marítima e de algumas relações ocasionais de cooperação mais intensa. São hoje parceiros num projecto de sociedade comum, unidos em uma única comunidade de destino, que a União Europeia representa.

Por considerações geo-estratégicas em tudo diversas e em circunstâncias nacionais em nada idênticas, a Dinamarca e Portugal vieram a associar-se à extraordinária aventura de circum-navegação política europeia que começou nos remotos anos cinquenta, com a Comunidade Económica do Carvão e do Aço.

O mundo de hoje em pouco ou nada se assemelha ao daquele tempo. Estou pessoalmente convicto de que no mundo globalizado que caracteriza o nosso século, não subsistem alternativas credíveis aos processos de plena integração regional, sob pena de comprometer ainda mais o exercício de soberania nacional e de pôr em perigo a própria independência dos nossos Estados e a segurança dos cidadãos.

Para melhor compreender a natureza da história da integração europeia e ter uma percepção mais clara e rigorosa das dificuldades com que nos confrontamos actualmente, parece-me da maior utilidade evocar brevemente as nossas experiências recíprocas de adesão, que raramente temos oportunidade de cotejar. Dedicarei assim alguns momentos a este exercício comparativo. Depois, abordarei os desafios que coloca a próxima vaga de adesões e a oportunidade de renovação que a reunificação próxima do continente europeu representa. Por último, exporei alguns traços da minha visão do futuro da Europa alargada.

Portugal e a Dinamarca – duas experiências de integração europeia complementares

A Dinamarca aderiu à então Comunidade Económica Europeia, em 1973, juntamente com o Reino Unido e a Irlanda. A sua candidatura foi essencialmente motivada pelas vantagens económicas decorrentes da adesão, numa antecipação dos efeitos negativos para a EFTA da própria adesão à CEE do Reino Unido e ponderados os benefícios para o sector agrícola dinamarquês. De salientar ainda que a dimensão política da construção europeia, que na altura era alvo de intensas discussões, foi desde a primeira hora afastada, evitando-se um debate que poderia ter redundado numa rejeição da adesão, como sucedeu na Noruega.

Esta primeira vaga de alargamentos que a CEE conheceu não foi isenta, todos sabemos, de enormes dificuldades nem ocorreu numa conjuntura internacional particularmente favorável. Quem não se recordará ainda do conturbado ano de 73, marcado pela guerra do Kippour e a crise energética na Europa bem como, a nível da construção europeia, pelas dificuldades resultantes da adesão dos novos membros, pelo fracasso das tentativas do reforço da cooperação política entre os Nove e pelos problemas de funcionamento do sistema monetário europeu balbuciante ?

O ano seguinte seria para a CEE ainda de grande crispação, com a incapacidade do Conselho em decidir a aplicação do primeiro projecto de União Económica e Monetária da Comunidade e a introdução do pedido, inaudito, do Reino Unido de revisão das suas condições de adesão. No entanto, o ano de 1974 foi também marcado por decisões institucionais da maior importância, como sejam a eleição do Parlamento Europeu por sufrágio universal directo, a partir de 1978, e a institucionalização dos Conselhos Europeus.

Mas 1974, foi fundamentalmente um ano de florescimento das democracias na Europa meridional, com a revolução dos cravos em Portugal, o fim da ditadura dos coronéis na Grécia e o início da transição democrática em Espanha.

Foi a institucionalização da democracia pluralista que abriu a Portugal as portas da Europa, de que estávamos apartados e cujo acesso nos estava vedado. Embora fossemos membros fundadores da OCDE e da EFTA, tal como de resto a Dinamarca, só então pudemos solicitar a adesão ao Conselho da Europa e, em 1977, introduzir o nosso pedido de adesão às Comunidades.

Para Portugal, a adesão à então CEE permitiu-lhe consolidar o processo de transição democrática, reforçar o Estado de Direito e desenvolver a economia de mercado. O país abriu-se, desenvolveu-se e modernizou-se, os portugueses recuperaram a sua auto-estima, aprenderam a valorizar a sua história e cultura e deram ao país uma projecção externa acrescida.

Contrariando os receios de alguns parceiros comunitários, que temiam que alargamento da Comunidade a Sul a enfraquecesse e prejudicasse a coesão do espaço europeu assim como os interesses individuais dos seus Estados Membros, a adesão de Portugal e de Espanha, em 1986, foi um sucesso completo. Em vez de a diluir, reforçou a Europa. Com o contributo de Portugal e Espanha, a dinâmica comunitária renovou-se em todos os domínios.

É minha profunda convicção de que a adesão da Grécia, de Portugal e de Espanha foram decisivos para definir uma identidade europeia sinónima de democracia pluralista, do primado do direito e da economia de mercado. Essa identidade, por sua vez, revelou-se essencial para orientar as transições na Europa de Leste, cujo sentido convergente se realizou na coincidência da democracia e de um projecto comum europeu.

Não é por acaso que evoco estes momentos da história da construção europeia, designadamente as circunstâncias das adesões de Portugal e da Dinamarca. É difícil negar que a adesão dos nossos dois países correspondeu a motivações profundamente diversas e que as expectativas dos portugueses e dos dinamarqueses em relação à comunidade não são inteiramente idênticas.

Em Portugal, nunca uma questão foi tão consensual como a da integração europeia. Na Dinamarca, a questão europeia suscitou sempre grandes polémicas e envolveu compromissos, inclusivamente no seio do próprio Folketing que, para a ratificação dos tratados europeus, teve sempre de recorrer a referendos, por nunca ter obtido uma maioria favorável de cinco sextos dos votos dos seus membros, requerida pela Constituição.

Para os portugueses, a adesão à Europa foi e continua a ser uma opção de cariz essencialmente político, correspondente a uma profissão de fé europeia. E foi em nome dos compromissos europeus que, por vezes, optámos pela alteração da Constituição. Para os dinamarqueses, a opção europeia correspondeu antes de mais a uma estratégia de realismo económico. Sempre que a legislação europeia foi considerada contrária ao espírito ou à letra da sua Constituição, os dinamarqueses optaram por alterar as suas obrigações comunitárias, obtendo regimes derrogatórios e reclamando um estatuto particular.

Esta diversidade de atitudes e posições por parte dos participantes e obreiros da construção europeia, que não tem obstado ao seu enorme sucesso, só é possível porque a Europa tem sido, desde o início, um projecto aberto, prosseguido através da negociação e do compromisso, almejando a integração mais do que a unificação da Europa.

Para se poder prosseguir na via do sucesso, será necessário preservar as condições desta diversidade, cujos limites residem, contudo, num conjunto de valores e de princípios que constituem a base de sustentação do projecto europeu. Estes requerem total e inequívoca aceitação por parte de todos os seus membros, sem excepções nem derrogações. Mas a Europa é também um projecto evolutivo num mundo em mutação. Por isso é igualmente indispensável redefinir, com rigor, clareza e determinação, os objectivos que prosseguimos e aquilo que, colectivamente, pretendemos fazer da Europa. São estes dois requisitos que não devemos perder de vista se quisermos que a Europa seja determinante para o século XXI.


A unificação iminente do continente europeu

Encontramo-nos, ninguém ignora, num momento crucial da construção europeia. Por um lado, a União Europeia prepara-se para efectuar o seu maior alargamento de sempre. Por outro, prossegue o propósito de se aprofundar, chamando a si o exercício de competências até agora consideradas do domínio reservado e exclusivo das soberanias nacionais. Penso na política externa, na defesa e na justiça e assuntos internos.

Mais do que nunca, será necessário um intenso trabalho de pedagogia junto das opiniões públicas nacionais, aliado a uma enorme visão histórica, sentido prático, inteligência política e capacidade negocial.

Sem uma renovação, por parte de todos os Estados Membros e de cada um em particular, do nosso compromisso europeu e da nossa determinação em aplicar à escala europeia os princípios da solidariedade e da coesão em que assenta o projecto europeu, comprometeremos definitivamente, não tenho dúvidas, não só o futuro da União Europeia, ou seja, o nosso próprio futuro, como ainda o do continente europeu.

A Europa tem avançado à imagem das construções de Leggo, que as crianças europeias tão bem conhecem. Começou por ser um projecto desenvolvido e acarinhado pela geração que viveu os horrores e a barbárie da segunda guerra mundial e que procurou reconciliar povos desavindos, levando-os a participar num projecto comum que visava antes de mais restabelecer a paz, a estabilidade e a prosperidade. A Europa foi sempre, aliás, um projecto de paz, destinado a tornar a guerra impossível.

Em pouco mais de meio século, a Europa tornou-se uma história de sucesso, representando a grande realização do século XX. Nem a alteração profunda do contexto internacional com a queda do muro de Berlim e a unificação alemã, nem o fim do bloco de leste e da guerra fria obstaram a que os objectivos fixados fossem cumpridos e as metas alcançadas. Sucesso tanto mais notável quanto estas transformações da situação internacional coincidiram com uma fase particularmente crítica da construção europeia que deveria conduzir à plena realização do Mercado Interno, à aplicação do Acto Único e à realização da União Económica e Monetária.

Sabemos, no entanto, o quanto a história da sua construção quotidiana está também marcada por impasses, indecisões, disputas e adiamentos, sendo tributária de uma constante conciliação entre os interesses nacionais e os conflitos de poder entre os seus Estados Membros.

Durante a primeira fase da história da Europa, que a meu ver termina sensivelmente com o Tratado de Maastricht e a realização da União Económica e Monetária, o sucesso da integração europeia deveu muito à sólida liderança franco-alemã, coadjuvada pela empenhada e sempre oportuna Presidência de Jacques Delors à frente da Comissão Europeia. Com a passagem de testemunho e a substituição que então se operou dos principais interlocutores e obreiros da construção europeia, fechou-se um ciclo e perdeu-se um fôlego que ainda hoje não recuperámos inteiramente.

Os desafios que o próximo alargamento coloca constituem, a meu ver, uma ocasião privilegiada para relançar a dinâmica europeia. É esta a maior oportunidade da sua história. Primeiro, porque teremos a oportunidade de construir à escala europeia um espaço de paz e estabilidade e de desenvolver um modelo de sociedade democrática, pluralista, aberta e solidária; depois, porque teremos dimensões para, a prazo, nos transformarmos na economia mais competitiva do mundo; por último, porque a Europa adquirirá uma dimensão suficientemente grande e representativa para se poder afirmar como um actor de peso na cena internacional e tornar-se assim numa potência mundial.

Mas o próximo alargamento da União Europeia representa também um poderoso desafio que os europeus terão de enfrentar. Só pelas dimensões e complexidade que reveste, requererá de todos determinação, um esforço suplementar de solidariedade e, certamente, alguns ajustamentos.

Primeiro, porque este alargamento abrange um extenso conjunto de países fragilizados por meio século de regimes totalitários, apresentando níveis de desenvolvimento pouco elevados e um grau de modernização ainda incipiente; a sua integração significa, tal como sucedeu com Portugal, uma aposta nos valores democráticos, na prosperidade e na modernização nacionais. Se falharmos a sua integração, estaremos certamente a precipitar uma crise de consequências imprevisíveis.

Depois, porque será necessário continuar a velar pela coesão económica e social do espaço europeu como um todo, por forma a assegurarmos a convergência real das nossas economias. Neste particular, Portugal, à semelhança de alguns outros dos actuais parceiros, necessita ainda da ajuda comunitária para finalizar o ciclo de modernização e de desenvolvimento que encetou desde a sua adesão. Sem recursos comunitários, não conseguiremos vencer esta batalha. E se não vencermos esta batalha, será todo o espaço europeu que ficará fragilizado.

Em terceiro lugar, porque temos de estar preparados para afrontar as novas ameaças e problemas que, correspondendo aos efeitos negativos da globalização, exigem para a sua solução ou uma abordagem mais coordenada ou o desenvolvimento de mais políticas comuns. Penso, por exemplo, na luta contra a criminalidade organizada sob todas as suas formas - luta contra o terrorismo, contra o branqueamento de capitais, contra o tráfico de droga e contra o tráfico e exploração de seres humanos; na necessidade de preservar o ambiente e de racionalizar a utilização dos recursos naturais; na luta contra a fome e a miséria que afectam franjas cada vez mais extensas da população mundial; na correcção das desigualdades crescentes de oportunidades e de desenvolvimento; ou ainda na necessidade de assegurar as condições do desenvolvimento sustentável e da governação mundial. Ora, numa Europa alargada em que as disparidades crescerão exponencialmente e os interesses em confronto serão cada vez mais diferenciados, a concertação comunitária será um desafio permanente, exigindo um espírito acrescido de compromisso e um sentido mais agudo do interesse geral.

Para conseguirmos vencer todos estes desafios, teremos de mobilizar as opiniões públicas europeias e sensibilizá-las para a nossa responsabilidade histórica em reunificar a Europa em torno de um projecto comum de sociedade democrática, com um modelo de cidadania aberta e de desenvolvimento partilhado. Numa altura em que se multiplicam manifestações xenófobas e de intolerância, é necessário erradicar receios e medos infundados que fazem recair sobre o outro, o estrangeiro, o diferente, o desconhecido ou o mais fraco, o ónus de todos os males. É necessário desenvolver uma pedagogia que impeça as nossas sociedades de se fecharem sobre si e de desenvolverem tendências arcaicas e isolacionistas que só podem agravar mais ainda os problemas com que as nossas sociedades globalizadas se confrontam.

Para que a unificação da Europa constitua verdadeiramente o marco fundador do século XXI, teremos que fazer do alargamento um sucesso. Ou seja, teremos de assumir, sem falhas, a nossa responsabilidade individual e colectiva por esta comunidade de destino e de valores partilhados que a Europa representa e que queremos se torne extensiva a todo o continente.

A minha visão do futuro da Europa alargada

Há um físico e pensador dinamarquês, cujo exemplo gosto de evocar a propósito das dificuldades da construção europeia, do seu carácter à primeira vista paradoxal e da ambição que nos move. Refiro-me a Niels Bohr e à sua invenção do princípio de complementaridade enquanto pedra-angular dos fundamentos lógicos da física quântica. O princípio de complementaridade leva-nos a aceitar que a natureza profunda da realidade física é ser dual, pelo que os modelos que a descrevem não devem eliminar este dualismo, mas apenas explicar como se manifesta.

Considero que este princípio de complementaridade nos pode servir de metáfora orientadora para ultrapassar as dificuldades conceptuais que o processo de integração europeia reveste, obrigando-nos a procurar um modelo flexível e inovador que dê conta da sua realidade paradoxal.

De facto, a dificuldade que o aprofundamento da construção europeia encerra consiste precisamente em reforçar a complementaridade entre duas realidades que, em princípio e à partida, seriam contraditórias. Esta dualidade de raiz, está de resto presente a vários níveis e a diversos títulos no projecto europeu, designadamente no plano dos fundamentos (coexistência de Estados Nação e de órgãos supranacionais de tipo federativo), institucional (Conselho/Comissão), metodológico (lógica da cooperação integovernamental/lógica comunitária) ou ainda estratégico (alargamento/aprofundamento).

Neste sentido, deveremos desde já eliminar as propostas de aprofundamento que não levem devidamente em consideração esta natureza dual da construção europeia, sejam elas modelos de cooperação intergovernamental tipo "área de comércio livre", sejam modelos clássicos de integração federal, que não respondem ao requisito da complementaridade.

Considero, ao invés, que a reforma institucional que estamos empenhados em realizar deverá respeitar as especificidades do actual sistema e orientar-se por, pelo menos, três objectivos:

- colmatar as lacunas e deficiências já identificadas. Penso no reforço da componente política da União, na sua orgânica e na legitimidade democrática que lhe é subjacente; penso igualmente no reforço do princípio da igualdade entre os Estados e nas condições da sua aplicação.

- adaptar o seu funcionamento às futuras dimensões da União alargada. Penso nas alterações funcionais indispensáveis, algumas já decididas em Sevilha, mas também na definição de condições que preservem a flexibilidade sem prejudicar a unidade do projecto europeu.

- dotar a União de capacidades suplementares que possibilitem que exerça novas funções e competências ligadas, designadamente a um reforço da coordenação das políticas económicas, ao exercício de uma política externa de segurança e defesa europeia ou de políticas comuns em matéria de justiça e assuntos internos.

A União Europeia, cuja agenda política está já muito sobrecarregada com o alargamento, a realização da CIG e a preparação das perspectivas financeiras para o pós 2006, deverá proceder com a maior prudência, sendo, a meu ver, inviáveis reformas que visem uma alteração radical da arquitectura europeia, pondo em causa os seus fundamentos e princípios.

Por conseguinte, no aprofundamento da União Política, que queremos realizar a curto prazo, impõe-se uma abordagem pragmática e realista, não por falta de ambição mas por sentido da história. Pragmatismo e realismo não podem, no entanto, significar ausência de propósitos claros e de vontade política, a que, de resto, a dificuldade e complexidade do momento actual imprimem necessidade e urgência acrescidas.

Entendo que a ambição que nos move deverá ser plasmada no texto de tipo constitucional que, desejo, resulte da CIG. Este deverá conter uma visão estratégica da União Europeia para o próximo quarto de século bem como especificar os objectivos e as finalidades que esta prossegue. Mas esse texto deverá também tornar claros, inequívocos e inteligíveis os fundamentos, valores e princípios em que assenta a Europa, especificando outrossim os direitos e deveres dos europeus enquanto cidadãos da Europa.

No âmbito do aprofundamento político da União, parece-me também absolutamente indispensável que o princípio da igualdade entre os Estados seja devidamente acautelado e que se criem condições funcionais e institucionais para assegurar a paridade de tratamento entre os Estados. A meu ver, este é um problema grave, que nos últimos anos se tem vindo a agudizar de forma crescente. Para o solucionar, não tenho dúvidas de que é necessário restaurar, antes de mais, a confiança entre os Estados. Mas, não bastará, havendo também que corrigir os desequilíbrios introduzidos pelo Tratado de Nice.

É necessário que os cidadãos se sintam representados nas instituições europeias e que cada Estado preserve, por inteiro, a sua capacidade de participar nos mecanismos de decisão e de controlo. Para este efeito, avancei já, por diversas ocasiões, a possibilidade de ser ponderada a criação de uma Câmara do tipo de um Senado, valendo-me dos casos de experiências federalistas disponíveis que recorrem, todos, a um órgão legislativo bicameral com vista à salvaguarda da igualdade entre os Estados. O tempo dirá se existem condições para enveredarmos, desde já, por essa via.

Paralelamente, há outras pistas que devem ser exploradas, como sendo a do reforço da Comissão e a da reforma do Conselho, nas suas diversas formações, ou seja, do Conselho Europeu, do Conselho de Assuntos Gerais e dos Conselhos sectoriais. Deve também ser considerada neste contexto a questão das Presidências rotativas da União Europeia, tão de actualidade, porque se trata de um elemento importante da expressão da igualdade entre os Estados, com uma valência simbólica muito particular enquanto elo de aproximação da União aos cidadãos.

É precisamente este – o da relação dos cidadãos com a União - um ponto a que gostaria de voltar. Primeiro para evocar a questão da legitimidade democrática da Europa; depois, para lançar um apelo à criação de um espaço público europeu.

A legitimidade europeia assenta numa dupla base: os seus povos estão representados no Parlamento Europeu, eleito por sufrágio universal directo; os seus Estados estão representados pelos membros dos Governos nacionais que participam no Conselho Europeu e nas diversas formações do Conselho, cabendo aos parlamentos nacionais exercer um controlo democrático adequado sobre as decisões que os respectivos governos tomam a nível europeu.

Podemos, naturalmente, pensar em aperfeiçoar o sistema vigente. Por exemplo, a Comissão é um órgão susceptível de uma maior responsabilização política. O Parlamento Europeu, na sua forma de eleição e competências, poderia também ser repensado. Também o controlo da aplicação do princípio da subsidiariedade e da proporcionalidade, confiado a um órgão político ou jurisdicional, redundaria sempre numa maior transparência e num reforço da legitimidade democrática.

No entanto, estou em crer que, para além de todas estas medidas, desejáveis, de resto, a longo prazo, o problema do déficit democrático se situa antes de mais e em primeiro lugar a nível dos parlamentos nacionais, que, em geral, não asseguram um acompanhamento e um controlo suficientemente rigoroso dos assuntos e decisões europeias. Se não colmatarmos esta lacuna, a nível de cada um dos nossos Estados, quaisquer alterações que possam ser introduzidas a nível comunitário serão sempre insuficientes.

É com toda a sinceridade que gostaria de aproveitar este ensejo para prestar homenagem ao Folketing que, a meu ver, constitui um caso raro na Europa, desenvolvendo um trabalho exemplar em prol da transparência e da consolidação da legitimidade democrática da Europa junto dos cidadãos, neste caso, dinamarqueses.

Creio, de facto, que se quisermos ancorar a construção europeia nos quadros de referência colectivos por forma a que os cidadãos se habituem a pensar à escala europeia e incorporem os temas europeus nos quadros habituais do debate político, é absolutamente indispensável criar um espaço público europeu e a melhor forma de o fazer é, sem dúvida, começar pela base. Ora, não são os parlamentos nacionais a base da democracia representativa ?

Cabe-lhes, pois, na criação de um espaço público europeu um papel decisivo e fundamental, fazendo vingar uma democracia europeia e participativa. Mas, cabe-nos também a cada um de nós, enquanto cidadãos europeus, adoptar a Europa e assegurar o seu quotidiano como um espaço de cidadania aberta, inclusiva e civicamente responsável. É este o apelo que gostaria de vos deixar.


Muito obrigado a todos pela vossa atenção.